A cabeceira (pequena demais para os meus sonhos);
o estrado (forte o suficiente para segurar o peso do colchão e de dois corpos);
o suporte lateral (firme e teso);
a base (onde os meus pés sequer conseguiam tocar) — uma cama…
Seria bege… amarela… madeira esmaecida…
Não me lembro da cor original…
Não importa…
Tudo foi feito no escuro…
Ele vinha silente,
penetrante,
o horror noturno…
Gostava tanto de ir para o sítio
e lá ficar com as minhas bonecas
e os meus bichos…
O monstro adormecia distante,
em São Paulo,
com os seus negócios
e a sua arma em riste…
Gostei tanto quando ele morreu!
Dizem que foi do coração…
Disso, duvido…
Mamãe também morreu…
Acredito que sufocada…
engasgada
com a palavra que nunca proferiu:
Não!
Mês: Fevereiro 2023
O Matheus (Vila Madalena)
Meu filho estava cada vez mais distante. Ele me procurava apenas episodicamente. Berenice também reclamava de vê-lo cada vez menos. Será que estava preferindo ficar com o pai biológico, tentar recuperar o tempo perdido com o pai ausente? Será que se soubesse que Raul não queria que nascesse, mudaria de atitude? Quando tinha esse tipo de pensamento me sentia desprezível. Não seria assim que voltaria a ter a atenção de Matheus. Além do que o rapaz já era adulto o suficiente para escolher como viver a sua vida. Matheus era muito bom estudante. Mais dois anos, se tornaria Bacharel em Direito. Sua maior diversão era ir a espetáculos de música e a peças de teatro. Colecionava amigos da área – músicos e atores. Tocava um pouco de violão, se bem que há algum tempo não cantava uma canção nova para mim e Berenice nas tardes de domingo.
Decidi ligar para Ella para sondá-la a respeito de como estava a convivência com o filho. Disse que ele estudava muito, mas estava com alguma atividade paralela, a qual não sabia dizer qual fosse. Por isso, quase não parava em casa. Perguntou se estava ficando no quarto dele em meu apartamento. Devolvi que também estava menos presente. Por isso, liguei.
— Bem, talvez seja a faculdade esteja o absorvendo mais do que antes…
— Raul está ressabiado, achando que estivesse preferindo ficar com você.
— Devo confessar que a recíproca é verdadeira! Rs…
— Vamos confiar! Ele é um menino incrível!
— Sim, ele é! Obrigado, Ella!
— Igualmente, Chico!
Esse diálogo pareceu frio e distante assim colocado, mas havia carinho de parte a parte. Ella sempre que podia me agradecia por minha postura compreensiva. Não sabia o quanto fiquei magoado, comendo o pão que o diabo amassou. Foi um período em que a autopiedade me absorveu de tal maneira que me sentia um trapo. A volta por cima se deu quando larguei o escritório e enveredei pela escrita como atividade profissional. Foi uma época difícil, mas consegui segurar a barra.
Com o tempo, minha atitude sem reservas me aproximou de bons amigos e profissionalmente carreio um certo prestígio. Não ganho tanto quanto antes, mas usufruo muito mais da vida. Como frequentar ambientes como o Bar do Pereira, onde voltaria a ver mais um show da Fábia, acompanhada do Carlos e outros músicos. Ele me disse que ela apresentaria um repertório novo, apesar do sucesso que fazia com o antigo. Tinha certeza de que traria gratas surpresas. Desde a primeira apresentação, ficara impressionado com o talento da intérprete de olhar iridescente. As nuances que emprestava à voz de timbre emadeirado, feito flauta doce. Mal sabia que teria outras surpresas.
Cheguei meia hora antes do início da primeira entrada e entre os amigos que estavam na sala reservada aos músicos, encontrei Matheus. Sorridente, meu filho parecia conhecer a todos e conversava, quando entrei, com Fábia, entre olhares e sorrisos cúmplices.
