Nubibus

As nuvens são e não são.
Visíveis, porém diáfanas.
Colossais, contudo fluídicas.
Mutantes, mas constantes.
Terrenas, todavia aéreas.
E sempre generosas,
a permitir que o Sol
queime a despedida do dia…
Especialmente ontem,
senti que seu olhar de fogo
me despia a alma
antes que fosse acobertado de minha visão.
Nesse ínterim,
foram devassados-confessados
os meus pecados…

Entre Fazer E Poder Fazer…

… há uma diferença. Mas nem tudo o que podemos fazer deve ser feito. Não faltam ocasiões nas quais nos arrependemos de realizar o realizável, mesmo que aparentemente inofensivo. Para mim, é fácil cometer poesia, já que eu vejo tudo como se a vida escondesse certa trama poética. Mas materializar essa poesia em palavras pode redundar apenas em poesia ruim.

Eu, quando criança, tinha sonhos com um tema recorrente – peixes. Sonhava tanto com peixes a nadar que pensei em construir um laguinho artificial assim que possível. Já antecipava o prazer que sentiria ao ver os peixes se movendo de um lado para o outro por entre pedras e limites… Esse “pormenor” já tornaria o meu sonho menor. Perguntei-me: por que tentar conter um sonho dentro de um laguinho? Por que os meus sonhos não poderiam circular por todos os mares?

Eu, no entanto, poderia objetar que no lagos, nos rios ou nos oceanos abertos, eles enfrentariam o perigo e a morte a cada palmo, enquanto estariam protegidos em meu cantinho sintético… Como sou um ser composto basicamente um tanto de “porém” e outro tanto de “talvez”, contraponho de mim para mim mesmo que os seres somente podem alcançar as suas plenas potencialidades estando livres para realizá-las, ainda que por breves momentos. E, a meu ver, esse instante máximo equivaleria a toda uma vida de platitude.

Outrossim, devemos tomar cuidado para que um sonho não seja derivado apenas de um desejo pueril, com consequências funestas, se concretizado. Com o tempo, mais experientes, talvez consigamos perceber quais os sonhos que devam ser colocados em prática e quais aqueles que se restrinjam permanecer exclusivamente no plano dos sonhos, portanto eternamente belos e perfeitos.

Projeto 52 Missivas / A Morte Pulsa…

“A morte pulsa nas veias da existência e ata minha vida ao pulsar dos segundos” essa frase diz muito sobre a minha visão sobre a existência. Carregamos, desde a concepção, as possibilidades de sermos… o que? Qualquer coisa, dentro das limitações intrínsecas às condições naturais, sociais e de outras ordens, muitas apenas especulativas.

Eu, que escrevo e você, que me lê, participamos de uma rede de relacionamentos que envolve parâmetros demarcados pela perspectiva permanente e irretocável da vida e da morte. Para mim, não há dicotomia ou separação entre uma e outra. A morte nasce com a vida e minha crença ainda prorroga esse enlace para “antes” e para “depois” de virmos fisicamente à luz do Sol. Neste período, neste planeta, neste plano, frequência, energia, pulsação…

Arbitrariamente, a depender de cada um, os eventos do nascimento e da morte são separados como acontecimentos diferentes. Filosofias de todas as eras civilizatórias propõem explicações, perspectivas, conceitos e, sobre eles, constroem crenças-religiões que regem a vida e instauram a cessação de seu fluxo, agrega culpas e decreta penas para aqueles que não creem em seus mandamentos. Grupos lutam para colocar a sua religião como a verdadeira. Baseiam-se em livros, em palavras, em imposições civilizacionais professadas por enviados e pastores.

Como bebo de um caldeirão de informações díspares, me deixo ser influenciado por concepções de todas as origens. O critério que utilizo é que a sensação de “pertencimento” repercuta em mim de alguma maneira. Consigo entender como se dá o processo naquela determinada cultura. Dali por diante, deixo a semente germinar ou morrer. Se não influencia determinantemente o meu pensamento, ainda assim posso utilizá-la na criação dos meus textos. Não preconceituo nada e a rejeição só ocorre quando algo atenta contra a liberdade de ser e de pensar. Além do empirismo pessoal, outra base na qual alimento minha religiosidade são as Ciências — as humanas, filtradas por minha percepção; a Biologia, a Geometria sagrada, a Física, a Astronomia — sem contradições, apenas confirmações.

