Nos Tempos Da Faculdade De Educação Física*

Salto com o auxílio do plinto, na aula de Atletismo do Profº. José Luís Fernandes – 2010

Entre 2009 e 2013, fiz Licenciamento E Bacharelado Em Educação Física. Quando eu o iniciei tinha então 48 anos e fui incentivado pela Tânia, preocupada com possíveis sintomas da chamada “Síndrome do Ninho Vazio” pela ausência cada vez mais acentuada das nossas três meninas na minha rotina diária. Com dois cursos anteriores não terminados na área de Ciências HumanasHistória E Letras, na USP – decidi terminar o terceiro na área da Saúde justamente pelo desafio físico e cronológico: um velho entre os jovens. Até um tempo antes, pensava que ter feito o curso foi muito importante apenas para mim em termos de entendimento do corpo e seu funcionamento, já que acabei por não atuar na área, o que também nunca foi a minha intenção, apesar de ter surgido algumas oportunidades.

Com as Lembranças do Facebook surgindo de tempos em tempos, recuperei muitas mensagens enviadas por meus pares perguntando sobre todos os assuntos, cada vez mais estimulados pela atenção com a qual os atendia. Percebi que a minha maior missão não fora somente me aprimorar no autoconhecimento e desenvolvimento da consciência corporal, mas especialmente auxiliar os meus companheiros de turma da Educação Física, hoje atuantes como professores em escolas, instrutores em academias e “personal trainers“.

Logo no Primeiro Semestre, cheguei a sofrer restrições de alguns devido à minha curiosidade em fazer perguntas no final da aula, os impedindo de sair antes do término. Sintomaticamente, muitos deles foram ficando pelo caminho. Com a continuação do curso fui ganhando a confiança da turma e passando coordenar a realização de alguns trabalhos na parte teórica. Na parte prática, não ficava devendo (quase) nada aos demais alunos, excetuando aqueles que mesmo na idade deles talvez não conseguisse alcançar. graças à tecnologia dos modernos celulares, pude registrar grande parte da minha incursão rica em experiências com jovens em busca de um sonho. O texto abaixo é de 2013*, na fase final do curso.

“Pessoal, como alguns que me acompanham sabem, estou no oitavo e último semestre do curso de Educação Física. Uma das disciplinas que tenho na grade chama-se Psicologia Aplicada Ao Esporte. O esporte competitivo tem exigido e carreado cada vez mais recursos para que o atleta ou a equipe ao qual ele está inserido apresentem resultados satisfatórios frente aos grupos para os quais atuam – clubes, torcidas e patrocinadores.

Dessa forma, a Psicologia como disciplina tem amplo campo de atuação nessa área de atividade humana. Mas, como lembra o meu professor nessa disciplina, Ricardo Rico, não uma Psicologia independente das motivações e aspectos mentais e emocionais que movem os atletas, ou seja, a Psicologia que conhecemos aplicada no esporte, porém gerada no âmbito de competitividade extrema ou, como diria eu, a vida levada ao limite da exibição de força, aplicação (e transgressão) de regras, vibração, aprendizado de como vencer e (mais importante, porque ocorre com a maioria dos competidores) como perder – enfim, uma Psicologia do Esporte.

Na última segunda-feira, o meu grupo tinha que apresentar uma entrevista com um ‘Coach‘, um especialista cada vez mais requisitado para atuar de forma individual ou coletiva junto a grupos profissionais e/ou sociais que buscam alcançar realizar metas objetivas. Devido a vários motivos que não irei declinar, domingo de manhã ainda não havíamos conseguido a entrevista prometida e eu tive que recorrer, meio a contra gosto (porque poderia parecer que fosse um abuso de confiança), à minha lista de amigos ‘facebookianos‘ e um deles, o Alberto Centurião, se predispôs a responder o questionário que elaboramos.

Foi uma agradável surpresa para mim que uma pessoa do quilate de Centurião tenha se colocado tão generosamente à disposição para tal empreitada em um domingo de Dia das Mães, praticamente na hora do almoço dessa data especial. Ele foi consciencioso e prestativo de tal forma que me senti impelido a agradecer-lhe publicamente aqui neste espaço. Meu grupo e eu realizamos a apresentação da entrevista e, aparentemente, fomos bem na empreitada. Despeço-me agradecendo à mamãe do Centurião que merece um beijo grande e um abraço forte por ter forjado um homem como o seu filho”.

Emtardeser

Por trás da cortina diáfana
Se vai o Sol da nossa retina
Como um ser de olhar oblíquo
Incandescente e profícuo.

Caçador de nuvens, espero que o rei
Decaia, faça o percurso que decorei
Ao se inclinar, refaz um novo entardecer
Respiro luz, súdito entregue em tarde, ser…

Como Conheci A Tânia

Imagem de 13 de Maio de 1988. Participação especial da Romy, nossa primeira filha, testemunha aninhada no útero da Tânia, aos cinco meses de gravidez.

