BEDA / Os Leoninos

Caetano & Romy – leoninos…

Segunda-feira para terça, um dia depois do aniversário de 80 anos de Caetano, estava na cozinha quando a leonina da casa, a Romy, chegou me dizendo que estava se sentindo menos culpada por não ler o que eu escrevo, a confirmar para mim o velho ditado que pronuncia que “santo de casa não faz milagre”. Perguntei a razão e ela respondeu que acabara de ver a entrevista do Caetano com Pedro Bial na qual os filhos, questionados sobre a obra do pai, disseram não a conhecer por inteiro, talvez bem menos do que vários fãs.

Os da minha geração, que acompanham o magnífico compositor e intérprete neste último meio século, temos as suas canções entranhadas em nossa memória afetiva. Quantas vezes suas letras não disseram tudo o que devíamos ouvir, no momento exato ou, mais ainda, quantas vezes elas não se tornaram necessárias para preencher lacunas de ideias, emoções ou sentimentos insuspeitos, aclarados pela voz apalavrada do baiano de Santo Amaro da Purificação?

O filho de Dona Canô, também mãe da imensa Maria Bethânia, tão querida por mim que nomeia a minha filha de quatro patas, em determinada época provocou uma situação inusitada – levantaram a hipótese de que os irmãos fossem a mesma pessoa. Parecidos, os cabelos expandidos de Caetano, feito a juba de Leão que era, fazia-o semelhante à irmã mais nova que, aliás, deve seu nome a ele, originário do título de uma linda canção que conheci na voz eterna de Nelson Gonçalves.

O cabelo era simbólico de sua atitude em que as aparências eram determinantes para estabelecer critérios discricionários pelos padrões vigentes. Sua postura andrógina, tanto quanto de Maria Bethânia causavam estranhamento ao rígido Patriarcado. Dançava com a molemolência e a delicadeza exuberante de alguém que não se enquadrava ao Sistema. Acabou preso, também por isso. Além de pensar rompendo os limites pequenos das cercas ideológicas, surgia como péssima influência para os jovens. Creio que isso não ocorreu apenas à Direita. Meu pai, atuante personagem da Esquerda, a ponto de ter sido preso e torturado pelo Regime Ditatorial, recriminava os mesmos cabelos feito juba que eu usava e ficou enfurecido depois que passei a usar brincos.

A Romy citou também passagens em que Caetano mostrava o seu lado leonino, ao dizer que era bonito, sim, que não tinha a falsa modéstia de não demonstrar que não sabia disso. Obviamente, se identificou plenamente com o criador de Sampa. Nessa canção, ele revela que achou feia a cidade que “ergue e destrói coisas belas”, porque “Narciso acha feio o que não é espelho”. Essa auto aceitação vaidosa é, para mim, fantástica. Principalmente porque eu me considero sempre “culpado”, como se o Pecado Original não tivesse sido perdoado pelo batismo. Do qual não me lembro, mas que não faria a menor diferença, já que fui ao longo das idades acumulando “culpas” por circunstâncias normalmente incontroláveis.

Os leoninos, tanto Caetano quanto a Romy, assim como outros aos quais fui conhecendo em minha jornada, carregam o poder de levarem o Sol a cada lugar que chegam, como já versei em poemas. Chamam (ou fazem por onde chamarem) a atenção sobre si. Resilientes, seguram firme a carga pesada de serem o que são. Apesar de “saberem” que o mundo gira em torno deles, conseguem se solidarizar com os desvalidos, com os oprimidos, os que são atacados por serem frágeis ou diferentes.

Para deixar a minha cria menos compungida disse à Romy que não precisaria se preocupar em me ler, por enquanto. Chegará o dia que terá essa necessidade. Por hora, sei que está tentando se equilibrar entre as dores físicas e as mentais que sente por viver em um mundo tão poluído de caráteres aviltantes. O que escrevo se insere na mesma dinâmica. É uma necessidade premente de saber de mim e dos outros, tentando freneticamente me reconhecer como um ser humano que pertence ao topo da cadeia alimentar, vítima de abuso perpetrado por outros homens, mas igualmente um destruidor do planeta pelo estilo de vida que refuto, mas vivo.

Quanto a Caetano, chorei com ele pela emoção aflorada por cantar Terra, uma das suas canções que resume magnificamente o poder de se conectar com o Todo, mesmo quando se “encontrava preso na cela de uma cadeia” e ver “pela primeira vez as tais fotografias, em que apareces inteira, porém lá não estava nua e sim coberta de nuvens – Terra, Terra…”. Assim como quando lembrou de quando alguém lhe falou no exílio forçado sobre o lugar de origem, “onde o azul do céu é mais azul”. Fiquei preso nessa frase dita à visão de seus olhos marejados e me senti quase absolvido por amar leoninos de graça.

