Quando George Orwell criou, em 1949, a figura do Grande Irmão de “1984”, aquele que pairava como o absoluto observador que a tudo via – percursos, supostas intenções e ações dos que compunham a sociedade – a referência era o viés opressor e totalitário das ideologias políticas da primeira metade do século XX. O “Big Brother”, personagem praticamente onisciente, interferia diretamente na vida humana em todos os seus aspectos, formulava diretrizes e estabelecia regras específicas para o comportamento de cada pessoa da nação. Como que confinados ao Jardim do Éden, era Deus a ditar o certo e o errado para a convivência harmônica de seus cidadãos idealmente despersonalizados. A não-vida era invadida e quem quebrasse algum mandamento, sofria graves sanções.
Quando o programa Big Brother foi criado, nos estertores do século passado, a ideia era que os participantes da bolha competissem por um prêmio através de uma sequência semanal de eliminações — um a um — por meio de jogos. Aproveitando a cada vez maior participação do público, ocorria a escolha de quem deveria sobreviver até o fim, a base da extinção dos oponentes. Transformado em entretenimento, o confinamento de pessoas para serem observadas como os outros animais em zoológicos, parece emular certas condições que se amplificam em grande escala ao serem testemunhadas por milhões de espectadores, que despendem a vida em vigiar um pequeno grupo, a decidirem quem deve sobreviver ou não. Nesse sentido, estabelece-se uma inversão interessante em relação ao Grande Irmão original. Para a “alegria” de quem vê o programa, a direção formula tarefas ou situações que põem os componentes em conflitos constantes — experimentos de ratos no labirinto ou gladiadores na arena de gladiadores modernos.
As personalidades dos participantes parece estabelecer um critério razoável para que a simpatia ou a antipatia recaia sobre tal e tal personagem do programa. O clima psicológico pode ir às raias do estresse total até a exaustão. Quem melhor se adapta às circunstâncias cada vez mais inóspita, encontra maneiras de superar as adversidades. Começam a criar grupos, a fazer conchavos, a traçar estratégias gerais e a desenvolver táticas de guerrilhas para buscarem derrotar os seus inimigos que, se der tudo “certo”, poderá ser o seu aliado de hoje.
Uma vez dentro da casa-bolha, pouco a pouco os participantes esquecem que estão sendo vigiados e começam a agir sem travas, principalmente quando estão alcoolizados — outro expediente desequilibrador: produzir festas regadas a bebidas destiladas. Deus, nesse caso, lhe apraz que todos os pecados sejam cometidos. Que haja nudez, luxúria, ódio, vingança, vaidade e outros sentimentos exacerbados pelo isolamento. O amor (ou o sexo) costuma ser bem visto, de tal maneira que, por conveniência, namoros são iniciados por acordo para angariarem simpatizantes.
No Brasil, os produtores parecem ter transformado a “casa mais vigiada” num campo de projeção do comportamento da nação, feito um imenso espelho de nossas mazelas éticas. Em determinado momento, a participação dos vigilantes é avaliada por outros vigilantes. Grupos de defensores e detratores dos participantes se perfilam frente a frente numa insana batalha de mútuo “cancelamento”, para usar uma palavra da moda. O cancelamento é como se fosse a morte na vida virtual, tão definitiva quanto a real. Chego a ver os soldados invadirem as casas dos vencidos, derrubarem as suas paredes e a salgarem o solo do terreno profano para que nada mais nasça no futuro.
Por vezes, sinto que o planeta Terra seja, igualmente, um local desse tipo de experiência, como se deuses brincalhões passassem a eternidade a formular jogos de guerra para verem os habitantes da casa a se matarem até que reste um único vencedor que, muito provavelmente. será esquecido… porque quem sempre vence é o jogo.
Seu texto me fez lembrar do filme Mother que faz uma crítica feroz a estupidez humana. O Big brother para mim faz o mesmo. A maioria se incomoda com certos comportamentos por se enxergar neles.
Não vi Mother e agora fiquei curioso. A sua afirmação é tão simples quanto real. Quando algo me incomoda, eu procuro saber a razão e normalmente tem a ver com a minha postura ou comportamento.
Eu estava em NY quando o filme estreou e acho que fui a única a sair do cinema em cóleras. Queria ver de novo e de novo. Achei muito bom. Fiquei a tagarelar as cenas e confesso que achei maravilhoso ver Michele Pfifer na personagem da primeira mulher e um escritor na pele de deus com um ego absurdo. rs