Confusional*

O que é artificializado
por vezes nos parece tão natural
que a tomamos como integral.

O que é falseado,
por vezes nos parece tão pessoal,
que a temos como real.

O que é amado,
por vezes nos parece tão especial,
que a tornamos tradicional.

O que é estigmatizado,
por vezes nos parece tão normal,
que a estabelecemos como um ritual.

O que é limitado,
por vezes nos parece tão fundamental
que nos contentamos com o parcial.

O que é acidental,
por vezes nos parece tão intencional,
que sentimos como se fosse o ideal.

O que é confusional e danoso
são traços comuns que nos conduz
e, por vezes, adotamos o pantanoso
como se fosse um caminho de luz…

*Poema de 2017… mas que se adequa perfeitamente ao atual e confusional momento.

BEDA / Scenarium / Um Dia Depois

UM DIA DEPOIS

Um dia depois do Dia dos Pais,
o que mudou no País?
Para tantos pais, filhos e famílias,
o segundo domingo de agosto não foi comemorado.
Pais não receberam seus filhos,
filhos não abraçaram quem os gerou
cuidou,
trabalhou,
viveu por…
Muitos, estavam vivos, mas distantes
e distanciados, por força do isolamento
ou pela desavença e litígio.
Eu, mesmo,
passei os últimos anos de meu pai,
alienado da sua presença. Mas foi uma escolha.
Outros, partiram pela doença do descaso.
Cem mil vezes pranteados.
Há ainda os que estão acamados,
entubados,
estratificados.
Todos, marcados
por estatísticas macabras.
Eu pude estar com as minhas filhas.
Percebi o quanto sou agraciado
por ser beijado,
abraçado,
por me sentir amado,
entrelaçado
pelo enredo familiar.
A minha alegria carregava um travo.
Em domingos sequenciais,
vivemos dentro de uma bolha boçalizada,
em ilhas isoladas,
de mar que se nega a aprofundar.
É como se o oceano não fosse salgado,
suas águas não quebrassem em ondas ao chegarem às praias,
não se permitisse abrigar sereias,
miríades de outros seres,
tesouros naufragados
e continentes perdidos ̶ raso de vida, mistérios e poesia.
Contudo, se aproveitam da crença no fantástico
e renegam a profundidade da Ciência.
Existimos em realidade paralela,
afirmando nossa indecência.
Negamos o conhecimento e festejamos a morte.
Entre plantas ̶ coqueiros e bambuzais ̶
o supremo mandatário deglute a nossa humanidade.
À caminho da segunda centena de milhar,
o chefe do jogo do bicho medonho continua sem paradeiro.
Quem o impedirá o testa de ferro insubordinado dos coronéis do dinheiro de continuar a jogar?
Há remédio
para evitar que muitos mais pais e filhos
estejam separados no próximo Dia dos Pais,
por obra e artimanha da desconsideração por brasileiros,
por obra e arte da estultice de eleitores brasileiros?

B.E.D.A. — Blog Every Day August

Adriana AneliClaudia LeonardiDarlene ReginaMariana Gouveia

Lunna Guedes

BEDA / Scenarium / Trago Amado

Trago Amigo

O ônibus passa devagar pelo asfalto irregular da periferia, enquanto o rapaz magro observa os muros mal construídos que ladeiam o caminho. Chama a sua atenção apenas os postes repletos de anúncios oferecendo vários tipos de serviços: de desentupimento de esgoto à reversão de multas de trânsito, passando por cartomantes. Um desses cartazes anunciava: “Jogo tarô. Jogo búzios. Trago a pessoa amada. 100% de garantia!” — Abaixo, o número do telefone de contato.
O rapaz magro desdenhou de tanta certeza. Nem um pouco comparável a que ele tinha. Pensou: “Eu, sim! Trago o companheiro amado em 100% das vezes!”… Imediatamente desejou que o ônibus chegasse rápido ao destino para que pudesse fumar.

 

B.E.D.A. — Blog Every Day August

Adriana AneliClaudia LeonardiDarlene ReginaMariana Gouveia

Lunna Guedes

BEDA / Scenarium / Fidelidade

Sou Adão e sou fiel…
Tenho uma natureza fidedigna,
que preza o outro.
Porém, mais que ao próximo,
tenho a tendência em satisfazer
às minhas paixões…

Vivo a contradição –
como ser fiel a mim mesmo,
ao meu desejo,
ao que considero ser o melhor
ou mais gostoso para o meu ego
e manter-me fiel a quem me é amável,
sem feri-lo?

Não há como ser feliz sem magoar…
Ou magoamos a nós ou ao amado…
Muitas vezes, aos dois…
Prefiro o gosto da maçã
à inocência que ignora
o que é certo e o errado…
Que mérito eu teria
se não pudesse escolher?

Para justificar as minhas escolhas,
culpo ao outro por elas…
Dessa maneira, satisfaço
a minha curiosidade de criança mimada
e continuo a comer uma fruta após a outra,
até conhecê-las todas
e nomeá-las…

Para não dizer que minto (mais uma falta),
digo, em pureza d’alma:
sou fiel à minha traição…

Beda Scenarium

BEDA / O Desamado

DESAMADO
Amanhecer fogoso…
O sol assoma no horizonte,
impetuoso…
fulgurante…
No entanto, para o desamado,
os seus raios não apenas queimam,
mas penetram, feito adagas,
a golpearem o seu corpo cheio de chagas…

Aturdido, o desamado
não compreende como pode tanto amar
e se ressentir tanto
de quem ama…
Padece por estar longe…
Quando por perto, é repelido
e sofre por ver seu amor desperdiçado…

A quem ama,
também o amou…
Ou talvez ainda o ame…
Mas viveu outras histórias de paixão
que machucaram o seu corajoso coração,
tão bravo que insiste em se apaixonar de novo…
Precisa se sentir plena e ímpar,
não apenas distinta entre todas,
mas única e soberana,
feito uma leoa na estepe…
Qualquer olhar lateral a faz desconfiar,
a remete às presas fendidas,
às paixões perdidas…

Como defesa,
prefere boicotar o amor,
substituir a sofreguidão pelo corpo do amado
por outro vício –
cigarro, bebida, sexo sem sentido, qualquer droga…
Afastar o desejo por aquele que a fere sem querer –
o triste desamado, que naufraga
em sua santa ignorância
inepta e juvenil…