Participam do BEDA: Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Suzana Martins / Roseli Pedroso / Darlene Regina

David E Eu

David Bowie surgiu como tema da mudança da minha foto de perfil porque acho que a sua atuação como figura icônica ajuda a entender como observo essa questão da imagem. Quando garoto, gostava de deixar o cabelo crescer e “ele” decidir a maneira que se desenvolveria. Uma determinada ocasião, fascinado pelo movimento Black Power e a música Black, endureci o meu cabelo com o uso de sabão de coco e passei a usar garfo para penteá-lo. Tempos depois, coloquei brincos, um cada orelha (para desespero de meu pai que achou que pelo uso de um pequeno artefato eu fosse Gay). Mais tarde, tingi o cabelo de amarelo. Por um período, fui chamado de Xuxa no futebol, de Pepeu Gomes por Wilson Simonal num trabalho e, com o ganho de músculos na academia, até de He-Man na rua. Hoje, (bem) mais velho e calvo, é a barba que uso para mudar “la facciata”. Por agora, a retirei. A única mensagem que desejo passar é o de não ser definido pela imagem momentânea. Todos nós somos mais do que estamos fisicamente, apesar da maior parte das impressões que passamos socialmente se darem pela aparência.

Conheci David Bowie através de videoclipes esparsos em programas pioneiros da TV2 Cultura, antes do surgimento da MTV. As músicas não eram tão “fáceis” quanto as mais tocadas, mas me chamavam a atenção. Inicialmente, pelas letras que assimilava aqui e ali nas poucas palavras que pescava em inglês. Porém, o visual Glam foi decisivo para que me me atraísse ao se mostrar ao público para além dos limites de gêneros. Vivia (como vivo) na Periferia e a linguagem estética do Camaleão do Rock me alcançou fortemente. Eu tinha uma feição androginóide, a ponto de causar estranhamento a quem não me conhecesse. A minha postura não era intencional, mas também não fazia questão de desfazer dúvidas que surgissem. O que eu percebi é que era atraente para várias meninas, se bem que nenhum relacionamento foi além da amizade, apesar de me enamorar secretamente por uma ou outra. Cada vez mais tímido, as garotas eram ideais apenas como inspiração de contos e versos de amor. Triste, não?

Na época, entre 13 e 14 anos, eu era um sujeito que estava entre a natural mutação física da adolescência e uma profunda transformação na concepção de mundo. Enquanto jogar futebol se tornava uma paixão cada vez maior, apesar da progressiva miopia, escrever concorria para se tornar uma dependência. A minha percepção se ampliava em múltiplas conexões para outras expressões – artes plásticas, cinema, teatro, dança, música… – e o futebol ocupava esse espaço das artes, além de vôlei, basquete e outros esportes. Chegava a faltar nas aulas para assistir Copas do Mundo e Olimpíadas. Na minha avaliação, uma partida de futebol era como se fosse a apresentação de uma ópera. Não conhecia ainda as histórias futebolísticas de Nelson Rodrigues que conseguiu aliar de forma magistral a arte cinética da bola a de crônicas eternizadas pela escrita.  

Os clipes musicais nos Anos 70 começaram a se tornar cada vez mais elaborados para além das apresentações de artistas ao público até se transformarem em pequenas obras multi-estéticas. As de Bowie ao vivo eram energéticas, expressivas, com roupagem inventiva e, ele mesmo, se mostrava como uma persona teatral-kabuki-bufão-psicodélica-assexuada imponente. Ziggy Stardust / Starman presentes diante de todos, para quem quisesse ver e ouvir.

Quando o mundo começava a se acostumar com a estranheza performática, o inglês buscava novas facetas e personas, linguagens renovadas e repertórios com experimentações sonoras, com diferentes apresentações visuais. Eu, em constante mudança estética-comportamental, me identifiquei com o artista inquieto até na heterocromia, como a que tenho, mas não tão distinta quanto a dele.

Quando assisti “O Homem Que Caiu Na Terra”, a personagem extraterrena se adequou como ninguém ao humano que parecia um ser acima dos parâmetros pequenos com os quais as pessoas de senso comum costumam ordenar como normal. O meu sentimento de inadequação ao mundo encontrou em David Bowie uma versão expressiva. Mudar de visual é somente uma pequena homenagem que presto a ele. De fato, ao longo da minha vida, “vesti” várias identidades – fui cabeludo, gordo, magro demais, raspei a cabeça, deixei a barba crescer, a retirei, perdi o cabelo – e, por um tempo, fui o senhor que colocava a camisa para dentro da calça. Fiz um curso de Educação Física no limite dos 50 anos. Voltei a andar despojadamente como na faze Punk, mas não tão radicalmente quanto na época do movimento no final da década de 70, ao qual Bowie antecipou com Diamond Dogs, álbum de 1974.

