Em 17 de Maio de 2016, escrevi: “Pois, é!… Aconteceu de novo… A Tânia e a Romy se compadeceram de uma doidinha de saudade perdida na região… Uma pediu, a outra a resgatou… Agora, Bethânia parou de chorar, sentada em meu colo… A academia adiada, enquanto descansa de seu sofrimento a nova fêmea da família, pelo menos por um tempo…”.
Hoje, a Bethânia cresceu, mas nem tanto. Gosta de agir como se fosse uma gata e, apesar de suas perninhas curtas, salta a mais de um metro de altura, subindo em muretas, telhados, pias e, eventualmente, em mesas. Destruiu praticamente sozinha um conjunto de sofás e vez ou outra acusa travesseiros e almofadas de atacá-la, os rasgando. Sofre bastante com o frio, odeia roupinhas e prefere ficar debaixo das cobertas nas camas que a aceitar. Quando a Romy foi resgatá-la perguntou para uma senhora que estava próxima se era dela. A resposta que ouviu foi: “ninguém quer isso daí, não!”.
Nós quisemos “isso daí”, bicho ciumento que ganhou um capítulo no meu primeiro livro pela Scenarium Livros Artesanais – REALidade – por essa característica. Teimosa, late sem parar normalmente quando a Lívia está em reunião no HomeOffice. Complexa, é difícil explicar a personalidade forte dessa “pessoa”…
Houve um tempo, no início de minha jornada como escritor, que escrever era apenas uma maneira de dialogar comigo mesmo. Os meus textos, não os mostrava a ninguém. Exceto ao meu irmão menor, logo no início, que versava sobre o fantástico. E quando era convocado pelos professores a fazer redações sobre assuntos que nem passavam perto da minha vida cotidiana – as férias escolares com viagens feitas; os filmes assistidos no cinema; peças de teatro vistos; parques de diversões frequentados. Nada disso pertencia à minha realidade. Ou melhor, era algo raro, mas que acontecia em momentos que não coincidiam com as férias. Eram fugas do cotidiano normal realizadas em finais de semana. Na maior parte do tempo realizava incursões para dentro de mim. Por lá-aqui conversava com um sujeito desconhecido que poderia ser eu mesmo ou parecido comigo. Que se distanciava dos temas que relatariam excursões externas. Desconfortável, nem sei se cheguei a inventar histórias que nunca ocorreram. É possível, a minha imaginação sempre foi fértil e as notas que tirava eram boas.
Não deixei de ir à praia de vez em quando. De me deslocar para cidades próximas ou um pouco mais distantes onde moravam parentes, já que a minha mãe era ciosa de manter contato com a grande família dos irmãos de oito filhos dos Nuñez Y Nuñez. Mas o “melhor” da viagem era o próprio translado, geralmente por trens desconfortáveis, lotados ou ônibus que normalmente me enjoavam. Os vômitos faziam parte da rotina. Chegado aos destinos, eu me separava dos grupos, mal conversava com os primos, preferia ir jogar bola ou fazer incursões pelo mato. Não que não gostasse das pessoas. Eu sempre me senti muito bem em estar com todos, muito porque respeitavam a minha postura tímida. No máximo, brincavam com essa característica que me emprestava um certo charme. No fundo, sentia pavor em me envolver afetivamente com parentes que pouco veria. Uma bobagem de alguém com sérios problemas de adaptação às regras de relacionamento. Nunca fui bom nisso.
Os diálogos com o sujeito desconhecido fizeram com que aos poucos aprendesse a reconhecê-lo como autônomo de minha personalidade ou, por outra, como um apêndice da pessoalidade original de meu ego. Parece confuso, porque é. Ainda que seja falso, me acostumei com a dinâmica que me impulsiona a elaborar textos que hoje busca identificação externa. Não produzo textos apenas para a minha satisfação pessoal – que é muito importante –, mas para criar situações que sejam assimiladas por outras pessoas tenham identificação. As sagas das vidas “criadas” por mim as baseio em minha vivência íntima, referências externas captadas ao sabor dos ventos virtuais e situações que as próprias personagens desenvolvem entre si. O que parece ser estranho, mas acontece frequentemente.