— Matheus, que faz aqui? – o meu sorriso carregava curiosidade e espanto.
— Sou amigo do pessoal. O filho do Benê, o tecladista, estuda comigo.
Olhei para o Carlos, sorridente como se tivesse cometido uma peraltagem.
— Olha, meu irmão… só hoje eu soube disso. O que sei é que o filhão fará uma participação especial na segunda entrada.
Matheus me abraçou e disse que o Carlão havia estragado a surpresa.
— Vou tocar uma canção da Maria Bethânia com a Fábia. Nos tempos livres na faculdade, eu e o Tico, filho do Benê, brincávamos numa das salas do curso de música – voz, piano e violão. Quando viemos num ensaio visitar o Bar do Pereira, o Bianco me deixou tocar na guitarra dele e gostaram do meu estilo. Quem teve a ideia de fazer uma participação especial foi a Fábia.
— O seu menino é muito talentoso, Chico! Desculpa chamá-lo dessa maneira, mas falamos tanto de você que mais parece um amigo íntimo.
Fábia e Matheus trocaram olhares cúmplices que me causaram frêmitos de ciúme. Apenas não soube identificar de quem… ou se dos dois. A diferença de idade de uns dez anos não seria um empecilho para uma mútua paixão. Quando novo, só tinha olhos para as mulheres mais velhas. Talvez fosse uma maneira de mantê-las distantes, mas tenho por mim que fosse admiração de um elã que demonstravam no olhar, no gestual, na postura. O que não faltava para Fábia – uma mulher absolutamente atraente – mesmo que não emitisse sua bela voz.
Quanto a Matheus, um jovem bonito, corpo bem torneado de quem se mantinha em atividade constante – surfe, bicicleta e escalada – inteligente, culto e com evidente dom artístico, certamente interessaria a alguém como a cantora-arco-íris, como a intimamente a chamava. Um tanto desconfortável, cumprimentei Fábia com um beijo no rosto e me arrependi. Seu perfume impregnou as minhas narinas de indefinível sensação de enlevo. Não havia dúvidas. Estava apaixonado. Sorri inadvertidamente pela eventual situação de encontrar um competidor por sua atenção na figura do meu filho. Fábia, atenta, percebeu e me perguntou da razão do sorriso. Disfarcei e disse que era de orgulho por Matheus tocar para ela.
— Seu filho é muito talentoso! – disse, olhando para Matheus com carinho.
O show foi muito bonito. Não sei se os sentimentos envolvidos me deixaram mais sensível, mas a intervenção de Matheus em “Olhos Nos Olhos”, do Chico (o bom) foi linda – precisa, econômica e, ao mesmo tempo, expressiva. Cada nota entregava uma chance para Fábia brilhar. O meu filho me surpreendeu totalmente. Do garoto tímido que emitia os primeiros acordes de músicas antigas – a sua preferência desde sempre – para sua mãe e eu, até o músico que demonstrava personalidade e talento, tudo foi muito rápido. Não pude evitar de derramar lágrimas que marcaram a toalha de minha mesa com o desenho tortuoso da estampa entre ciúme e orgulho, entre flores.
A cada gestual de Fábia buscava encontrar o verdadeiro sentimento que a unia a Matheus. Sem dúvida, algo havia entre eles. Após o final do show fui ao encontro da banda, cumprimentá-los. Estava receoso de não entregar a confusão de sentimentos que me conduzia, quase tropecei umas três vezes. Quando cheguei, perguntaram se havia bebido. Ri e disse que era apenas emoção. Elogiei a performance de todos genericamente, mas um abraço forte em Matheus foi inevitável. Quando me aproximava dele, pude vê-lo abraçado à Fábia, seguido de um beijo dela no rosto dele, carinhoso, mas não tão efusivo que parecesse algo mais íntimo que amizade.
