Seis Anos De Bethânia

Em 17 de Maio de 2016, escrevi: “Pois, é!… Aconteceu de novo… A Tânia e a Romy se compadeceram de uma doidinha de saudade perdida na região… Uma pediu, a outra a resgatou… Agora, Bethânia parou de chorar, sentada em meu colo… A academia adiada, enquanto descansa de seu sofrimento a nova fêmea da família, pelo menos por um tempo…”.

Hoje, a Bethânia cresceu, mas nem tanto. Gosta de agir como se fosse uma gata e, apesar de suas perninhas curtas, salta a mais de um metro de altura, subindo em muretas, telhados, pias e, eventualmente, em mesas. Destruiu praticamente sozinha um conjunto de sofás e vez ou outra acusa travesseiros e almofadas de atacá-la, os rasgando. Sofre bastante com o frio, odeia roupinhas e prefere ficar debaixo das cobertas nas camas que a aceitar. Quando a Romy foi resgatá-la perguntou para uma senhora que estava próxima se era dela. A resposta que ouviu foi: “ninguém quer isso daí, não!”.

Nós quisemos “isso daí”, bicho ciumento que ganhou um capítulo no meu primeiro livro pela Scenarium Livros ArtesanaisREALidade – por essa característica. Teimosa, late sem parar normalmente quando a Lívia está em reunião no Home Office. Complexa,  é difícil explicar a personalidade forte dessa “pessoa”…

Nomes De Ruas

Era costume, em tempos idos, nomear ruas e logradouros utilizando referências baseadas em funções, topografias, acontecimentos, entre outras justificações – Curtume, Ladeira Porto Geral, Rio Tietê, Congonhas etc. Bem novo, eu me lembro de ler um poema de Mário de Andrade – que dá nome à Biblioteca Municipal de São Paulo, chamado de “A Serra Do Rola-Moça”, que dizia respeito a um acidente que vitimou uma jovem senhora.

“Ali, Fortuna inviolável!
O casco pisara em falso.
Dão noiva e cavalo um salto
Precipitados no abismo.
Nem o baque se escutou.
Faz um silêncio de morte,
Na altura tudo era paz …
Chicoteado o seu cavalo,
No vão do despenhadeiro
O noivo se despenhou.

E a Serra do Rola-Moça
Rola-Moça se chamou.”

Tudo era mais poético e vibrante. Com o desenvolvimento das cidades, a burocratização das relações, passou-se a usar nomes de personalidades políticas, artísticas, administrativas, históricas e outros. Com a construção de condomínios, para atrair compradores, em já vi um bairro inteiro surgir com o nome de Parque Higienópolis em plena Barra Funda.

No entanto, há circunstâncias que trabalham para criar nomes interessantes. Numa avenida perto de casa – Inajar de Souza, um jornalista – há um empreendimento que está sendo anunciado como Mundo Apto. Pronto! Viajei naquele nome. Um mundo apto a ter uma tendência, uma capacidade natural ou adquirida para realizar qualquer coisa. Obviamente que apto é uma abreviação de apartamento, mas se houve intenção do criador em revelar funções múltiplas com um nome incrível ou mesmo que não tenha sido intencional, o resultado foi inspirador.

A minha rua era numerada – 2 – já que o bairro se formou através de um loteamento de uma antiga fazenda. Depois, chamou-se Santa Bárbara, passou para Arara Azul (nome de pássaro, como outros da região) até assumir definitivamente um nome próprio, de um professor, pelo menos.

Em caminhadas para ir à academia, comecei a passar em frente de uma passagem curta e estreita que houveram por bem dar o nome de uma pessoa que tive que pesquisar para saber de quem se tratava. Manoel Lino de Aveiro Vasconcelos foi um comerciante da região da Vila Nova Cachoeirinha. Dono de uma padaria no bairro, Vasconcelos chegava em casa de carro, na rua Monte São Martinho (onde mora meu irmão), quando foi rendido por pelo menos quatro assaltantes. Os bandidos obrigaram o comerciante a entrar no imóvel. A vítima estava acompanhada da mulher e do filho. O padeiro levou um tiro no peito ao tentar defender a mulher de uma agressão durante o assalto. Ele não resistiu ao ferimento e morreu. Os criminosos fugiram, mas posteriormente foram identificados e presos. 

