05 / 06 / 2025 / Prato Cheio

O prato acima está cheio. Não, não estou falando de comida, mas de memórias. O que também pode ser um rico alimento para a alma. Até o outro dia era um prato simplesmente, igual a outros que temos por aqui, até a Tânia me dizer que a minha mãe deu a ela porque era o meu favorito. Talvez fosse em relação a outros, mas não me lembro de preferi-lo como tal. Mas a minha mãe me conhecia melhor do que eu, não duvido que o utilizasse mais frequentemente. De qualquer forma, passei a utilizá-lo mais vezes desde então. É como se tentasse reaver as lembranças que o preenchia de antigos sabores. Reparei apenas que o arroz e feijão ficou mais apetitoso. A mente é realmente um grande ingrediente em qualquer prato…

Contra A Corrente

Observo, pelo prédio que estou, que o vento movimenta as nuvens como se fora ondas no mar, enquanto que, no recife de corais abaixo, pululam seres em suas fainas diárias de nadarem contra a corrente, em busca de alimento.

São João Gualberto*

O Humberto e eu fizemos uma caminhada até o Horto Florestal ou, como é oficialmente nomeado, Parque Estadual Alberto Löfgren. A sua origem se deu no século XIX, quando foi desapropriado o Engenho da Pedra Branca, em 1896, para instalação do Horto Botânico. O naturalista e botânico sueco Albert Löefgren foi o seu primeiro diretor, de 1907 a 1909. O Horto Botânico tornou-se a base para a criação do Serviço Florestal, hoje Instituto Florestal, órgão vinculado à Secretaria do Meio Ambiente do Governo de São Paulo.

Lá, encontramos um pedestal com uma imagem de São João Gualberto, padroeiro da floresta. Fundador da Ordem dos Monges Beneditinos de Vallombrosa, seguindo com rigor a disciplina e austeridade às Regras da Ordem, João Gualberto implantou no Vale de Vallombrosa — no território da Comuna de Reggello, na cidade metropolitana de Florença, na região italiana da Toscana — um centro tão avançado e respeitado de estudos que a própria Igreja enviava para lá seus padres e bispos para aprofundarem seus conhecimentos. Todos oravam e trabalhavam a terra, replantando os bosques do Vale e plantando o alimento do mosteiro, por isso são considerados precursores da agricultura auto-sustentável.

Considerado herói do perdão — perdoou o assassino de seu irmão, abrindo os braços e caindo de joelhos, implorando perdão e clemência em nome de JesusJoão Gualberto fundou outros mosteiros, inclusive o de Passignano, na Umbria, onde morreu no dia 12 de julho de 1073. Nos séculos seguintes, esses monges se especializaram em botânica, tanto assim que foram convidados para fundar a cátedra de botânica na célebre Universidade de Pavia. Várias instituições, como as de Pádua, de Roma e de Londres buscavam naqueles mosteiros os seus mais capacitados mestres no assunto. Canonizado em 1193, São João Gualberto foi declarado Padroeiro dos Guardas Florestais pelo Papa Pio XII, em 1951.

Corria o mês de de Junho de 2021. Humberto e eu, caminhamos até o Horto Florestal, distante 4Km de nossas casas, utilizando máscaras, obrigatórias ainda que ao ar livre. Vivíamos então, um das fases em que uma das variantes da Covid-19, imperava, causando muitas mortes.

Formigas

saio para caminhar assumo
apenas a linha vermelha que limita
a grama do piso da ciclovia
da ilha central da avenida farei
um tiro rápido pelo trajeto
encontro nossos formigueiros e de outras formigas
corajosas na faina de buscar folhas
atravessar chãos pisados e repisados
reprises de filmes antigos
mortas por rodas e pisantes
alguns matariam por diversão?
pelas pistas versos e reversos
formigas motorizadas brecam
ao sinal vermelho do semáforo
obedecem os sem foro
de apelação
os desesperançados
atraídos pela ação
agem por impulso
correm mal se socorrem
de suas mentes  e corações
devo permanecer a equilibrar pés
sobre a contínua linha
corpos de formigas jazem
a centenas operárias que sustentam
a colônia de alimento e cuidado
obedientes ao sistema de castas
defendem cuidam das ovas
as mais velhas as mais novas
assim como as maiores
estas iludidas se imaginam rainhas superiores
muito mais ainda as piores
se ainda comessem flores…

BEDA / Scenarium / Para Depois De Amanhã*

Quase como se fora um concurso desses que acontecem na TV, nós, os participantes do curso, combinamos de realizar encontros em que faríamos, cada um de nós, uma especialidade da culinária que tivesse marcado a nossa vida. A ideia se desenvolveu a partir de uma tarefa para desenvolvimento da escrita em primeira pessoa — curso da Lunna — sobre isso. Comecei a buscar na memória, um cheiro ou sabor que trouxesse a carga da infância ou juventude que fosse uma forte referência. De alguma forma, tudo o que ocorre no curto período da nossa mocidade, o que para alguns poderá durar uma existência inteira, enquanto para outros não passa da adolescência ou até menos, parece condensar a formação de nossa personalidade, incluindo o que gostamos de comer.