A travessia entre o autor ensimesmado e este outro que quer se comunicar com quem o lê não é fácil. Ser lido é ainda algo de incontrolável mensuração. Não quer dizer que ainda que os olhos que percorram as frases, sentenças, parágrafos que escrevo signifique que o texto tenha sido lido da maneira que gostaria. Muito por incapacidade pessoal em se fazer “ouvir” e ser entendido, as minhas criações talvez não repercutam no leitor de forma nenhuma. Ou, por outro lado, não é incomum que o que escrevemos mostre algo além do que propusemos mostrar. É a magia da arte, ainda que involuntária. Arranjar espaço na minha agenda para realizar a simples tarefa de escrever tem sido o principal empecilho, ao qual luto para superar. As madrugadas que o digam, pelas quais transito entre a satisfação e a dependência dolorosa em escrever…
“Eu e a outra em minha vida — a velha Matilde— que nos trouxe até o alto da Aldeia da Serra, em evento da Ortega Luz & Som“: foi a legenda que coloquei para identificar esta imagem, de 2013. Kombis tem tido uma participação importante durante toda a minha vida. Produzida de 1950 até 2013, muitas delas continuam circulando por aí. Meu irmão e eu temos duas, utilizadas em nossas atividades profissionais — a feia Tímida e a linda Tigresa.
Quem conhece esta última não deixa de admirar a sua elegância felina. Sim, essas carrocerias parecem todas iguais, mas a depender do ano de fabricação, conservação e “personalidade”, são diferentes. As denominações em outros países se diferenciam igualmente. São conhecidas como Hippie Bus, Hippie Van, Volkswagen Bus, Volkswagen Campmobile, Volkswagen Microbus, Volkswagen Samba, Volkswagen Transporter, Volkswagen Westfalia e Volkswagen Pão de Forma, em Portugal, o meu preferido. Justamente porque a Kombi está diretamente ligada ao meu ganha-pão.
Quando garoto, foi a Gertrudes (a qual em empurrei muito) que papai dirigia que carregava os recicláveis que coletávamos nas ruas. O Sr. Ortega preferia se deslocar para os bairros mais sofisticados porque o lixo era bem melhor em variedade e quantidade. Foi lá que angariei uma parte de minha biblioteca, além de vinis, revistas raras, álbuns de figurinhas e brinquedos. Mas eram os livros que me faziam “perder tempo” quando separava o que seria vendido ou não. O prejuízo não foi pouco. Aprendi a valorizar aqueles objetos com capas duras (ou nem tanto), títulos e páginas como se fossem seres vivos. Mesmo rasurados, os preservava da aniquilação.
Na Ortega Luz & Som, depois de anos utilizando a locação de transporte alheio — normalmente caminhões — para o deslocamento de nosso equipamento, compramos a nossa primeira Kombi — Bailarina. Peruas (outro nome pela qual é conhecida no Brasil) tem a tendência de apresentarem folga na direção. Quem não consegue “pegar a manha” em sua condução, pode até bater. E a Bailarina fazia jus ao nome. Inquieta, apenas o Humberto conseguia manobrá-la. Matilde, a da foto, chegou depois de cinco anos e ficou conosco outros cinco.
Com a chegada da Tigresa, após breve convivência das duas, ficamos apenas com a última. Porém, como fomos multados por ser de passageiros, imprópria para transporte de equipamentos, adquirimos a Tímida, que como o nome indica, além de fechada (furgão), demorou a engrenar em nosso relacionamento mecânico-pessoal. Porque, da mesma forma que nos devolve em eficiência e praticidade, também pode dar dor de cabeça quando enguiça. Ao mesmo tempo, suas peças são facilmente encontradas (a depender da idade) e não são complicadas de serem consertadas.
