BEDA / Scenarium / Sexton, De Obscuros Tons

Sexton
Anne Sexton

Anne, tenho tido um contato mais assíduo com sua poesia nos últimos dias. Inspirado por um dos seus poemas — Mãe — que versa sobre a possibilidade de redenção em sua vinculação com aquela que a jogou ao mundo das pessoas grandes como uma estranha, algo inventado, ou vacilação quando outro alguém está tão vazio como um sapato, imaginei enveredar por um caminho lírico no relacionamento que tinha com o meu pai. Nossa conexão com eles foi igualmente difícil. Não consegui. De nossas almas machucadas, você serviu mel e lenitivo, eu destilei rancor…

A mulher uterina pariu palavras de obscuros tons e claras presenças – versões fidedignas da dor de ser. E de deixar de ser, a versar sobre as mulheres que estiolam suas juventudes em camas de casal-modelo, em amores-pantomimas. Talvez fosse sua voz real, quando disse sobre o companheiro de uma delas, que o deseja aleijado ou poeta, ou ainda mais, solitário, ou, às vezes, melhor, meu amado: morto. Porém, quando ele a deixou, não suportou.

Seus transtornos, suas viagens químicas, seu afogamento em si, quando queria apenas assumir sua própria personalidade — ultrapassar nascimento e criação — pai e mãe. Essa que a gerou e a acompanhou íntegra-integral, poética e materialmente, sonho e permanência transversal pela mãe que se tornou — caminho leitoso.

Cantou às mulheres que violam as leis patriarcais. Cantou às ousadas e insubordinadas que, como você se atrevem a viver. Que ultrapassou o doce peso de ser mulher, que adejou com todas as suas asas para se tornar a poeta peso-pesado, a cantar para a ceia, para o beijo, para a correta afirmação…

Quis morrer em noite estrelada. Sorveu como ar puro de quem queria viver, o gás venenoso que respirou dentro da fera furiosa da noite, engolida pelo grande dragão, cuspidada vida sem bandeira, sem ventre, sem grito, vestida com a pele de sua mãe. Como a retroceder o seu corpo para o útero dela, depois de revisar sua existência em versos. Foi premiada entre os poetas por saber confessar depressão, suicídio, isolamento, desespero, intoxicação e morte — aplaudido espetáculo de quem se desintegra em praça pública.

Anne, necessária, tão nova em minha vida e já tão influente. Saiba que viverá em mim, tanto quanto no coração de quem mergulha fundo nos meandros de nossa absurda existência. Que sua dor seja baliza de quem se permite adoecer e se curar. Mulheres assim de morrer não se vexam. Eu tenho sido desta casta.

In:
Missivas De Agosto
https://scenariumplural.wordpress.com/2019/08/21/sexton-de-obscuros-tons/

BEDA / Portais

Portais

Na penumbra do quarto,
enxergo o seu corpo com as minhas mãos
e a minha língua…
Deito minha pele a cobrir a sua,
peito com peito,
plexo com plexo,
pernas entrelaçadas,
braços a abraçarem,
bocas a dizerem tanto – sons indefinidos –
recital em alfabetos primitivos,
guturais…
Ao erguer a minha cabeça,
à minha esquerda, o antigo rádio-relógio
mostra quatro números idênticos – 11:11 –
abertura de portais…
Pela passagem,
a penetro,
me entrego,
vou e volto e vejo
passarem figuras que me visitam,
talvez
múltiplos de mim,
gama de energias…
Sou outro, você é outra,
somos todos e ninguém…
Chegamos a um lugar-nenhum-lugar.
Morremos para esta vida por um tempo –
além –
e inauguramos a eternidade…

BEDA / Uma Só Asa

Eu, até os meus quatorze ou quinze anos, escutava muito mais músicas brasileiras do que estrangeiras. Corria o início dos anos 70. Era bastante fascinado pelas letras, que em conjunto com as belas melodias, compunham o meu acervo poético, para quem não tinha tanto acesso à literatura em versos para além dos livros didáticos do ginásio.

