BEDA / Dia Do Amor

Eu nunca cri no Amor. Ou melhor dizendo, nunca cri no Amor romântico. Sem sair do lugar comum, um exemplo da força do Amor senti vibrar em minhas fibras através da Dona Madalena, minha mãe. Ela foi importante para entender que havia essa energia que impulsiona as rodas da História. Mas não, não sou daqueles que acreditam que “Amor, só o de mãe”*. Duas ou mais pessoas podem desenvolvê-lo de forma salutar, sem o envolvimento de sentimentos negativos que surgem no rescaldo do incêndio que podem provocar se não forem conscientes. Ainda que a “consciência” total do que sentimos tenha significados múltiplos que desconhecemos conscientemente.

Ouço o meu Grilo Falante quase urrar de tanto rir, mas SEI que sem o Amor sequer existiria seres humanos caminhando pela face da Terra. O poder do Amor é tão grande que tanto Ódio espalhado não prevalece e cause a extinção da espécie humana. Tenho por mim que grãozinhos dessa energia tem impedido que montanhas de maus sentimentos produzidos a esmo progridam em proporção geométrica e destruam continentes inteiros num átimo.

Porém, a contradição maior reside justamente na instituição o Dia do Amor. Contido nas 24 horas do dia 14 de fevereiro – Dia de São Valentim – quando se comemora o Dia dos Namorados na Europa e Estados Unidos. São Valentim originalmente foi um Bispo da Igreja Católica que celebrava casamentos clandestinos. Viveu no Século III, marcado por seguidas guerras. O Imperador Cláudio II proibiu o casamento de soldados, supondo que sem ter famílias para quais voltarem, tornavam-se melhores combatentes. Preso e condenado à morte, Valentim recebia cartas e flores de pessoas agradecidas por tê-las unidas com a benção divina. Acabou por se apaixonar pela filha cega de um carcereiro. Milagrosamente, a fez enxergar novamente. Em 269 D.C., a 14 de fevereiro foi executado, deixando uma carta para seu objeto de amor romântico se despedindo com a frase: “De seu Valentim”. Em 496, o Papa Gelásio o declarou Santo. A intenção era que seus feitos fossem recordados, incentivando a união de casais. Talvez, na tentativa de aumentar o rebanho de fiéis. Duvidam?

O interessante é que o Amor, em sua concepção mais profunda, nunca foi o principal motivo para a união dos casais no decorrer do desenvolvimento da Sociedade. Outros interesses entravam na conta de pessoas que buscavam a associação familiar. Talvez, nas classes econômicas menos abastadas o interesse romântico perdurasse sobre o material, mas certamente nas classes mais aquinhoadas e nos setores dirigentes, o Amor atrapalhava mais do que ajudava. Não era incomum que nessas esferas os acordos propusessem que relacionamentos independentes fossem aceitos para satisfazer ao sentimento de mútuo pertencimento por Amor. Alguns diriam que a Paixão, ingrediente que embaralha o entendimento das pessoas, estimula o aumento da frequência cardíaca e acelera a velocidade da corrente sanguínea – sintomas desequilibradores de ordem física – seja mais preponderante em detrimento da atração pela beleza espiritual da parceria.

Não tem como quantificar nas forças envolvidas num relacionamento, quais são mais ou menos relevantes. O que sei é que a mulher, parte “fraca” no elo engendrado no Patriarcado, encontrou maneiras de fazer prevalecer os seus desejos e preferências em vários níveis, incluindo o sexual. Não foi incomum (assim como não é) que filhos de vários homens fossem e sejam de outros progenitores fora da equação matrimonial tradicional, ou por lado, é um dado mais tradicional do que não.

Gerado no Pathos, a voragem do desejo, ao qual frequentemente chamam de Amor, torna tudo muito confuso. Tanto que as regras do relacionamento monogâmico obedecem a critérios que tentam preservar a estrutura da Sociedade intacta diante de algo que não obedece a regramentos. Quando a pele ou o olhar ou ambos interferem no arranjo “ideal”, os contratos ficam em perigo de serem cumpridos. Leis foram criadas para impedir que os seres humanos, animais sociais, saiam por aí se confraternizando uns com outros, de múltiplas etnias, de diferentes crenças, novos e velhos, gêneros e identidades diversas em profusão. Talvez, caso ocorresse essa supressão dos sentidos controlados com multas, prisões e, a depender da Cultura, até a morte, não chegaríamos até aqui… o que poderia até ser bom, diante do que temos hoje como constituição social.

