Mães Da Periferia*

*Ah, as mães da Periferia

Não sei sobre outras mães, mas as da Periferia guardam algumas semelhanças entre elas que vejo desfilar pelas ruas há décadas. Essa impressão veio a se confirmar em minha mente quando fui à padaria comprar pãezinhos quentes para o lanche da tarde. O horário das 18h30 coincide com a chegada das jovens senhoras do trabalho. Por todas pelas quais passava, percebia uma característica que sempre me foi familiar e que se sobressaia sobre as outras. Todas carregavam sacolas – uma, duas, quatro, tantas – que não entendo como conseguiam com apenas dois braços.

Imediatamente, viajei para o passado e me vi como o menino que esperava mamãe chegar do trabalho, carregando as suas sacolas com algumas surpresas. Isso não ocorria todas as vezes, é claro. Os dias em questão deviam ser especiais… e eram – dias de pagamento.

As mães da Periferia sabem que o dinheiro não durará muito, mas logo que o recebem, compram de imediato alguns itens que necessitam de forma mais premente. Entre as urgências se encontram pequenos presentes para os seus filhos. Pode ser uma lembrancinha boba ou uma necessidade real – roupa ou material escolar – mas alguma coisa preciosa acabava por chegar. Era preciosa porque, mesmo sem uma importância aparente, carregava uma mensagem maior: “Meus filhos, eu amo vocês!”.

Passados os anos, como a conclusão de um ciclo que se completa, já avós, se desdobram nos cuidados aos netos, pedacinhos de seus pedacinhos em forma de gente. Nós, seus filhos, vemos reproduzidas as mesmas cenas – nossos filhos a aguardarem a chegada desses seres especiais, sendo eles mesmos, o presente que desejam multiplicadores do amor de geração em geração – como a reafirmar a vida: “Minhas netas, eu amo vocês!”.

*Texto de 2012

No centro da foto acima, de uns 25 anos, mais ou menos, vemos a minha mãe, Dona Madalena, chegando com comprinhas, tendo duas das minhas filhas à sua espera. 

David E Eu

David Bowie surgiu como tema da mudança da minha foto de perfil porque acho que a sua atuação como figura icônica ajuda a entender como observo essa questão da imagem. Quando garoto, gostava de deixar o cabelo crescer e “ele” decidir a maneira que se desenvolveria. Uma determinada ocasião, fascinado pelo movimento Black Power e a música Black, endureci o meu cabelo com o uso de sabão de coco e passei a usar garfo para penteá-lo. Tempos depois, coloquei brincos, um cada orelha (para desespero de meu pai que achou que pelo uso de um pequeno artefato eu fosse Gay). Mais tarde, tingi o cabelo de amarelo. Por um período, fui chamado de Xuxa no futebol, de Pepeu Gomes por Wilson Simonal num trabalho e, com o ganho de músculos na academia, até de He-Man na rua. Hoje, (bem) mais velho e calvo, é a barba que uso para mudar “la facciata”. Por agora, a retirei. A única mensagem que desejo passar é o de não ser definido pela imagem momentânea. Todos nós somos mais do que estamos fisicamente, apesar da maior parte das impressões que passamos socialmente se darem pela aparência.

Conheci David Bowie através de videoclipes esparsos em programas pioneiros da TV2 Cultura, antes do surgimento da MTV. As músicas não eram tão “fáceis” quanto as mais tocadas, mas me chamavam a atenção. Inicialmente, pelas letras que assimilava aqui e ali nas poucas palavras que pescava em inglês. Porém, o visual Glam foi decisivo para que me me atraísse ao se mostrar ao público para além dos limites de gêneros. Vivia (como vivo) na Periferia e a linguagem estética do Camaleão do Rock me alcançou fortemente. Eu tinha uma feição androginóide, a ponto de causar estranhamento a quem não me conhecesse. A minha postura não era intencional, mas também não fazia questão de desfazer dúvidas que surgissem. O que eu percebi é que era atraente para várias meninas, se bem que nenhum relacionamento foi além da amizade, apesar de me enamorar secretamente por uma ou outra. Cada vez mais tímido, as garotas eram ideais apenas como inspiração de contos e versos de amor. Triste, não?

Na época, entre 13 e 14 anos, eu era um sujeito que estava entre a natural mutação física da adolescência e uma profunda transformação na concepção de mundo. Enquanto jogar futebol se tornava uma paixão cada vez maior, apesar da progressiva miopia, escrever concorria para se tornar uma dependência. A minha percepção se ampliava em múltiplas conexões para outras expressões – artes plásticas, cinema, teatro, dança, música… – e o futebol ocupava esse espaço das artes, além de vôlei, basquete e outros esportes. Chegava a faltar nas aulas para assistir Copas do Mundo e Olimpíadas. Na minha avaliação, uma partida de futebol era como se fosse a apresentação de uma ópera. Não conhecia ainda as histórias futebolísticas de Nelson Rodrigues que conseguiu aliar de forma magistral a arte cinética da bola a de crônicas eternizadas pela escrita.  

Os clipes musicais nos Anos 70 começaram a se tornar cada vez mais elaborados para além das apresentações de artistas ao público até se transformarem em pequenas obras multi-estéticas. As de Bowie ao vivo eram energéticas, expressivas, com roupagem inventiva e, ele mesmo, se mostrava como uma persona teatral-kabuki-bufão-psicodélica-assexuada imponente. Ziggy Stardust / Starman presentes diante de todos, para quem quisesse ver e ouvir.

