Citadino*

Você me chamou e não a ouvi
Estava absorto na faina cotidiana
Navegava pelos rios de asfalto da cidade
Percorria os túneis de fuga terra adentro
Para fora de mim mesmo
Sempre apartado do meu corpo
O que poderia ser um sinal de independência
Não se cumpria
Pois os pensamentos arquitetados
Por outras mentes
Eram absorvidos pelos meus olhos
Invadiam o meu cérebro
E eram caminhados por minhas pernas
Se incorporando à minha rotina
Como se meus fossem através do poder de intervir
Consumado pela arquitetura citadina
Realizada pelos planejadores do ir e vir
Estava partindo para um lugar certo
Porém não pensava nisso
Mesmo querendo parecer borboleta
Ainda que formada e liberta
Voltava para o meu casulo
Que me atraía
Como tal, as minhas asas voavam um voo curto
Mais decorativas do que eficientes
E termino sendo um simples humano ser
Fingindo um próprio querer…

Foto por Erick Blanco em Pexels.com

*Poema de 2015

BEDA / Projeto Fotográfico 6 On 6 / Arte Rueira

Arte feita na rua, para quem frequenta as ruas – à pé ou motorizado – aqui temos. Há já alguns anos, as artes plásticas – arquitetura, escultura, artesanato e pintura – tem ocupado mais espaços públicos. Aliás, as esculturas foram perdendo status e viabilidade. Estátuas – monumentos, bustos, altos-relevos – tem deixado a cena porque talvez os artistas que tenham essa especialidade não sejam tantos e porque, a depender do material, como um metal nobre, é depredado ou roubado.

A arte do grafite tem crescido em interesse e dimensão, tanto em tamanho quanto penetração midiática. Artistas especializados têm-se distinguido em projeção pela qualidade artística. Desde a ascensão de grafiteiros como Aryz, Kurt Wenner, “Os Gêmeos” Otávio & Gustavo, Kobra e o icônico Banksy. Mas a arte de rua também pode ser representada por estátuas vivas, músicos, malabaristas, palhaços, teatralizações, pintura mural e intervenções urbanas, coletivas ou individuais. Porém me basearei no movimento grafiteiro para mostrar a arte rueira.

Não apenas paredes podem servir de “telas” para as ideias expressas por artistas anônimos ou que, ao assinarem seus trabalhos, empenham seus nomes na construção de suas iconografias. Nesta imagem, a banca de jornais foi perfeita para dar informações que apostam na imaginação. Acima, na parede, uma intervenção que poderia ser interpretada como uma arte “menor” – a pichação.

Ao falar em pichação, que transformou-se em “pixação” e “pixar” em verbo, esta intervenção expressa de forma clara o quanto os julgamentos de valor são equivocados a depender da “posição” social que ocupa ou visão artística que professa de quem os fazem.

A “Galeria do Minhocão“, como eu chamo, abriga várias expressões em que as cores explodem em afirmações de vida e dramaticidade.

Há grafites em preto e branco igualmente expressivas, muito pelas ideias e variação de temas. Como esta em que mostra “a vida acontecendo” por trás das paredes externas.

A arquitetura encontra nas antigas construções paulistanas, de várias vertentes e linguagens urbanísticas, obras que destoam da monotonia retilínea dos edifícios mais modernos. Nesta imagem, o prédio de esquina em forma circular encimada por linhas retas, como a representar muretas acastelares é uma composição de tendências díspares. A beleza ganha graça adicional pela presença de grafites comerciais embaixo e um pequeno em cima, em que surge uma provocativa Monalisa.

Esta composição urbana é maravilhosa, para mim. Os elementos que a compõe apresenta dados como os postes de luminárias antigas, a utilização do espaço possível em um desgastado prédio de esquina, as árvores “intrusas” em meio ao cimento, as cores nos semáforos, a guarda do maior de todos em Sampa, o Mirante do Vale. No grafite, o rosto tranquilo entre feixes de cores estranhamente estar à vontade em meio a balbúrdia da Metrópole.