*Eu era ainda bem jovem e, um dia, ao subir para o ônibus que me levaria para casa, encontrei um tipo muito mal-encarado sentado na última vaga livre que ficava em um banco duplo. Ele estava de cabeça baixa e eu não tive coragem de pedir licença para me sentar junto à janela. O que até hoje se mantém de forma indelével em minha mente é uma tatuagem disforme feita em seu braço, em tinta azul, o qual um coração perfurado por uma flecha, indicava uma frase logo abaixo: “Amor, só de mãe!”.

Imagem: Foto por Designecologist em Pexels.com

Participam: Danielle SV / Suzana Martins / Lucas Armelim / Mariana Gouveia / Roseli Peixoto / Lunna Guedes / Alê Helga / Dose de Poesia / Claudia Leonardi

BEDA / O Homem Só*

Ontem, de manhã, fui ao supermercado para realizar as compras finais para a ceia de Natal. Pensei em chegar bem cedinho, antes das oito horas da manhã, tentando driblar o caos que costuma reinar nesta época do ano. O paulistano age como se fora manada e é óbvio que muitos tiveram a mesma ideia. O movimento era intenso.

Para evitar de passar com o carrinho por caminhos congestionados, costumo deixá-lo nos corredores menos movimentados e busco o que quero o mais rápido possível. Ao passar por uma das gôndolas, reparei em um senhor que se postava diante dos pernis, com ar grave, óculos puxados para baixo no nariz, observando os preços e as especificações, atentamente, com uma lentidão totalmente discrepante em meio à exasperação das pessoas em sua volta. Mãos para trás, o homem estava só e sua atitude o isolava ainda mais da turba em seu derredor.

Fui e voltei para cá e para lá e, vez ou outra, cruzava com o mesmo senhor que, com o irremovível ar circunspecto, passeava sem carrinho a observar os produtos em suas baias. Parava, se detinha a examiná-los, voltava a andar de forma contida, olhando para os outros clientes, normalmente famílias inteiras que caminhavam em grupo, apenas para desviar os seus passos do trajeto irregular que percorriam.

Eu e a Tânia nos separamos para agilizar as compras e, ao esperá-la, continuava a perseguir com o meu olhar aquele consumidor que destoava do ambiente, já que ele não pegava nada, apesar de parecer estar interessado em muitos produtos. Acompanhá-lo, passou a ser o meu passatempo por um momento. O homem só, sem carrinho ou com alguém que o ladeasse, deixou-me desconcertado. Parecia autossuficiente o bastante para demonstrar que não precisava de ninguém que o acompanhasse.

Ao deixar de comprar qualquer item, o homem só parecia dizer que abria mão da Sociedade de Consumo. Que ele precisasse estar no meio de tanta gente para reafirmar a sua solitude e independência continua a me consumir o pensamento, como se fora um espírito de Natal (do Passado, do Presente ou do Futuro?) a denunciar o meu conformismo em obedecer aos ciclos impostos pelo Sistema

*Texto produzido em uma véspera de Natal de um ano em que as “crianças” ainda estavam em casa, em tempo indeterminado…

Imagem: Foto por furkanfdemir em Pexels.com

Participam: Danielle SV / Suzana Martins / Lucas Armelim / Mariana Gouveia / Roseli Peixoto / Lunna Guedes / Alê Helga / Dose de Poesia / Claudia Leonardi

BEDA / Tragédias*

Este texto foi gerado pela visão de uma imagem que causou repulsa. Por que a foto parece tão controversa? Na falta dela, utilizei uma que mostra o segundo avião se aproximando da segunda torre atingida. Na foto controversa, víamos ao fundo o World Trade Center em chamas, logo após os ataques dos aviões, antes que fossem ao chão, a 11 de setembro de 2001. Enquanto isso, um grupo de pessoas parece estar relaxado, numa atitude que não deixava transparecer exaltação, preocupação ou tristeza, como se o que acontecia fosse um fato distante, no tempo e no espaço. Nada de mais…

Nada tão diferente do que presenciamos todos os dias, em ruas e esquinas das grandes cidades ou nos rincões mais isolados do nosso País. É claro que o que ocorre não é percebido de forma tão grandiloquente ou não parece ser tão bem fotografado. Contudo, de forma silente e contínua, mortes se sucedem talvez não aos milhares de uma vez, em grupos concentrados (a não ser em tragédias naturais potencializadas pelo descaso do poder público). Porém, na maior parte do tempo ocorre um a um e aos poucos. Muitas vezes, vemos acontecer do nosso lado, mas parecemos não nos importar, assim como o grupo descontraído tendo como cenário uma das maiores tragédias do século.