Caramba! Estava me sentindo tão ridículo! Toda a minha inabilidade no relacionamento com as mulheres aflorou em pleno cinquenta anos, mesmo depois de um casamento de quinze. Afora os encontros esporádicos em breves relacionamentos que ocorreram em série como se quisesse recuperar o tempo perdido após a separação, desisti de viver casinhos pelos anos seguintes. A consequência foi vivenciar uma solidão amistosa cercada de pessoas por todos os lados. Matheus volta e meia tentava me apresentar amigas mais velhas. Em algumas ocasiões, dizia que eu tinha que esquecer Ella, desde sempre apaixonada por Raul. Não faltou momentos que percebia o olhar de pena do meu filho. Seria muito estranho encontrá-lo como rival neste quadrante da minha vida.
Quando fui cumprimentar Fábia, fui pego de surpresa por um abraço nada protocolar de mais de trinta segundos. Parecendo quase um pedaço de madeira, fui relaxando a musculatura até me sentir envolvido por uma emoção de adolescente e retribuí a força que empregava. Torci para que ela não tivesse percebido uma ereção inesperada. Mas ao afastar seu rosto do meu, com um sorriso entre divertido e sarcástico, sem que eu não dissesse nada, falou em meu ouvido:
— Obrigado pelo elogio!
Vai Molhar…
Terminado mais um evento, neste caso, a matinê de terça-feira de Carnaval, começamos a desmontagem do equipamento, item por item. Exitoso, esse trabalho é feito com calma e por etapas. Toda a estrutura é formada por equipamentos como caixas e mesa de mixagem de som, amplificadores, pedestais e microfones, cabos de conexão de sonorização e iluminação, estruturas para os spots de luz e outros tantos detalhes que compõem a complexa aparelhagem que é utilizada para efetivar uma apresentação que busca levar entretenimento e alegria ao público que, mais do que espectador, é participante da festa num evento como é o baile de Carnaval. O clube no qual cumprimos nossa função de prestadores de serviço nesse setor que foi um dos mais prejudicados pela chegada da Pandemia de Covid-19 (por incentivar a aglomeração), ficava próximo a um dos logradouros mais procurados pelos foliões que esperam a passagem dos blocos de rua, um fenômeno cada vez mais popular em São Paulo. O ano 2023 como reinaugura o Carnaval, após dois anos de paralização.
Gosto da minha atividade, filha do circo mambembe — aquele que vai de cidade em cidade — montando e desmontando a lona sob a qual a vida se fantasia de espetáculo a ser admirado. Tenho consciência que passa por nosso manejo a melhor expressão do artista em suas múltiplas dimensões. O eventual sucesso que é obtido pelo músico, cantor, ator, bailarino tem embasamento em nosso esforço mais apurado. Ganho para isso, mas não me sentiria minimamente realizado se o evento que venha a realizar não vier a obter êxito, que é tradução da atuação do artista em aplauso — a moeda corrente mais importante para ele — ainda que também venha a ganhar financeiramente com isso.
Devido ao meu percurso pessoal, sei que não sou exatamente o tipo que seja visto a atuar nesse meio. Mas não sou o único “exemplar” do sujeito que tem uma formação de terceiro grau e goste de “por as mãos na massa”. Carrego um orgulho, que alguém poderia chamar de enviesado, de ser “peão”, ainda que do próprio negócio. Estar na minha posição me dá oportunidade para que possa observar a vida acontecer sem precauções de terceiros. Participo de festas em que o uso de “desbloqueadores comportamentais”, como bebidas etílicas, propicia o relaxamento do comportamento das pessoas em situações limites. Faço uso do meu posto de “observador social” para buscar desvendar os mecanismos por trás de certas atitudes. Festejar talvez tenha algo a ver com esgarçar a linha que separa o permitido do permissivo. Não é a situação que se observa numa matinê como as que fiz no domingo e na terça-feira. Nessas ocasiões, encontramos pais saudosos de suas juventudes tentando transmitir aos filhos a alegria que sentiam, em um ambiente controlado, se fantasiando, cantando, dançando. Ou apenas participando, se satisfazendo ao ver os filhos brincando inocentes entre confetes e serpentinas.