Dois ou três anos antes de me casar com a Tânia, sequer a conhecia. Ela veio com a minha prima Vanir e a amiga Neuza, de Volta Redonda para São Paulo, com o objetivo de realizarem testes de admissão em hospitais da capital paulista. Vanir era filha do tio Manoel e da tia Ermelinda, irmã mais velha de minha mãe que, junto com o meu tio Benjamin foram os dois únicos dos sete irmãos Nuñez a nascerem no Brasil. O nosso tio Manoel era preto. Esse dado não teria nenhuma importância se não fosse um fato que marcou a tia Ermelinda aos 12 anos de idade, quando chegou no Porto de Santos, vinda de navio da Espanha, junto com outros quatro irmãos, nos anos 20 do século passado. Ela mesma nos disse que ao ver o primeiro homem preto de toda a sua vida, provavelmente um estivador, se assustou tanto quanto ficou impressionada.

Assim como era impressionante o nosso grande tio Manoel. Ele trabalhava na Siderúrgica Nacional e se distinguia pela inteligência, apesar do pouco estudo e, notadamente, por seu olhar penetrante. Eu gostava de ficar ao lado dele e ouvir suas histórias quando visitávamos a ele, a tia e os primos, todos muitos bonitos e enormes. A prima Vanir me adorava e quando me apresentou para a Tânia, se referindo a eventual beleza e personalidade do primo, a minha futura mulher depois me revelou que chegou a rir por dentro naquele momento. O sujeito que eu era, de cabelos desgrenhados e vestindo camisas postas ao contrário, calças sujas e um tanto bruto não era nem bonito e muito menos interessante. Ao vê-la, não me lembro de ter dito alguma coisa. Talvez tenha grunhido algo, não mais do que isso. Com certeza, aquela magrela com voz de taquara rachada não havia chamado a minha atenção.

As Técnicas de Enfermagem Tânia e Neuza passaram no teste para o Hospital Israelita Albert Einstein. A Vanir foi trabalhar no Hospital 9 de Julho. Acabou por residir com parentes em Suzano, município próximo. As outras duas moças foram morar temporariamente com a Dona Madalena, minha mãe, em um dos quartos disponíveis na casa que antes era ocupado por minha avó Eloisa, da qual minha mãe cuidava, que morrera um pouco antes. Eu continuei em nossa antiga casa, sozinho. Como a Tânia trabalhava bastante e fazia cursinho para fazer vestibular para o curso de Enfermagem, pouco a encontrava. Quando nos víamos, era comum acontecer um ou outro desconforto. Certamente, não nos simpatizávamos mutualmente. Depois de algum tempo, ela e a Neuzinha, se mudaram para um outro local. Não desgostavam da Dona Madalena, mas no mínimo achavam engraçado que minha mãe lhes fornecesse achocolatado barato e leite tipo C e pó de Chocolate do Padre e leite tipo B, para mim. Na época, eu era vegetariano e fazia uma grande quantidade de saladas de frutas, sopas de legumes e vitaminas que mal oferecia para as moças. Cortesia social não era o meu forte.

Passado o período inicial de ausência depois da mudança, em suas folgas, a Tânia voltou a frequentar a casa onde a minha mãe morava, principalmente quando não tinha outro compromisso. De vez em quando, nos encontrávamos. Um dia, se surpreendeu com um cara de cabelo aparado e vestido como gente. Aparentemente, descobriu que eu era o rapaz ao qual a Vanir se referiu. Por meu turno, passei a agir de uma forma mais cordial e gentil. Começamos a sair para irmos ao cinema e conversarmos. Começamos a nos entender e a sentir vontade de ficarmos mais tempo juntos. Até que começamos a namorar. De início, escondemos nosso caso. Mas…

… para ajudar, Dona Madalena teve a ideia de alugar a casa da família na qual apenas eu morava para a Tânia e a Neuzinha. Elas ficariam em um quarto e eu, no outro. Sem o conhecimento da minha mãe, os namorados passaram a dormir juntos. Quatro meses depois, não me lembro se nosso namoro fosse presumido ou não, me lembro de estar tomando um café na cozinha. Simplesmente saquei de um envelope o exame de ultrassom ao qual mostrei à minha mãe. Era a “imagem” do seu primeiro neto ou neta. Ela desabou em uma das cadeiras e começou a fazer perguntas sobre como tudo aquilo tinha acontecido. Acho que brinquei sobre o “como”, porém, tão assustado quanto da primeira vez que a Tânia me mostrou o exame, nem me lembro do resto da cena. Estabelecido o fato da gravidez, a movimentação de ambas as famílias foi no sentido de que nos casássemos o mais rápido possível. Mas essa é outra história…

