
Ciúme, o seu nome é Maria Bethânia. Quando começo a acarinhar as outras, ela logo se põe a protestar veemente! Chega a morder a minha mão e atacar fisicamente as demais do grupo, não importando o tamanho dos alvos, diante de sua contrariedade desmedida!
Quando quero chamar a sua atenção ou quando a chamo e ela não me atende imediatamente, uso sempre o expediente de passar a mão pelas cabeças das amigas, o que é suficiente para transformá-las em oponentes, vindo em nossa direção, a enfrenta-las, ainda que saiba que são maiores e mais fortes do que ela.
De onde deriva esse ciúme, afinal? Sou aquele que não deve dividir a minha dedicação e zelo com mais ninguém? Ela se sente minha proprietária? Um sentido de territorialidade natural exacerbada talvez explicasse a sua reação, no entanto, o seu cuidado não se estende tão fortemente à sua cama nem ao pote de comida, aliás, quase nada.
A contrariar o fato aceito de que somos a nós a possuí-los (a determinar-lhes o destino), quem decide levar a cabo os melhores cuidados a esses seres especiais, sabe que somos nós a sermos possuídos por eles. Será que chegam a ter consciência que seja um pecado sério dispensar atenção a mais alguém além deles, da família dos canídeos e de outros seres humanos?
O meu desejo de expressar em palavras as minhas suposições foi motivada por um episódio. Quando fui à casa da minha irmã, que mora ao lado, logo na entrada acarinhei a Vitória e a Dominique. Qual não foi a minha surpresa ao ouvir um latido lastimoso vindo da minha varanda. Lá estava a Bethânia, a demonstrar o seu desacordo em relação à minha afetividade por aquelas que conheço há anos! O seu olhar era quase desesperado! As suas orelhas eriçadas quase tocavam o céu!
Maria Bethânia foi resgatada da rua por uma das minhas filhas humanas a pedido da minha mulher. Ela a viu a correr sem rumo por nossa vizinhança e quase entrar debaixo de seu carro, condoeu-se de sua condição. Era um sentimento novo para ela, que nunca foi tão achegada aos cães. A experiência de acompanhar a Dorô em sua jornada de combate ao câncer que finalmente a vitimou, lhe trouxe a inesperada percepção da imensa conexão conosco desses seres únicos.
O meu interesse pela origem do ciúme de Maria Bethânia é quase antropológico – no sentido que o cão é um ser que tem, ao longo dos tempos, adquirido comportamentos assemelhados ao do Homem. De modo geral, além da inteligência básica, são seres-repositórios de emoções e sentimentos puros e sem medidas. Amor e ciúme, sem dúvida, estão entre eles. Nos cães, a força da irracionalidade se expressa, então, de maneira mais acintosa. Amor, ciúme, posse – onde começa um e termina outro?
Há a eterna discussão se o amor é uma construção sociocultural ou uma condição intrínseca aos seres humanos; se a sua base é espiritual ou físico-química; se é algo substancial a ponto de ser verificado expressamente ou uma ilusão mental… Creio que a ligação que desenvolvemos com os outros animais, principalmente os mais próximos de nós, “aculturados”, possa dizer muito sobre a própria condição humana. Talvez possa vir a desvendar se amor e as suas emoções subsidiárias, como o ciúme, revelá-nos animais básicos ou, basicamente, que somos animais confusos demais para sabermos o que sentimos, quando sentimos…
*Texto de 2017, constante de meu primeiro livro de crônicas — REALidade — lançado pela Scenarium, no mesmo ano.