BEDA / Scenarium / Para Depois De Amanhã*

Quase como se fora um concurso desses que acontecem na TV, nós, os participantes do curso, combinamos de realizar encontros em que faríamos, cada um de nós, uma especialidade da culinária que tivesse marcado a nossa vida. A ideia se desenvolveu a partir de uma tarefa para desenvolvimento da escrita em primeira pessoa — curso da Lunna — sobre isso. Comecei a buscar na memória, um cheiro ou sabor que trouxesse a carga da infância ou juventude que fosse uma forte referência. De alguma forma, tudo o que ocorre no curto período da nossa mocidade, o que para alguns poderá durar uma existência inteira, enquanto para outros não passa da adolescência ou até menos, parece condensar a formação de nossa personalidade, incluindo o que gostamos de comer.

Para traduzir a minha vivência em apenas um prato, logo de cara me lembrei do prosaico e popular feijão. Gosto tanto de feijão que chego a fazer sanduíche dele, com o tênue azeite como acréscimo, não mais. Para isso, reduzo o caldo de feijão na panela, acrescento o azeite e coloco no pão francês ou de forma. Uma delícia… De outra forma, o acompanhamento do arroz é quase inevitável, mas nem sempre gosto de ambos quentes. Muitas vezes esquento bastante o feijão e acrescento por cima o arroz bem gelado. Única vez que cometo o supremo sacrilégio de não colocar o arroz por baixo ou de lado. Afinal, está na Lei que feijão deve ser sempre posto por cima do arroz.

Objeto da cozinha abolido em alguns países, a panela de pressão é tradição na cozinha brasileira. O próprio soar da válvula a girar loucamente na preparação do feijão, já me levava a saboreá-lo de antemão. A casa recendia àquele olor dos deuses. Após o seu cozimento, minha mãe acrescentava os temperos que davam o toque especial.

— Mãe, como é que deixa o feijão nessa consistência?

— É feijão jalo, meu filho, cozido no tempo certo.

— E essa folha?

— Louro… Junte a ela cebola, alho fritos no óleo de soja. Não esqueça do sal.

Esse diálogo nunca tive com a minha mãe. Apenas refaço o que ela fazia, sem receitas escritas guardadas em caderno. O tempo, senhor dos condimentos, me ajudou a fazer o melhor prato possível para os amigos que compartilhariam da receita de minha personalidade em forma de alimento. Isso, talvez me deixasse inseguro, mas se alguma coisa a idade me ensinou é que nunca ficaria curado dessa insegurança. Muito, porque, me confortava saber-me o mesmo de sempre.

Gostaria de relatar que a Lunna tenha sido a última a chegar, mas a bem da verdade é que às 12h em ponto já havia aportado para o almoço. Há alguém mais irritante do que aquele que cumpre os horários? Marcão e Jane a acompanhavam. Carol, a moça de cabelos vermelhos e portadora do mais belo sorriso, surgiu, diáfana, logo depois, aclamada pelos latidos das peludas que moram em casa. Deviam estar comemorando a chegada de mais uma pessoa para brincar ou sentiam cheiro de gato. Mariana, encapotada por causa do clima bem diferente de onde a mulher-borboleta viera, deve ter se sentido confortável com o ambiente verde que encontrou em casa. Duas borboletinhas vermelhas adejavam em torno de sua cabeça, a recepcioná-la. Isabeau, a mulher mais requintada que conheci, a ponto de não dar ênfase a tanta elegância, chegou com o Lionel e logo espalhava sua jovialidade pela casa.

Para acompanhar o feijão, fiz arroz ao modo de Dona Madalena, acompanhado de macarrão cabelo de anjo quebrado em pequenos pedaços, bem temperado com cebola, alho e sal. Para acompanhar, pepino, alface, tomate, cebola, berinjela, queijo mozarela em pedaços com orégano, ovos cozidos e batatas gratinadas, tudo em separado. Cada um deveria montar a sua salada. Fiz pãezinhos de batata para serem ingeridos antes, com manteiga ou junto com a comida. Evitei apresentar carne branca ou vermelha como “mistura”, como dizemos na Periferia. Mas abri exceção às manjubinhas, acompanhadas de rodelas de limão. Para beber, suco de maracujá colhido em casa. Como sobremesa, doce de banana nanica, também de casa. Após o almoço, as conversas giraram em torno de assuntos que viajavam o planeta e se embrenhavam por terras inóspitas, mas sempre com um traço de humor. Talvez fosse efeito do licor de jenipapo, que rolou solto. Mais tarde, como a despertarmos de um sonho, tomamos café feito no coador, saboroso e docemente amargo, assim como a vida.

*Texto derivado de um exercício do Curso Narrativa Em Primeira Pessoa, ministrado por Lunna Guedes.

B.E.D.A. — Blog Every Day August

Adriana AneliClaudia LeonardiDarlene ReginaMariana GouveiaLunna Guedes

3 thoughts on “BEDA / Scenarium / Para Depois De Amanhã*

  1. Senti o aroma do feijão aqui… Também aprecio bastante, não a ponto de comer com pão, ou com macarrão como os cariocas. Na maioria das vezes, dispenso o arroz e como o feijão com o resto da comida. Vario entre preto, carioca, fradinho, rosa, branco.. Uma infinidade de aparências, texturas e sabores com a cara do Brasil…
    Abraços

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