O pulsar dos segundos rege a minha vida-morte conscientemente e a transforma em energia-combustível para minha existência. Viver o Presente é buscado e ainda que o Passado se imiscua com lembranças, será sempre para reafirmá-lo. Pensar no Futuro é utilizado para potenciá-lo em vivência realizável. Dito dessa maneira, parece um esperto jogo de palavras que nada explica. Isso porque a amálgama de emoções e sentimentos que geram são pessoais e por mais que eu tente apreender explicá-los, o fluxo torna-se inapreensível. Mas como também acredito na magia das palavras, ainda assim esta barafunda de inflexões talvez possa vir tocar o seu peito.

Lunna Guedes / Mariana Gouveia

O Ovo

Ontem, varria o quintal quando vi restos de um ovinho de lagartixa, bichinho que admiro muito. Fiquei feliz com os passinhos imaginados do Hemidactylus mabouia recém-nascido por nosso quintal, espaço que considero um abrigo da vida, incluindo plantas, pássaros visitantes, aranhas, borboletas e outros insetos. Eu sempre fui fascinado por Ciências e quando criança acreditava que as simpáticas lagartinhas que subiam pelas minhas paredes eram descendentes diretas dos dinossauros. Eu era fascinado pela Origem das Espécies, de Darwin, e as via como representantes ao alcance dos olhos da seleção natural e adaptação dos seres que pululam pelos continentes e oceanos.

Criador de galinhas e amante dos pássaros, principalmente pela capacidade de voar, sonho de todos nós, nunca havia imaginado que esses seres fossem resultado da adaptação daqueles que dominaram o planeta por 160 milhões de anos. O termo “evolução” visto no sentido de aprimoramento é demonstrado cabalmente quando percebemos que o necessário foi feito para que as antigas espécies que aqui viviam, se adaptassem para aproveitar os recursos disponíveis. Se estivessem ainda caminhando entre nós, não teriam chance de continuarem ativos. Um meteoro os aniquilou em pouco tempo, a nossa espécie o faria não tão rapidamente, mas assim como faz com as que se adaptaram às circunstâncias terríveis do clima instável que resultou do choque, certamente ocuparia seus habitats, os matando.

Somos como um meteoro. Nós estamos aqui há apenas 200 mil anos. A força do impacto de nossa presença é equivalente a de um corpo imenso vindo do espaço que colidiu neste planeta de 4 bilhões e meio de anos. Em pouco tempo, extinguimos diversas espécies de plantas e de animais, devastando grandes áreas em terra e no mar. Supostamente desenvolvemos um cérebro com imensa capacidade cognitiva. Contudo, a nossa inteligência parece estar voltada para uma sanha conscientemente destrutiva. Se não for precipitado por algum acidente, deverei morrer até a chegada de meados deste século. E sinto que não verei a nossa espécie evoluir para a cultura de preservação da vida pela simples percepção de sua vital importância para a nossa própria preservação.  

Recentemente, chegaram a mim Elton John e as três Kardashians galo e galinhas garnisés proporcionando uma viagem na minha história pessoal. Diferente de 50 anos antes, desde há muito sei que são descendentes dos colossais animais que caminharam pelo chão no qual pisamos. Eu os vejo não apenas com o respeito que sempre dei a todos os seres, franciscano que sou, mas também por sua história antiga, apesar da conformação recente em termos de características morfológicas. Mesmo porque a adaptação das espécies ao meio é constante. Um pouco mais tarde, li a notícia da descoberta do ovo que abrigou “Baby Yingyang”, fóssil do embrião de um bebê dinossauro perfeitamente preservado. Pertencente ao grupo dos terópodes oviraptorídeos, parentes distantes das aves, a projeção em vídeo de sua existência me emocionou. Hoje, dia de #TBT, não vejo algo que mereça maior homenagem do que a lembrança de uma vida de 66 milhões de anos, ainda que não tenha chegado a eclodir em toda a sua potencialidade.

O bebê YingYang

João Sorriso*

Humberto, João Soares e eu… há um ano.

— Tira umas fotos para mim?

— Claro, João!

Não importava o cenário — uma escadaria imponente de um clube antigo do interior; ou o palco com os dançarinos na pista como fundo; ou a parede simples, desencarnada de adereços — ele assumia a mesma pose: braços cruzados sobre o peito, as pernas levemente afastadas em gesto de confiança e um imenso sorriso. Se pudesse dar um apelido a ele, ainda que não esteja mais fisicamente entre nós, seria João Sorriso.