Entre os compositores que apreciava, Chico Buarque era um dos meus favoritos. As suas composições, falando das mulheres como se fora uma, me influenciou grandemente. Eu, que apenas queria entender aquele ser que se expressa fortemente através da associação do cérebro a uma parte do corpo que os homens nem sequer imaginam o poder – o útero – o usei como referência em muitos aspectos. Quando ouvia “Mulheres de Atenas”, “Com açúcar, com afeto”, “Cotidiano” e “Sem açúcar”, por exemplo, sabia que era apenas um contraponto, já que a minha mãe, minha referência imediata, não se parecia com aquelas mulheres aparentemente submissas.

Nos versos a seguir, que fiz para um projeto musical apenas iniciado, mas nunca levado adiante, tento me colocar no lugar de uma mulher. Espero que as minhas amigas se sintam pelo um pouco representadas por eles. Se não, perdoe a intromissão nesse universo que tento compreender até sempre.
Anjo
Uma Só Asa

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?

Um anjo caiu em meu quintal e foi assim
Uma luz, um estrondo… e um rapaz se ergueu
Entre a garagem coberta e o canteiro do jardim
De seus ombros largos, apenas uma asa, a outra se perdeu…

Vestia uma roupa muito branca, quase transparente

Deixava entrever as formas de um corpo esguio
Jeito de menino-homem, com a sua asa pendente
Caminhando decidido, veio direto para mim, bravio

Não tive medo, não pensei neste tempo doentio

Parece até que o esperava, o buscava em meu sonho
Não aguardava que fosse um anjo vindo do vazio
Mas senti que ele seria aquele ser que chegara risonho…

Ao se aproximar, pegou em minha mão, que tremia
Beijou a minha testa e baixou os lábios até a minha boca
Apenas entreabriu a sua e soprou que me queria
Que já há algum tempo me observava e que chegara a nossa época…
Perguntei sobre a asa que não trazia, a que havia sumido
Respondeu que começou a pensar apenas em mim e que caíra em casa
Já amputado, porém feliz, pois fora atendido em seu pedido
E dessa maneira, ganhei o meu homem, um anjo de uma só asa…

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?”

BEDA / Carroceiro De Sonhos

Carroceiro

Ontem
O sol passou por aqui
Homens
Cães
Carros
Passaram por aqui
E eles passaram pela paisagem
Passaram tão rapidamente
Quanto a pressa de chegar queria
Tão devagar quanto a água do Tietê
Se movia
Ontem
A paisagem passou por mim
Em uma carroça
Dos tempos do sem fim…

BEDA / A Ilha

Ilha

Saindo da academia, eu caminhava de volta à minha casa pela larga avenida de duas pistas, separada por uma ilha ajardinada. Logo, encontrei aqueles três que formavam aquela família cambaleante. Um homem, uma mulher e um cão, envelhecidos e cansados. Aparentemente, eram moradores de rua, usavam andrajos, estavam sujos e caminhavam cambaleantes e… cansados, os três.

O homem estacou o seu passo, o cão, grande, mas muito magro, também parou, bem junto ao companheiro. Ambos olharam para trás, esperando a mulher cansada se aproximar. Todos juntos, novamente, ameaçavam atravessar a pista naquele passo lento e indeciso, de cansaço e embriaguez, dois deles; de cansaço e fome, o outro. Comecei a temer que os três não conseguissem ultrapassar a cortina de carros velozes que pareciam aumentar a velocidade ao perceberem a intenção do grupo.

Tão cansados pareciam os três que cheguei a me perguntar – por que simplesmente não paravam e descansavam? Vi-me com a mesma barba desgrenhada do homem, apiedei-me do cabelo hirsuto e despenteado da mulher, alcancei os sintomas da perplexidade do cão. A intenção de atravessar talvez fosse para isso mesmo – chegar à ilha central, onde deitariam à relva e à sombra, entre as pedras, os seus cansaços e desapegos.

Fiz-me outra pergunta – por que não decidiam descansar, permanentemente? O que os mantinham caminhando a esmo pelas ruas e canteiros de jardins? Vivendo de recolher restos de comida ou latas de cervejas e refrigerantes jogadas nas calçadas pela pouca educação dos seus semelhantes, para trocá-las por poucas moedas? Julguei que por amor, solidariedade ou companheirismo, os três seres, mesmo tão cansados, permaneciam vivos e unidos. Ele a ela, ela a ele, o cão aos dois, caninamente…

Finalmente, de forma periclitante, chegaram à divisa verde que separava o rio asfáltico. Nessa ilha, dormiriam (sonhariam?) e lamberiam as feridas, os três, tão cansados…