Para mim, a personalidade da Kombi é feminina — robusta, confiável, corajosa e, quando preciso, impetuosa. Mesmo quando está mecanicamente no limite, sempre entrega o serviço. Apenas uma vez, chegou e saiu do local do evento em cima de um guincho. A exceção que confirmou a regra. Tudo isso, vivencio e continuo a vivenciar sendo passageiro. Não dirijo. Creio que não tenha a habilidade para tal, como a maioria das pessoas pareça acreditar ter. Do alto de uma Kombi, vejo as barbaridades que os motoristas, na condução de suas extensões existências em forma de motor e cheiro de combustível, cometem. Por enquanto, conseguimos chegar e voltar a bordo de nosso veículo preferido. E não vejo (ou não quero ver) o prazo final para que esse relacionamento venha a terminar.
Acordei a pensar nas mulheres. No quanto elas são diversas e divinas; únicas e triviais; ostensivas e intraduzíveis; simples e talentosas; práticas e mágicas… Citei, certa vez, que muitas mulheres são bruxas. Antes que um xingamento, considero essa expressão, um elogio. As bruxas foram aquelas mulheres de todos os séculos que, por justamente estarem a frente de seu tempo ou compreenderem a complexidade das coisas ao seu redor e muitas vezes para além de seu território e tempo, acabaram segregadas, condenadas e sacrificadas no fogo ou outro meio de erradicação daquela presença incômoda pelos homens, então no poder aparente.
Sempre tentei compreender o lugar da mulher na História — uma história normalmente contada por vencedores e homens. Como elas quase sempre aparecem como um apêndice da atuação masculina, percebi que havia algo errado nesse conto do vigário (portanto, um homem). Aos poucos, pude encontrar exemplos de trabalhos e movimentos de origem feminina, em várias frentes, pelos quais os homens levaram a fama. Sei que, pela divisão do trabalho que se desenvolveu ao longo da civilização humana, os homens assumiram as funções mais visíveis e, supostamente, mais proeminentes. No entanto, o serviço de base, desde a organização dos “pequenos” detalhes do dia a dia até a cuidado dos novos comandantes da ação, bem como a reprodução dos movimentos básicos que suportaram e ainda suportam as bases do nosso crescimento como seres que buscam a evolução, foram realizadas por mulheres. Isso, se não acontecer da participação da fêmea da espécie ser tão escancarada, que seja impossível evitar que ela esteja presente nos anais históricos como autora, inventora ou diretora da criação.
Portanto, desejo às todas as bruxas de minha afeição ou distantes de mim, os melhores votos de boa condução do novo mundo que nasce sob os escombros da incapacidade masculina em administrar o nosso espaço. Espero que vocês tenham aprendido com os nossos erros e não assumam a nossa postura arrogante. As imagens que estou postando junto com este texto estão tratadas com efeitos e derivam de originais pelas quais fiquei obcecado. Trata-se de modelos de vitrines que deviam estar ali para serem reparadas. Alguns dos corpos estão mutilados, sem algum dos membros ou, até, sem as cabeças. Quantas vezes não ouço dizer que mulheres são boas, pena que tem personalidade e falam. Triste! Porém creio que, no fundo, mesmo os machistas sabem que sem as mulheres nós não estaríamos na Terra, seja como espécie, seja como digníssimos filhos da mãe! E, por isso, talvez carreguem certa inveja rancorosa.
Quase como se fora um concurso desses que acontecem na TV, nós, os participantes do curso, combinamos de realizar encontros em que faríamos, cada um de nós, uma especialidade da culinária que tivesse marcado a nossa vida. A ideia se desenvolveu a partir de uma tarefa para desenvolvimento da escrita em primeira pessoa — curso da Lunna — sobre isso. Comecei a buscar na memória, um cheiro ou sabor que trouxesse a carga da infância ou juventude que fosse uma forte referência. De alguma forma, tudo o que ocorre no curto período da nossa mocidade, o que para alguns poderá durar uma existência inteira, enquanto para outros não passa da adolescência ou até menos, parece condensar a formação de nossa personalidade, incluindo o que gostamos de comer.