Quando o mundo começava a se acostumar com a estranheza performática, o inglês buscava novas facetas e personas, linguagens renovadas e repertórios com experimentações sonoras, com diferentes apresentações visuais. Eu, em constante mudança estética-comportamental, me identifiquei com o artista inquieto até na heterocromia, como a que tenho, mas não tão distinta quanto a dele.

Quando assisti “O Homem Que Caiu Na Terra”, a personagem extraterrena se adequou como ninguém ao humano que parecia um ser acima dos parâmetros pequenos com os quais as pessoas de senso comum costumam ordenar como normal. O meu sentimento de inadequação ao mundo encontrou em David Bowie uma versão expressiva. Mudar de visual é somente uma pequena homenagem que presto a ele. De fato, ao longo da minha vida, “vesti” várias identidades – fui cabeludo, gordo, magro demais, raspei a cabeça, deixei a barba crescer, a retirei, perdi o cabelo – e, por um tempo, fui o senhor que colocava a camisa para dentro da calça. Fiz um curso de Educação Física no limite dos 50 anos. Voltei a andar despojadamente como na faze Punk, mas não tão radicalmente quanto na época do movimento no final da década de 70, ao qual Bowie antecipou com Diamond Dogs, álbum de 1974.

Antes de Aceitar a minha identidade de escritor mais recentemente, há menos de dez anos, passei por dois episódios significativos. Sempre fui mais cheinho e quando emagreci dramaticamente na fase vegetariana de 10 anos, desenvolvi um processo de distorção de imagem. Não me via tão magro, mas quando a balança indicou 57Kg, comecei a mudar a minha dieta. Quando tive a crise hiperglicêmica, por mais ou menos um ano não me reconhecia ao espelho. Cheguei a evitá-lo por um bom tempo e me surpreendi com o sujeito que estava do outro lado quando me via.

Como escritor, crio histórias e posso ser quem eu quiser ou transferir para outras personagens ações que não cometeria, além de outras que gostaria de cometer. Aos 60 anos de existência pós-uterina, sinto-me em constante inquietação e com projetos pessoais que passam por caminhos místicos e materiais. Um tanto deslocado, eu me sinto como se fosse um ET que caiu na Terra e o que me resta é aprender a viver entre os seres humanos até o último dos dias com saudade do meu planeta destruído e do meu amor perdido…

David (Robert Jones) Bowie

B.E.D.A. / Retirada

Penélope e eu, em 2011

“Queridos amigos, próximos e distantes! Estou deixando, pelo menos momentaneamente, o Facebook. Até o final do dia, deixarei a minha página aberta apenas para que esta mensagem alcance o maior número possível de pessoas.

As redes sociais constituem uma ferramenta nova que interfere fortemente nas relações baseadas antigamente no fato de estarmos em contato direto com o nosso interlocutor. Com elas, podemos nos conectar a pessoas que talvez nunca encontrássemos na vida, o que torna o mundo menor, mas igualmente mais amplo. Esse poder, tão novo quanto assustador, precisa ser melhor avaliado para que, ao invés de se transformar em algo libertador, não se estabeleça em força desagregadora das formas mais antigas e ainda tão prazerosas de relações pessoais.

O atual ícone do meu perfil é a imagem de um jatobá centenário, enraizado aqui perto de casa. Com ele, quis demonstrar o meu apreço por esses seres fascinantes — as plantas — que nos observam desde o início dos tempos e que aqui permanecerão mesmo depois de nos destruirmos. Por hora, voltarei a ser semente, somente. Quem sabe, um dia volte a brotar? Namastê!”

A mensagem acima foi postada em agosto de 2011. Fiquei por volta de três meses fora da principal rede social de então, até o início de dezembro. Eu me lembro que a desintoxicação foi penosa, mas que do segundo para o terceiro mês já estava me acostumando com a situação, vindo a me sentir cada vez mais leve. Porém, com a proximidade do final do ano, aumentou a necessidade da utilização do Facebook como ferramenta de divulgação de meu trabalho. Além disso, eu havia começado a divulgar os meus textos, importante para cotejar a sua possível qualidade através dos comentários dos leitores.

Vivíamos bem antes do implemento dessas ferramentas que nos expõe ao mundo de uma forma que seguramente a maioria de nós não estava preparada para suportar. Eu, ainda que já tivesse 50 anos de idade, igualmente não estava. Como eu não soubesse o efeito que “simples palavras” pudessem causar, apesar de desejar que fossem penetrantes como um escritor que queira ser lido, acabei por causar certo deslocamento no arcabouço estrutural sob o qual repousa relacionamentos entre estranhos, ainda que venha se instaurar a ilusão da intimidade.

Não é diferente atualmente, mas hoje sei lidar melhor com as reverberações que venham a surgir. Nas questões políticas-sociais não deixo de me posicionar, por exemplo. O que possa vir a causar críticas e oposição raivosa que, quanto mais esdrúxula, mais percebo o quanto é correto o meu posicionamento. Creio que a intenção dos formuladores do Face seja intencionalmente o de movimento e choque para gerar repercussões.

Um dia, o Facebook deixará de ser hegemônico. Outras ferramentas virão a ocupar os espaços deixados pelas ferramentas de inserção pública. Bem usadas, as redes sociais podem gerar benefícios coletivos. Quem as manipula são os seres humanos. E aí é que reside tanto a sua fortaleza quando a sua fraqueza…

O Jatobá que, durante certo período, foi a minha foto de perfil.

Participam do B.E.D.A.:
Lunna Guedes / Adriana Aneli / Roseli Pedroso /
Mariana Gouveia / Darlene Regina / Cláudia Leonardi