*Texto produzido por ocasião da publicação de fotos sobre a tragédia do World Trade Center nos seus dez anos.

Participam: Danielle SV / Suzana Martins / Lucas Armelim / Mariana Gouveia / Roseli Peixoto / Lunna Guedes / Alê Helga / Dose de Poesia / Claudia Leonardi

BEDA / Acordado

2014

O registro fotográfico acima data de exatamente nove anos. Usuário compulsivo de cabelos compridos – por influência do Movimento Hippie, que nunca me deixou -, eu os usei mesmo depois que começaram a escassear pouco a pouco. O que me conferia um ar de poeta rebelde Beatnik, o que não deixou de ser semente do Flowear Power. Os beatniks, surgiram na esteira do final da Segunda Guerra Mundial. Os hippies enfrentavam os horrores da Guerra do Vietnã como podiam, com protestos, estilo de vida alternativo e cantando que a força da flor venceria o canhão.

Nascido no início dias Anos 60, fui arrebatado desde pequeno, ainda que não tivesse exata consciência do que queriam expressar, assimilei o visual de cabelos revoltos como bandeira de minha postura de um sujeito que se sentia inadequado para viver a sequência de eventos a qual a Sociedade chamava de Vida. Eu achava totalmente estranho que não houvesse alternativas à “aquilo”. O meu cabelo despenteado sempre foi símbolo, para mim, de minha inconformação e inconformidade.

Porém, houve um período em que desbastei os cabelos e comecei a parecer um sujeito normal. Por volta dos 17, encetei pelas filosofias orientais e percebi que a paz que procurava tinha que vir de dentro para fora. Estava decidido em caminhar pelas sendas do autoconhecimento e evitar interagir com os “seres humanos comuns”. Ali, eu percebi o claro sinal da vaidade a qual considero a minha ruína. É difícil escapar às conformações mentais de quem está encarnado. Lutava arduamente para que ela não se expressasse de maneira tão forte.

Exteriormente, aparentava a humildade de um monge, em roupas e postura. Não queria chamar a atenção de nenhuma maneira. Na escola, passei a sentar com a “turma do fundão”, o que chamou muito mais atenção para mim, já que a minha voz sequer era ouvida. Não deixou de haver identificação com os sujeitos que eram bem mais interessantes do que a falange estudiosa. Também já havia notado o quanto a escola, principalmente aquela dos Anos 70, tentava enquadrar todos na mesma forma, para torná-los bons e obedientes cidadãos pagadores de impostos. Apesar de ler muito, deixei de estudar com afinco a maioria das matérias. O que fez com fosse reprovado em Química duas vezes.

Dando um salto no tempo, já casado e com três filhas, voltei ao estilo mais solto, de quem não tinha nada a provar. Mesmo porque, a minha alma inquieta eu sei que continuará a me colocar à prova nas demandas que me mobilizam profundamente. E com a certeza que posso pagar para ver. Hoje, acordado, ao olhar pelo espelho o meu rosto marcado pelo tempo, pelos brancos a tomarem conta da paisagem, percebo que estou preparado para sofrer a decadência que se aproxima – consequência direta de estar vivo – benção que nos reserva o Tempo.

2023

Participam: Danielle SV / Suzana Martins / Lucas Armelim / Mariana Gouveia / Roseli Peixoto / Lunna Guedes / Alê Helga / Dose de Poesia / Claudia Leonardi

BEDA / A Arte De Ver*

Um interessante painel de arte e eu só conseguia olhar para as linhas de rachaduras sinalizadas com giz, marcando o tamanho que apresentavam. Dez anos antes, estava estacionada no túnel do Metrô Consolação. Ainda estará? A obra e as rachaduras? Enquanto esperava o trem que me conduziria ao Paraíso, ficava a conjecturar que mal me assolava (e ainda perdura), que me faz olhar para além do que deveria ser o principal alvo de minha atenção? O que me conduz, me condiz?

*Postagem de 2013

Participam: Danielle SV / Suzana Martins / Lucas Armelim / Mariana Gouveia / Roseli Peixoto / Lunna Guedes / Alê Helga / Dose de Poesia / Claudia Leonardi