Para traduzir a minha vivência em apenas um prato, logo de cara me lembrei do prosaico e popular feijão. Gosto tanto de feijão que chego a fazer sanduíche dele, com o tênue azeite como acréscimo, não mais. Para isso, reduzo o caldo de feijão na panela, acrescento o azeite e coloco no pão francês ou de forma. Uma delícia… De outra forma, o acompanhamento do arroz é quase inevitável, mas nem sempre gosto de ambos quentes. Muitas vezes esquento bastante o feijão e acrescento por cima o arroz bem gelado. Única vez que cometo o supremo sacrilégio de não colocar o arroz por baixo ou de lado. Afinal, está na Lei que feijão deve ser sempre posto por cima do arroz.
Objeto da cozinha abolido em alguns países, a panela de pressão é tradição na cozinha brasileira. O próprio soar da válvula a girar loucamente na preparação do feijão, já me levava a saboreá-lo de antemão. A casa recendia àquele olor dos deuses. Após o seu cozimento, minha mãe acrescentava os temperos que davam o toque especial.
— Mãe, como é que deixa o feijão nessa consistência?
— É feijão jalo, meu filho, cozido no tempo certo.
— E essa folha?
— Louro… Junte a ela cebola, alho fritos no óleo de soja. Não esqueça do sal.
Esse diálogo nunca tive com a minha mãe. Apenas refaço o que ela fazia, sem receitas escritas guardadas em caderno. O tempo, senhor dos condimentos, me ajudou a fazer o melhor prato possível para os amigos que compartilhariam da receita de minha personalidade em forma de alimento. Isso, talvez me deixasse inseguro, mas se alguma coisa a idade me ensinou é que nunca ficaria curado dessa insegurança. Muito, porque, me confortava saber-me o mesmo de sempre.
Gostaria de relatar que a Lunna tenha sido a última a chegar, mas a bem da verdade é que às 12h em ponto já havia aportado para o almoço. Há alguém mais irritante do que aquele que cumpre os horários? Marcão e Jane a acompanhavam. Carol, a moça de cabelos vermelhos e portadora do mais belo sorriso, surgiu, diáfana, logo depois, aclamada pelos latidos das peludas que moram em casa. Deviam estar comemorando a chegada de mais uma pessoa para brincar ou sentiam cheiro de gato. Mariana, encapotada por causa do clima bem diferente de onde a mulher-borboleta viera, deve ter se sentido confortável com o ambiente verde que encontrou em casa. Duas borboletinhas vermelhas adejavam em torno de sua cabeça, a recepcioná-la. Isabeau, a mulher mais requintada que conheci, a ponto de não dar ênfase a tanta elegância, chegou com o Lionel e logo espalhava sua jovialidade pela casa.
Para acompanhar o feijão, fiz arroz ao modo de Dona Madalena, acompanhado de macarrão cabelo de anjo quebrado em pequenos pedaços, bem temperado com cebola, alho e sal. Para acompanhar, pepino, alface, tomate, cebola, berinjela, queijo mozarela em pedaços com orégano, ovos cozidos e batatas gratinadas, tudo em separado. Cada um deveria montar a sua salada. Fiz pãezinhos de batata para serem ingeridos antes, com manteiga ou junto com a comida. Evitei apresentar carne branca ou vermelha como “mistura”, como dizemos na Periferia. Mas abri exceção às manjubinhas, acompanhadas de rodelas de limão. Para beber, suco de maracujá colhido em casa. Como sobremesa, doce de banana nanica, também de casa. Após o almoço, as conversas giraram em torno de assuntos que viajavam o planeta e se embrenhavam por terras inóspitas, mas sempre com um traço de humor. Talvez fosse efeito do licor de jenipapo, que rolou solto. Mais tarde, como a despertarmos de um sonho, tomamos café feito no coador, saboroso e docemente amargo, assim como a vida.
*Texto derivado de um exercício do Curso Narrativa Em Primeira Pessoa, ministrado por Lunna Guedes.