Mudanças E Permanências

Magdalena depositou a taça de vinho do seu lado, no chão, enquanto revistava mais um dos livros que estava separando para encaixotar. Aquele, era dela, com algumas marcações de trechos que considerou significativo de alguma maneira. Numa coletânea de contos de Machado de Assis, havia sublinhado a frase: “Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa apagar o caso escrito”.  Bem que gostaria que com ela fosse dessa maneira… Ao contrário, era muito comum vivenciar histórias dentro de histórias. Ela se sentia à vontade em meio a barafunda de referências que colecionava, sabendo separar o que lhe interessava. Naquele momento, pensava no namorado distante fisicamente, morador de outro Estado e… casado um cantor conhecido. Gostava muito dele e a ausência do homem amado era “compensada” na intimidade de seu quarto por dedos sôfregos e o auxílio de brinquedinhos ao final da noite, antes de dormir, chamando por seu nome… Em meio a tudo isso, organizava a mudança de apartamento, enquanto no trabalho tinha decisões importantes a tomar.

Tinha por característica pessoal conjecturar sobre as situações do cotidiano que, sob a manta da normalidade, abrigavam interpretações mais profundas. Pensava sobre aquele processo em que o relógio da parede tiquetaqueava segundo a segundo o tempo que lhe restava para deixar o seu lar. Sabia que mudanças são o que temos de mais permanente neste mundo. A não ser que o processo seja interrompido. Magdalena lembrava do irmão morto, passagem ainda bastante dolorida. Mudança dimensional. Talvez ainda acreditasse na cura da doença que o levou após um longo e triste período de tentativas em reverter o avanço do mal. Colocar em perspectiva tudo pelo que estava passando, a ajudava a não se afundar na dor que sentia pelo eminente desparto do lugar em que viveu alguns dos fatos mais importantes de sua vida. Principalmente, foi ali que seu filho nasceu, começou a andar, balbuciou as primeiras palavras, aprendeu a desenhar as primeiras letras, a cantar as primeiras musiquinhas, a falar sozinho no espelho, inventando personagens, a fazer dancinhas que criava, a querer se tornar um artista.

Magdalena sabia que a arte era uma das mais sofisticadas linguagens que o ser humano havia criado para a expressão de sua dimensão espiritual. Acabou por se envolver bastante com os caminhos da produção artística e seus criadores, tornando-se produtora de eventos. Seus livros, seus discos, muitos divididos com o ex-marido que viria lhe encontrar para estabelecerem o que iria para um e para outro, marcavam momentos em que construíram vinte anos de casamento. Quando percebeu que a união com Cícero não lhe trazia mais a satisfação da troca prazerosa de antes, decidiu se separar. Algumas de suas atitudes começaram a lhe desagradar, como o de ser excessivamente rigoroso pelo modo de ser de Pedro, além de começar a desviar seu olhar do dela ao ver passar outra mulher.

Separados, os dois mantiveram um bom relacionamento. Permaneceram amigos muito mais por causa dela, que demonstrava maturidade e equilíbrio que quase veio a perder ao saber que logo efetivado o divórcio, engravidou outra mulher depois de uma noitada que mais tarde veio a gerar uma filha, sonho que acalentava enquanto estava casada. Ele nunca quis. Cícero sequer se casou com a moça. Mãe de outra criança, resultado de um breve relacionamento com outro incauto, não queria perder a compensação. Dessa forma, recebia duas pensões alimentícias que lhe garantiam uma vida financeira equilibrada.

O lado bom é que seu filho adorava a irmã, menina bastante sagaz e com um sensível olhar para o mundo. Magdalena gostava de receber a moça de oito anos em sua casa. Conversavam bastante, ela e Bianca. Ela se afligia pelo estilo de vida da mãe, mulher bonita e vaidosa que cria que o mundo se restringia à afetação das redes sociais. Percebia, mesmo tão nova, que a mãe cria que o mundo devesse girar em torno dela. Seu meio-irmão mais velho também se ressentia disso e chegou a dizer para irmã que a mãe se insinuava demais para seus amigos. Amava Pedro e gostava de estar com Magdalena. Espertamente, evitava elogiá-la para a mãe.

Quando Cícero chegou, a apanhou em lágrimas. Ela tinha acabado de ouvir um dos discos favoritos do casal. Vários deles contavam a sua história. A cada lançamento de Alceu Valença, Lenine ou Zeca Baleiro; Chico, Ivan Lins, Djavan ou Zé Ramalho; Caetano, Maria Bethânia ou Gal Costa e Marisa Monte, entre tantos, as histórias em canções derramadas de poesia e paixão, arte e consciência social pontuavam os momentos mais importantes de Magdalena e Cícero.  O amor por Elis Regina os uniu, ao frequentarem os mesmos ambientes.