Para traduzir a minha vivência em apenas um prato, logo de cara me lembrei do prosaico e popular feijão. Gosto tanto de feijão que chego a fazer sanduíche dele, com o tênue azeite como acréscimo, não mais. Para isso, reduzo o caldo de feijão na panela, acrescento o azeite e coloco no pão francês ou de forma. Uma delícia… De outra forma, o acompanhamento do arroz é quase inevitável, mas nem sempre gosto de ambos quentes. Muitas vezes esquento bastante o feijão e acrescento por cima o arroz bem gelado. Única vez que cometo o supremo sacrilégio de não colocar o arroz por baixo ou de lado. Afinal, está na Lei que feijão deve ser sempre posto por cima do arroz.

Objeto da cozinha abolido em alguns países, a panela de pressão é tradição na cozinha brasileira. O próprio soar da válvula a girar loucamente na preparação do feijão, já me levava a saboreá-lo de antemão. A casa recendia àquele olor dos deuses. Após o seu cozimento, minha mãe acrescentava os temperos que davam o toque especial.

— Mãe, como é que deixa o feijão nessa consistência?

— É feijão jalo, meu filho, cozido no tempo certo.

— E essa folha?

— Louro… Junte a ela cebola, alho fritos no óleo de soja. Não esqueça do sal.

Esse diálogo nunca tive com a minha mãe. Apenas refaço o que ela fazia, sem receitas escritas guardadas em caderno. O tempo, senhor dos condimentos, me ajudou a fazer o melhor prato possível para os amigos que compartilhariam da receita de minha personalidade em forma de alimento. Isso, talvez me deixasse inseguro, mas se alguma coisa a idade me ensinou é que nunca ficaria curado dessa insegurança. Muito, porque, me confortava saber-me o mesmo de sempre.

Gostaria de relatar que a Lunna tenha sido a última a chegar, mas a bem da verdade é que às 12h em ponto já havia aportado para o almoço. Há alguém mais irritante do que aquele que cumpre os horários? Marcão e Jane a acompanhavam. Carol, a moça de cabelos vermelhos e portadora do mais belo sorriso, surgiu, diáfana, logo depois, aclamada pelos latidos das peludas que moram em casa. Deviam estar comemorando a chegada de mais uma pessoa para brincar ou sentiam cheiro de gato. Mariana, encapotada por causa do clima bem diferente de onde a mulher-borboleta viera, deve ter se sentido confortável com o ambiente verde que encontrou em casa. Duas borboletinhas vermelhas adejavam em torno de sua cabeça, a recepcioná-la. Isabeau, a mulher mais requintada que conheci, a ponto de não dar ênfase a tanta elegância, chegou com o Lionel e logo espalhava sua jovialidade pela casa.

Para acompanhar o feijão, fiz arroz ao modo de Dona Madalena, acompanhado de macarrão cabelo de anjo quebrado em pequenos pedaços, bem temperado com cebola, alho e sal. Para acompanhar, pepino, alface, tomate, cebola, berinjela, queijo mozarela em pedaços com orégano, ovos cozidos e batatas gratinadas, tudo em separado. Cada um deveria montar a sua salada. Fiz pãezinhos de batata para serem ingeridos antes, com manteiga ou junto com a comida. Evitei apresentar carne branca ou vermelha como “mistura”, como dizemos na Periferia. Mas abri exceção às manjubinhas, acompanhadas de rodelas de limão. Para beber, suco de maracujá colhido em casa. Como sobremesa, doce de banana nanica, também de casa. Após o almoço, as conversas giraram em torno de assuntos que viajavam o planeta e se embrenhavam por terras inóspitas, mas sempre com um traço de humor. Talvez fosse efeito do licor de jenipapo, que rolou solto. Mais tarde, como a despertarmos de um sonho, tomamos café feito no coador, saboroso e docemente amargo, assim como a vida.

*Texto derivado de um exercício do Curso Narrativa Em Primeira Pessoa, ministrado por Lunna Guedes.

B.E.D.A. — Blog Every Day August

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