BEDA / Fernanda Young*

Em 2019* escrevi: “Precisamos sempre confirmar a beleza, mesmo que haja momentos que não a toquemos. Como o crepúsculo de hoje, após dias nublados, ainda que nos faça lembrar que nosso país esteja a arder em chamas. Para Fernanda Young.”

Parece que após os eventos inaugurados um ano antes, em que por uma série sortilégios e atividades subterrâneas ligadas às instituições comandadas por asseclas, ascendeu um movimento que jazia no esgoto da Sociedade brasileira e que eclodiu feito vulcão de dejetos ideológicos, vindos diretamente de nossa tradição de País a ser o último a declarar o fim da Escravidão, oficialmente.

Formas de aprisionar parte da população continuam em atividade e quaisquer iniciativas que visam desmontar o sistema escravista — agora mantido através de baixos salários — são atacados por todos os lados, incluindo setores supostamente independentes, em tese, como a imprensa “oficial”. Para os que escapam do que seja correto, restaria a prisão, mas ela é utilizada para encarcerar a população mais diretamente afetada pelo Sistema.

Na época do enunciado acima, a notícia do passamento de Fernanda Young me deixou um tanto abalado, aliado ao fato de estar cada vez mais surpreso ao perceber o quanto boa parte de nossa população tinha abraçado ideias tão antiquadas que deixariam George Orwell estupefato por ver as suas previsões serem demonstradas, ao estilo de 1984, de forma tão canhestra. Pessoas como Young, sensíveis, inteligentes, antenadas, sofreram muito durante o tempo que o Ignominioso Miliciano percorreu a vida brasileira com as suas ações de cunho fascista.

Mas a sua presença em liberdade continuou a estimular a propagação da ignorância como algo a ser elevada à condição de predicado a ser comemorado. E então, seguidores dessa tática de desmonte da sanidade como linguagem atraente para tantos, com a mentira como mantra comandante das estratégias de suporte, mais novos e preparados para atender às expectativas daqueles que preferem “tiro, porrada e bomba” em vez de argumentos cabíveis para a intermediação de conflitos, se sobressaem. Temos percebido esse fenômeno acontecer ao observar os novos candidatos às próximas eleições municipais de 2024.

Fernanda Young não merecia ver o que aconteceu após o dia 25 de Agosto de 2019, dia de sua partida. Talvez tenha sido o único benefício de vermos uma das vozes mais incisivas da nossa geração nos deixar órfãos de seu talento.

O Grande Irmão

Quando George Orwell criou, em 1949, a figura do Grande Irmão de “1984”, aquele que pairava como o absoluto observador que a tudo via – percursos, supostas intenções e ações dos que compunham a sociedade – a referência era o viés opressor e totalitário das ideologias políticas da primeira metade do século XX. O “Big Brother”, personagem praticamente onisciente, interferia diretamente na vida humana em todos os seus aspectos, formulava diretrizes e estabelecia regras específicas para o comportamento de cada pessoa da nação. Como que confinados ao Jardim do Éden, era Deus a ditar o certo e o errado para a convivência harmônica de seus cidadãos idealmente despersonalizados. A não-vida era invadida e quem quebrasse algum mandamento, sofria graves sanções.

Quando o programa Big Brother foi criado, nos estertores do século passado, a ideia era que os participantes da bolha competissem por um prêmio através de uma sequência semanal de eliminações — um a um — por meio de jogos. Aproveitando a cada vez maior participação do público, ocorria a escolha de quem deveria sobreviver até o fim, a base da extinção dos oponentes. Transformado em entretenimento, o confinamento de pessoas para serem observadas como os outros animais em zoológicos, parece emular certas condições que se amplificam em grande escala ao serem testemunhadas por milhões de espectadores, que despendem a vida em vigiar um pequeno grupo, a decidirem quem deve sobreviver ou não. Nesse sentido, estabelece-se uma inversão interessante em relação ao Grande Irmão original. Para a “alegria” de quem vê o programa, a direção formula tarefas ou situações que põem os componentes em conflitos constantes experimentos de ratos no labirinto ou gladiadores na arena de gladiadores modernos.

As personalidades dos participantes parece estabelecer um critério razoável para que a simpatia ou a antipatia recaia sobre tal e tal personagem do programa. O clima psicológico pode ir às raias do estresse total até a exaustão. Quem melhor se adapta às circunstâncias cada vez mais inóspita, encontra maneiras de superar as adversidades. Começam a criar grupos, a fazer conchavos, a traçar estratégias gerais e a desenvolver táticas de guerrilhas para buscarem derrotar os seus inimigos que, se der tudo “certo”, poderá ser o seu aliado de hoje.

Uma vez dentro da casa-bolha, pouco a pouco os participantes esquecem que estão sendo vigiados e começam a agir sem travas, principalmente quando estão alcoolizados — outro expediente desequilibrador: produzir festas regadas a bebidas destiladas. Deus, nesse caso, lhe apraz que todos os pecados sejam cometidos. Que haja nudez, luxúria, ódio, vingança, vaidade e outros sentimentos exacerbados pelo isolamento. O amor (ou o sexo) costuma ser bem visto, de tal maneira que, por conveniência, namoros são iniciados por acordo para angariarem simpatizantes.

No Brasil, os produtores parecem ter transformado a “casa mais vigiada” num campo de projeção do comportamento da nação, feito um imenso espelho de nossas mazelas éticas. Em determinado momento, a participação dos vigilantes é avaliada por outros vigilantes. Grupos de defensores e detratores dos participantes se perfilam frente a frente numa insana batalha de mútuo “cancelamento”, para usar uma palavra da moda. O cancelamento é como se fosse a morte na vida virtual, tão definitiva quanto a real. Chego a ver os soldados invadirem as casas dos vencidos, derrubarem as suas paredes e a salgarem o solo do terreno profano para que nada mais nasça no futuro.  

Por vezes, sinto que o planeta Terra seja, igualmente, um local desse tipo de experiência, como se deuses brincalhões passassem a eternidade a formular jogos de guerra para verem os habitantes da casa a se matarem até que reste um único vencedor que, muito provavelmente. será esquecido… porque quem sempre vence é o jogo.