Este texto deveria parecer mais leve, mas grandes nomes de instituições, praças, avenidas, ruas e outros logradouros sofreram violências e foram para as páginas da História justamente por isso, como Tiradentes, enforcado e esquartejado, pela Inconfidência Mineira e o mártir Frei Caneca, fuzilado por ser líder da Confederação do Equador, por exemplo. Ser executado por tiros deveria ser uma situação anômala, principalmente fora de uma guerra. Porém, tem se tornado cada vez mais prosaica na guerra invisível que é viver sob um Sistema que tem os bens materiais como égide de satisfação e signo de sucesso, em que grande parte da população viva em estado de precariedade e desequilíbrio social, ideal… para gerar conflitos na Sociedade.

O Senhor Vasconcelos ter vindo a nomear uma travessa pela qual pouca gente sequer preste atenção no nome tem a ver com o prestígio local que angariou como comerciante conhecido. Seus usuários são pedestres que se encaminham ao terminal de ônibus, ao centro comercial ou quando voltam para a casa. Estão pensando em tanta coisa que talvez nem percebam que estejam pisando no chão. Não fosse eu um arqueólogo das pequenas coisas, jamais saberia que aquele foi um homem com o qual já havia cruzado umas três vezes ou que já vira sair de casa, uma vez. A travessa, se tanto, a atravessei apenas em uma ocasião.

Mã*

Mães, eu desejo a todas vocês um dia em que possam usufruir do amor de seus filhos, estejam por perto ou distantes, fisicamente, o que não talvez não importe tanto, principalmente porque mães e filhos apresentam uma conexão umbilical, literal, durante a gestação, e espiritual, sempre.

Não conheço nenhum vínculo tão íntimo quanto o de uma mãe e seu filho. De certa forma, para confessar um sentimento menor, eu invejo esse poder incrível que vocês, mulheres, detêm. Quando as minhas filhas reclamaram por não ter o dia exclusivamente voltado para homenagearem a Tânia, brinquei que elas só eram suas filhas porque um dia eu decidira ser pai e formar família. Foi apenas uma tentativa canhestra para caber nesse amplo sentimento de gratidão e benção.

Porém, sempre haverá um porém, essa ligação natural também passa por ser construída e, portanto, pode ser destruída quando emoções efervescentes vêm a tona, conflitando os relacionamentos bastante fortes entre dois seres que se amam, mesmo quando não querem admitir.

Afora isso, os filhos têm dificuldade em aceitar que as mães sejam, também, mulheres, que carregam sonhos pessoais que fogem da alçada circunscrita a eles, seus filhos. Segundo essa postura, mães separadas de seus pais não poderiam ter desejos, não deveriam querer arranjar namorados, não precisariam de outra pessoa ocupando os seus pensamentos ou ter ideias que não sejam voltadas exclusivamente para eles. Onde já se viu?

Se ela vier a conseguir vencer as resistências, tenderá buscar para si alguém que igualmente pareça ser um bom pai, uma concessão ao fato de ser mãe, além de mulher. Por tudo isso e por muito mais, ser mãe é sofrer com todas as contradições, por ser a maior, por ser a melhor, por ser a total, por ser a absoluta definição do amor.

A foto acima é de Maria Madalena Nuñez Y Nuñez Blanco Prieto Ortega, ao completar 77, em 2009. Ela nos deixaria fisicamente em fevereiro do ano seguinte.

*Texto de 2015. Essas definições de uma mãe, parte da minha experiência com a Dona Madalena. Atualmente, mesmo tendo passado apenas oito anos, mudei muito fortemente parte das minhas posturas. Principalmente quando vim a saber sobre episódios de trauma pós-parto em que a puérpera pode vir a sofrer, com sintomas de medo intenso, desamparo, perda de controle e horror, podendo rejeitar a seu bebê. Ou quando por circunstâncias evitáveis, mães prefiram fechar os olhos para os assédios sexuais sofridos por suas filhas ou abusos físicos e psicológicos por aos filhos perpetrados pelo novo companheiro.

As Pedras

“Com as pedras do caminho, construirei a minha casa” ou “com as pedras que me atirarem, construirei o meu castelo”. Acho mais pertinente a primeira frase, mais afeita à minha personalidade. A segunda, pretenciosa, ainda que demonstre fortaleza de propósito.

No entanto, não creio que para a Maria Bethânia Ortega, nada disso importe. A Tânia, para cercar a nossa mangueira, em substituição à grama, pisoteada e arrancada pelos cães, decidiu colocar pedras brancas de jardim. Esse visual limpo, parecia ser solução para evitar que a terra fosse escavada pela comunidade canina. Bethânia, simplesmente ficou fascinada por elas. Começamos a encontrá-las dispersas nos mais diversos pontos da área da casa, carregadas pela pequena boca da artista — na cama do casal, na sua própria caminha, no corredor dos quartos, em cima do sofá ou espalhadas pelo quintal.