Conhecido como João Soares, nós, da Ortega Luz & Som — Humberto e eu — o acompanhamos nos últimos quatro anos, juntamente com Tânia Mayra, Cláudio Albuquerque, Rafael Ortega, Vagner Mayer. E Marcos Oliveira e Edu, como bateristas (entre outros) na empreitada de levar a Banda Ópera Show para todos os recantos onde éramos chamados a atuar, desde a grande São Paulo, Interior e Litoral. E assim foi até a chegada da Pandemia de Covid-19, em março.

Os eventos caíram um a um e ficamos à espera de que as coisas voltassem ao normal logo mais. O que nunca aconteceu, como sabemos, apesar de muitos se iludirem a respeito. Em determinado momento, percebi que o “novo normal” não seria o antigo normal sem que a vacinação ocorresse. E que isso não será se efetivará rapidamente. Principalmente porque não houve planejamento para isso, o que fará que demoremos para voltarmos aos eventos com grande público antes que os riscos sejam diminuídos substancialmente. E entreter o público é o que o João sabia fazer de melhor e teve que deixar.

Entre os vários cursos que eu fiz, houve o de Marketing Pessoal. Uma das tarefas previa que eu fizesse “Lives”, uma por mês, projeto que seria levado avante em 2021. Uma delas, intitulei: “Setembro: Histórias De Um Cantor Profissional Que Não Faz Sucesso Na ‘Mídia Oficial’” — com o cantor de bailes de salão, João Soares. Esse “Live” não se realizará. João representa uma classe de muitos e talentosos artistas que não ganham acesso a grande mídia atualmente, cheia de personagens inventados, sem lastro. A sua história foi rica. Participante de grandes bandas e de programas de auditório de anos passados, nos encantou desde cedo através da televisão. Até que um dia, o encontramos como companheiro de trabalho. Isso, há 30 anos, em que nos contratou para diversos eventos. Desde o final de 2016, retomamos o contato mais estreito.

Em um mês, a Banda Ópera Show chegava a realizar de seis a dez bailes, com um público médio de 500 pessoas, às vezes mais, às vezes menos, a depender do tamanho do baile. Ou seja, a voz de João Soares chegava a ser ouvida por cerca de 12.000 pares de orelhas por mês que recebiam o tom grave de sua entonação. A sua vibração, faziam corpos de casais se movimentarem em coreografias em que imperavam boleros, sambas, cha-cha-chas, entre outros ritmos. Os que apenas permaneciam sentados, ao ouvi-lo, eram transportados para outros tempos, sentimentos e emoções. Eu mesmo, acostumado a acompanhá-lo na parte técnica, a depender da canção, ficava arrepiado com as suas interpretações.

Um dia antes dele ir para a Bahia, em 1º de novembro, o encontramos em sua casa. Ele nos chamou para tomar um café e conversarmos sobre o futuro. Anunciou que pararia com o projeto da banda, já que além da escassez de eventos, os valores que já eram baixos, haviam caído ainda mais. De certa maneira, foi um alívio para nós já que só permanecíamos a atendê-lo por sermos amigos de longa data. Seria complicado continuar como o mesmo cachê diante da defasagem econômica — insumos para a manutenção de equipamentos e transporte, alimentação, combustível e pagamento de auxiliares.

Ele Estava bem, aparentemente. Disse que gostaria de rever os familiares — painho e maínha — já idosos. Tinha orgulho da família, todos bem postos, incluindo a irmã médica. Foi a ela que recorreu por causa de uma dor persistente no abdômen há alguns meses. Realizados os exames, ela não gostou da imagem e pediu uma ressonância magnética que revelou câncer no Pâncreas, com metástase no fígado. Em um mês e meio, o quadro evoluiu até o óbito que se deu na madrugada de hoje.

O menino de Chorrochó, que veio para São Paulo buscar o seu sonho, foi vendedor ambulante, chegou aos programas de calouros da TV, gravou um disco de forró, conseguiu agregar amigos e construir uma sólida carreira na noite paulistana, com quase 50 anos de estrada, cantou para quem quisesse ouvir, encantou plateias, testemunhados por vídeos de fãs e frequentadores encantados com o seu talento. Entre eles, eu. Agora, está trilhando outra estrada, abrindo com o seu vozeirão o caminho para a eternidade.

*Texto de 20 de Dezembro de 2020, por ocasião do passamento de João Soares.