David E Eu

David Bowie surgiu como tema da mudança da minha foto de perfil porque acho que a sua atuação como figura icônica ajuda a entender como observo essa questão da imagem. Quando garoto, gostava de deixar o cabelo crescer e “ele” decidir a maneira que se desenvolveria. Uma determinada ocasião, fascinado pelo movimento Black Power e a música Black, endureci o meu cabelo com o uso de sabão de coco e passei a usar garfo para penteá-lo. Tempos depois, coloquei brincos, um cada orelha (para desespero de meu pai que achou que pelo uso de um pequeno artefato eu fosse Gay). Mais tarde, tingi o cabelo de amarelo. Por um período, fui chamado de Xuxa no futebol, de Pepeu Gomes por Wilson Simonal num trabalho e, com o ganho de músculos na academia, até de He-Man na rua. Hoje, (bem) mais velho e calvo, é a barba que uso para mudar “la facciata”. Por agora, a retirei. A única mensagem que desejo passar é o de não ser definido pela imagem momentânea. Todos nós somos mais do que estamos fisicamente, apesar da maior parte das impressões que passamos socialmente se darem pela aparência.

Conheci David Bowie através de videoclipes esparsos em programas pioneiros da TV2 Cultura, antes do surgimento da MTV. As músicas não eram tão “fáceis” quanto as mais tocadas, mas me chamavam a atenção. Inicialmente, pelas letras que assimilava aqui e ali nas poucas palavras que pescava em inglês. Porém, o visual Glam foi decisivo para que me me atraísse ao se mostrar ao público para além dos limites de gêneros. Vivia (como vivo) na Periferia e a linguagem estética do Camaleão do Rock me alcançou fortemente. Eu tinha uma feição androginóide, a ponto de causar estranhamento a quem não me conhecesse. A minha postura não era intencional, mas também não fazia questão de desfazer dúvidas que surgissem. O que eu percebi é que era atraente para várias meninas, se bem que nenhum relacionamento foi além da amizade, apesar de me enamorar secretamente por uma ou outra. Cada vez mais tímido, as garotas eram ideais apenas como inspiração de contos e versos de amor. Triste, não?

Na época, entre 13 e 14 anos, eu era um sujeito que estava entre a natural mutação física da adolescência e uma profunda transformação na concepção de mundo. Enquanto jogar futebol se tornava uma paixão cada vez maior, apesar da progressiva miopia, escrever concorria para se tornar uma dependência. A minha percepção se ampliava em múltiplas conexões para outras expressões – artes plásticas, cinema, teatro, dança, música… – e o futebol ocupava esse espaço das artes, além de vôlei, basquete e outros esportes. Chegava a faltar nas aulas para assistir Copas do Mundo e Olimpíadas. Na minha avaliação, uma partida de futebol era como se fosse a apresentação de uma ópera. Não conhecia ainda as histórias futebolísticas de Nelson Rodrigues que conseguiu aliar de forma magistral a arte cinética da bola a de crônicas eternizadas pela escrita.  

Os clipes musicais nos Anos 70 começaram a se tornar cada vez mais elaborados para além das apresentações de artistas ao público até se transformarem em pequenas obras multi-estéticas. As de Bowie ao vivo eram energéticas, expressivas, com roupagem inventiva e, ele mesmo, se mostrava como uma persona teatral-kabuki-bufão-psicodélica-assexuada imponente. Ziggy Stardust / Starman presentes diante de todos, para quem quisesse ver e ouvir.

Quando o mundo começava a se acostumar com a estranheza performática, o inglês buscava novas facetas e personas, linguagens renovadas e repertórios com experimentações sonoras, com diferentes apresentações visuais. Eu, em constante mudança estética-comportamental, me identifiquei com o artista inquieto até na heterocromia, como a que tenho, mas não tão distinta quanto a dele.

Quando assisti “O Homem Que Caiu Na Terra”, a personagem extraterrena se adequou como ninguém ao humano que parecia um ser acima dos parâmetros pequenos com os quais as pessoas de senso comum costumam ordenar como normal. O meu sentimento de inadequação ao mundo encontrou em David Bowie uma versão expressiva. Mudar de visual é somente uma pequena homenagem que presto a ele. De fato, ao longo da minha vida, “vesti” várias identidades – fui cabeludo, gordo, magro demais, raspei a cabeça, deixei a barba crescer, a retirei, perdi o cabelo – e, por um tempo, fui o senhor que colocava a camisa para dentro da calça. Fiz um curso de Educação Física no limite dos 50 anos. Voltei a andar despojadamente como na faze Punk, mas não tão radicalmente quanto na época do movimento no final da década de 70, ao qual Bowie antecipou com Diamond Dogs, álbum de 1974.

Antes de Aceitar a minha identidade de escritor mais recentemente, há menos de dez anos, passei por dois episódios significativos. Sempre fui mais cheinho e quando emagreci dramaticamente na fase vegetariana de 10 anos, desenvolvi um processo de distorção de imagem. Não me via tão magro, mas quando a balança indicou 57Kg, comecei a mudar a minha dieta. Quando tive a crise hiperglicêmica, por mais ou menos um ano não me reconhecia ao espelho. Cheguei a evitá-lo por um bom tempo e me surpreendi com o sujeito que estava do outro lado quando me via.

Como escritor, crio histórias e posso ser quem eu quiser ou transferir para outras personagens ações que não cometeria, além de outras que gostaria de cometer. Aos 60 anos de existência pós-uterina, sinto-me em constante inquietação e com projetos pessoais que passam por caminhos místicos e materiais. Um tanto deslocado, eu me sinto como se fosse um ET que caiu na Terra e o que me resta é aprender a viver entre os seres humanos até o último dos dias com saudade do meu planeta destruído e do meu amor perdido…

David (Robert Jones) Bowie

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