A Lívia disse que numa das ocasiões, encontrou um desenho triangular, como se fosse uma obra artística ou disposição cabalística. Numa dessas, encontrei três pedras colocadas do mesmo lado, a cada dois degraus. Intencional ou não, de início, eu a admoestava por agir dessa maneira, mas ao perceber que a atração pelas pedras era mais forte do que ela, deixei de falar num tom acusador. Hoje, ao chegar de um compromisso, ela me recebeu com uma pedra na boca. Pensei até que fosse um presente pessoal, mas permaneceu com ela até deixar numa das casinhas.

Pela Internet, cheguei a ver vários vídeos de cães de aparências similares, variações da raça dachshund, que praticam os mesmos atos com objetos diferentes, desde arcos a bichos de pelúcia. Antes, outras coisas sumiam e quando as encontrávamos, estava ou na caminha dela ou dentro dos vasos das plantas, enterrados. De certa forma, talvez esse fascínio pela pedras brancas evite que não suma outras tantas coisas que só venhamos a descobrir tempos depois.

Outra curiosidade é que ela tenha preferência pelo mesmo formato de pedra, mais plana. Se bem que as arredondadas, como são em maior número, também compareçam ao acervo artístico da Bethânia. Essa minha filha já compareceu como tema em meu primeiro livro — REALidade, pela Scenarium — pelo ciúme expresso por latidos sentidos quando acaricio as suas pares da família. Tem um olhar expressivo, uma inteligência incrível, uma postura que comunica os seus desejos de maneira clara e, aparentemente apresenta pendores artísticos e místicos. Ágil, é uma acrobata que anda pelas muretas como se fosse uma gata.

Dada a crença que sejam espíritos em evolução, é bem possível que, assim como outras criaturas da sua espécie, eu volte a encontrá-la em forma humana e possamos interagir com conversas que faria com que a conhecesse mais profundamente. Porque eu não alcanço toda a sua complexidade, mas sei que ela me entende completamente…

“A” O Pipa

Uma pipa ficou pendurada na beira do telhado da varanda da minha casa. Estava inteira, mas com o tempo, rasgou aqui e ali com o movimento do vento ocasional. Vê-la presa, qual um pássaro que se debatia amarrado a uma armadilha, fez com me apiedasse e a retirasse de onde estava. Não era um artefato de beleza especial e decidi destruí-lo. Cometi o erro de virá-lo e perceber os detalhes de sua confecção – as varetas bem-posicionadas, as linhas de costura as alinhando devidamente, o papel de seda delicadamente colado a elas. Quem fez a pipa, além da habilidade, supus que tenha juntado sua energia às forças antigravitacionais da imaginação que antecipou vê-la singrar o mar dos céus – uma obra feita para voar.

Isso me inspirou um poema que colocaria mais ou menos nesses termos, mas o voo da pipa mudou a sua trajetória quando publiquei a foto.  Uma amiga me questionou se sabia dos últimos acontecimentos referentes a acidentes graves provocados por pipas. Na verdade, não são as pipas que devam ser condenadas, mas quem as utilizam com linhas besuntadas de cerol – uma mistura cortante de pó de vidro e cola de madeira – para colocá-las ao alto.

A intenção de quem faz isso é, supostamente, se defender de outras pipas igualmente preparadas para cortar as linhas adversárias.  De diversão inocente, a atividade inventada pelos chineses há milênios de anos se transformou em luta aérea. São empinados pipas como se fossem aviões da Segunda Guerra em movimentos ousados – mergulhos, rasantes, embicadas – para defender os seus territórios sobre os Oceanos de ruas.

Tudo bem, se essas pipas não descessem ao nível da terra dos mortais e provocassem acidentes fatais ao cortar pescoços de motociclistas, ciclistas e pedestres. Nos “menos” graves, há casos de mutilação de dedos. Além de haver relatos de acidentes com aeronaves e paraquedistas. Tudo é muito triste, se considerarmos que o espírito de competição engendrado pelo Sistema sob o qual vivemos não estimulasse aos homenzinhos “ganharem” o espaço azul como únicos soberanos.

Não foi por outro motivo que nas oportunidades que surgiram de empinar pipas com as minhas filhas, evitei. Imaginava que como não me defenderia usando “cortante”, a cada uma que colocasse no alto, ocorreria uma perda para a distância, lenta e decepcionante. Outra coisa sobre o qual Farfalla me chamou a atenção, é que chamava o objeto em discussão pelo artigo masculino – “o” pipa.  Conjecturei que talvez fosse uma imposição inconsciente do Patriarcado recebida na meninice sobre algo de tamanho poder – voar para além do corpo.