Antes de Aceitar a minha identidade de escritor mais recentemente, há menos de dez anos, passei por dois episódios significativos. Sempre fui mais cheinho e quando emagreci dramaticamente na fase vegetariana de 10 anos, desenvolvi um processo de distorção de imagem. Não me via tão magro, mas quando a balança indicou 57Kg, comecei a mudar a minha dieta. Quando tive a crise hiperglicêmica, por mais ou menos um ano não me reconhecia ao espelho. Cheguei a evitá-lo por um bom tempo e me surpreendi com o sujeito que estava do outro lado quando me via.

Como escritor, crio histórias e posso ser quem eu quiser ou transferir para outras personagens ações que não cometeria, além de outras que gostaria de cometer. Aos 60 anos de existência pós-uterina, sinto-me em constante inquietação e com projetos pessoais que passam por caminhos místicos e materiais. Um tanto deslocado, eu me sinto como se fosse um ET que caiu na Terra e o que me resta é aprender a viver entre os seres humanos até o último dos dias com saudade do meu planeta destruído e do meu amor perdido…

David (Robert Jones) Bowie

BEDA | Caríssima

Caríssima
Cara Lua…

Em e-mail enviado a mim, no enunciado, sou chamado de “Caríssima” pela mensageira. Ainda que eventualmente tenha sido involuntário, gostei! Acho que cheguei em um ponto da vida que prescindo de ser chamado por pronomes ou vocativos masculinos apenas porque carrego um pênis. Sou mais do que isso.

Sendo pai de três meninas, 30 anos de casamento e sabendo do eu quero e gosto, não necessito ter avalizado por alguém da minha condição de gênero e preferência sexual. Por outro lado, aquilo me fez lembrar o quanto me senti irritado pelo aparecimento de neologismos para designar gêneros variantes ou diferenças opcionais de preferências sexuais, naturais ou refletidas. Não porque não as defenda, mas por pura questão de semântica. Nesse aspecto sou tradicionalista, ainda que Semiologia vá se encarregar de resolver essa questão.

É bem verdade que se não me importo de ser chamado por “ele” ou “ela”, talvez não devesse me importar por ser nomeado de outra maneira. Porém, mesmo para derrubarmos barreiras de todas as ordens, devemos partir de uma base. Anunciar que a letra “e” para o uso de gêneros indefinidos (na origem), de alguma maneira preconiza, igualmente, preconceito com outras condições. O politicamente correto acaba sendo uma prisão.

Nos dias de hoje, ficamos cheios de dedos para conversar com qualquer um. Na dúvida se ofendemos ou não alguém simplesmente porque a denominamos de uma forma prosaica baseada na aparência, tentamos adivinhar-prever-intuir com “quem” falamos. Não deveria ser problema para quem sabe o que sente ou o que é, se erramos sua titulação. Nessa situação, se um gênero alternativo quer brincar com a sua roupa, deve estar preparado para ser chamado por ele, ela, eles ou elas – os dois últimos, no caso dos que se sentem mais do que um…

Quando bem novo, pele lisa, rosto feminino, cabelo cumprido, gostava de parecer andrógino. David Bowie era meu ídolo. Ney Matogrosso, com Secos & Molhados, surgiam com ímpeto e, mesmo sendo bastante atraído por mulheres, decidi me abster de sexo. Era moderno? Não! Somente, a penas duras, fiz o que quis para experimentar – ou não experimentar – modos e comportamentos que pressupunham papéis diferentes dos que a Sociedade me impunha por ter nascido do gênero masculino, branco (com ascendência indígena) e pobre. Deveria me ater às essas condições?

Tanto quanto não fazia questão de casar porque a minha companheira estava grávida, sabendo que a aliança já estava sendo carregada em seu ventre, igualmente casar não indicaria uma relação permanente se não quisesse continuá-la. Contratos sociais dão segurança para quem os carrega, mas não são definitivos para indicar condições permanentes. Sejamos chamados de uma forma ou de outra, devemos viver acima das injunções feitas por outros e navegarmos acima da linha d’água que os afogam.

Participam:  Claudia — Fernanda — Hanna — Lunna — Mari