Após terminarmos a desmontagem, a operação a ser realizada é o de carregar o equipamento até o transporte. Havia duas opções: uma mais tranquila e rápida — levar com os carrinhos que dispomos os itens até o veículo que estacionaria a dez metros de distância — e a outra, mais demorada e longa, carregar cinquenta metros distante o equipamento até o portão de entrada. Normalmente, não pediríamos que o veículo fosse até a lateral do palco. Nesse clube, devido à movimentação do sócios, isso não é usual. Mas como durante todos esses dias de Fevereiro tem chovido bastante e o clube estivesse totalmente esvaziado, o meu irmão pediu para o porteiro que permitisse levá-lo até lá para que o equipamento não molhasse. A resposta do porteiro foi bastante emblemática: “Infelizmente, vai molhar”. Em outra ocasião, nesse mesmo clube, uma resposta de outro porteiro deu ensejo que produzisse um outro texto: “Novas Novidades“.
Em outros momentos, já discorri sobre os vassalos do Sistema que sofrem do que eu chamo de “Síndrome do Jagunço“. É aquele sujeito que prefere agir como déspota no lugar do déspota, que interpreta ao pé da letra uma orientação do Chefe ou, às vezes, executam apenas a uma insinuação feita à esmo. “Ordem é ordem”, já ouvi dizerem. A mesma sentença professadas por nazistas ao serem inqueridos sobre a matança que os levaram a eliminarem milhões de Judeus, na Segunda Guerra. Por sorte, a chuva diminuiu e pudemos carregar apenas com alguma dificuldade para impedir que certos equipamentos não ficassem muito molhados. Em certo instante, o porteiro ficou nos olhando de sua posição, há uns trinta metros. Parei o que estava fazendo e o encarei, com o véu da chuva leve a nos separar. Intimidado, voltou para a sua cabine.
Terminado o carregamento, fui até lá e o informei que estávamos prontos para deixar o clube. Sem levantar os olhos, respondeu com um “certo” incerto. Quando viesse, a minha intenção era lhe desejar uma boa noite de plantão e dizer expressamente: “Obrigado pela solidariedade!”. Não pude. Demorou uns dez minutos até que chegasse uma moça que nos abrisse o portão. Bem educada, nos orientou na saída do veículo. Agradecemos com convicção e voltamos para a casa.
Caçador De Bruxas*

*Trecho de “Confissões“, meu terceiro livro pela Scenarium Plural – Livros Artesanais:
“Junto aos nossos desejos de sermos bruxas, dentro de nós atua um inquisidor… um matador de diferentes. Um aniquilador de sonhos. Ao lado da puta que somos. Quem não vende o seu corpo e mente em troca de dinheiro?
Existe aquele que atirou a primeira pedra.
Ser contraditório, mentiroso e hipócrita é condição básica para sobrevivermos nesta sociedade. E, no entanto, não nos falta fôlego para vociferarmos contra o Sistema.
Estar aqui a denunciar nossa pequenez, não deixa de ser uma tentativa de não parecer um minúsculo ser. Não me excluo de todo esse processo em que morremos de vontade de matarmos o que não gostamos, como se não suportássemos o contrário.
Somos caçadores de bruxas. Ainda que filhos de bruxas. Queremos quebrar os nossos espelhos. Reproduzimos os nossos produtores. Produzimos podridões – amores malparidos.
Momento de devaneio, sonho com um mundo que aceite o irmão. Que aceite o mal, o identifique e o reverta. Que sejamos bruxas. Façamos uma poção mágica. Uma porção básica que contamine a escuridão de verdadeira claridade. Peito aberto, mamas e sexos à mostra, barriga prenha de filhos livres da maldição de sermos tão humanamente menores.
Quero ser, além de ser, Ser.”