Antes de girar a chave na porta, ele ainda pode ouvir “Essa menina, essa mulher, essa senhora / Em que esbarro a toda hora / Nos espelhos casuais / É feita de sombra e tanta luz / De tanta lama e tanta cruz / Que acha tudo, natural…”. Eles compraram o disco da Elis que tinha essa canção no início do casamento. Magdalena adorava cantá-la, mas sempre com o sorriso de quem admirava a construção da letra e se solidarizava com a mulher que vivia as contradições de trabalhar fora como artista e em casa, destinada, assim como a mãe, a fazer o papel de trabalhadora doméstica. Depois de vinte anos de casamento, quando voltava a cantá-la, mal conseguia sustentar a voz, entrecortada por soluços.

Foi por essa época que ela decidiu pelo fim do casamento. Ele tentou convencê-la de que com essa atitude viria a perder a qualidade de vida a qual estava acostumada, mas Magdalena se mostrou irredutível. Sua vida ia muito além daquela questão. Passada a vertigem dos primeiros tempos por estar sozinho, percebeu que fora a melhor decisão para os dois. Ela voltou a florescer e ele pode levar uma vida sem tantas demandas, a não ser as ligadas ao filho, que preferiu ficar com ele. Pedro culpava a mãe pela separação, a chamando de egoísta. O adolescente não conseguia entender o porquê da decisão dela pensar mais em si do que nele. Ficaram estremecidos por uns dois anos. Testemunhando as provas do amor nos momentos mais decisivos de sua vida, incluindo o apoio da mãe à vida artística como ator e bailarino, reviu seus posicionamentos, incluindo que a percepção de que o egoísmo ocorrera de sua parte.

Ao vê-la naquela condição, Cícero se aproximou comovido e a abraçou. Agradecendo a vida que tiveram juntos, pediu perdão ao seu ouvido. Ela sorriu e voltou a se lembrar da razão por ter se unido ao pai de seu filho. Ele continuava um homem bonito e embriagada pelo vinho e pelas lembranças que assomavam aos borbotões, se beijaram. Esqueceram os anos passados, as brigas pelo estranhamento crescente entre eles, a falta de cuidado e os carinhos que deixaram de ser feitos de parte a parte. O fogo redivivo espantou aos dois que se sentiram quase incestuosos. O que não impediu que se entregassem com prazer animal um ao outro. É como se voltassem a ser os jovens que se possuíam sempre que podiam, impedidos apenas quando a vida os chamava a comparecer às tarefas cotidianas.

Meia hora depois, exangues sobre livros e capas de LPs, choraram a despedida daquele ponto no Universo aonde foram muito felizes. Em mais uma semana, aquele lugar deveria estar esvaziado. Mas com tanto amor a pintar as paredes, a luz das lâmpadas ofuscadas pelo brilho das pessoas que pisaram aquele assoalho. Recordações de vozes a cantar as músicas preferidas que preenchiam as suas vidas, a de parentes e a de amigos; o espaço preferido de muitos, que nunca mais aportariam naquele que fora o lar do querido casal por duas décadas.

Magdalena e Cícero não se arrependeram daquele instante de eternidade. Sabiam que havia sido um ponto fora da curva temporal, uma singularidade cósmica que pertenceria só a eles. Voltariam para os seus amores. Ele estava gostando muito da nova namorada, ela amava o cantor do Rio. E repisariam as dores pessoais. A dele, porque nunca voltaria a encontrar a Magdalena dos primeiros tempos forte, destemida, alegre, inteligente desconhecida a cada nova mulher com a qual ficava. Ela, pela distância que a separava de quem amava e o desejo impossível de passearem como se ele fosse um desconhecido na multidão. Acalentava que vivessem momentos fugidios de amor e entrega, sempre intensos. Apenas. Exausta fisicamente e energizada mentalmente, Magdalena dormiu o sono tranquilo de quem teve um lindo passado, a espera do futuro desafiador de quem nunca temeu o novo.  

Penetrante*

Quando, pela noite adentro, eu a penetro
Não sou eu, nem de longe, nem de perto
Eu sou outros, eu sou diversos, eu sou forte
É meu tempo, é cedo, é tarde, eu sou a morte!

No corpo dela, eu me recordo, eu me visito
Estou em meu espaço, eu gozo, eu grito
Também sou eu, sou dela, eu suo, eu me sujo
É um mundo de pureza para qual eu fujo!

Assim, eu, ser penetrante pela noite escura
Busco de peito aberto, a minha sorte futura
Por mim, para mim, com ela, por ela, para ela
Para, juntos, amarmos em realidade paralela…

*Poema de 2015