Participam do BEDA / 6 On 6: Mariana Gouveia / Darlene Regina / Cláudia Leonardi / Lunna Guedes / Roseli Pedroso / Isabelle Brum

Coleção “As Idades” / Aos 60 – Paraty-RJ

Junto à praia de uma das ilhas da região de Paraty

Como presente aos meus 60 anos, minhas filhas nos ofertaram — a mim e á Tânia, minha companheira de 33 anos e mãe delas — uma ida à Paraty por quatro dias. Como está junto ao mar e sabedoras de minha paixão pela água e por História, criam (e acertaram) que ficaria feliz em passar alguns dias na histórica cidade do litoral sul-fluminense. Patrimônio da Humanidade, a colonial Paraty apresenta uma integração excepcional entre valores associados ao acervo cultural e ao natural; constituindo-se no primeiro sítio misto do Brasil.

A cidade vibra com suas histórias a percorrer suas ruas de pedra, mesmo para quem caminha por elas sem conhecê-las de antemão. Pensei em pesquisar antes sobre o que iria encontrar, mas preferi deixar me banhar de sua energia sem ter a cabeça preenchida por dados esparsos. Assim pude usufruir da energia que ultrapassava paredes, tão eloquentes quanto as belas conformações estruturais-arquitetônicas. Aos poucos, as histórias foram se apresentando através de imagens e informações aleatórias dadas por moradores.

Sozinho, saía para caminhar pela cidade vazia no início da manhã e via passar milhares de personagens invisíveis por sobre os calçamentos de pedras vivas. Ao passar por uma das esquinas, senti-me atraído a entrar por uma rua curta e estreita que, ao término, apresentava a placa Rua do Fogo. Imaginei que eventualmente em alguma época um incêndio tivesse se abatido em uma das velhas casas.

Após o passeio de escuna, parte da cidade junto ao cais estava inundada devido à maré cheia. Conhecedora de alternativas, uma das integrantes da tripulação nos acompanhou por terra até nos separarmos. Nesse momento, citei a rua que me impressionou pela qual passávamos então, e ela disse que o termo “fogo” se devia por ali ter existido uma zona de meretrício em tempos idos. Depois, soube que talvez ainda existisse aquele tipo de função. Essa informação confirmou que o meu radar vibracional-energético estava ativo. A calor do que ali ocorria ainda queimava.

Ainda que fosse um comércio de subjugação de pessoas (como quase sempre é) nas atividades que exercemos, se buscava o amor em sua expressão mais física, travestido em dominação. Bem como quando percorri caminhos em que o peso das pedras era mais opressor do que o habitual. Normalmente tratava-se de locais onde eram mercantilizados corpos de outra maneira — na compra e venda de gente escravizada. Janelas mínimas para deixarem um pouco de luz corromper a escuridão interna de mínima esperança.

Foram quatro dias intensos, em que que percorri por pés, mãos e mente fogosa terra, água e respirei o ar antigo de Paraty territorial e ilhas próximas, as quais acessei física e visualmente através de passeio de escuna. A cidade, fundada em 28 de fevereiro de 1647, teve seu apogeu quando foi por quase dois séculos um dos principais entrepostos do comércio de ouro vindo de Minas Gerais pela Estrada Real ou Caminho do Ouro. Com a abertura do Caminho Novo, o antigo caminho de indígenas calçado com pedras, passou a ser usado para o transporte de escravizados, de forma clandestina devido à proibição do tráfico no período regencial. Passei pelo antigo caminho quando fomos às cachoeiras por entre a vegetação exuberante da Serra da Bocaina.

Com o advento do plantio da cana-de-açúcar e o surgimento de centenas de engenhos artesanais, a produção de aguardente ganhou preponderância, sendo o nome Parati elevado a sinônimo desse destilado. Visitei uma das destilarias e pude apreciar os diversos tipos de aguardentes e licores. Porém isso não impediu a decadência da cidade desde o final do Século XIX. O que resultou numa espécie de congelamento de sua antiga conformação. O que poderia ser colocado como maldição pelo passado decadente, a união da beleza preservada da biodiversidade natural e a recuperação do conjunto arquitetônico propiciaram que o turismo se desenvolvesse, tornando-se sua principal fonte de renda de Paraty.

Graças a isso, pude usufruir do contato com a alma antiga dessa cidade que nos diz tanto através de suas características peculiares. Quem consegue se sensibilizar com o canto do vento, dos pássaros, da Natureza, das pedras, da História, quer voltar porque ainda que caminhemos reiteradamente por seus calçamentos, ainda é possível sentir no ar o mistério que se apenas advinha por trás de cada porta e janela, a nos surpreender com a sua magia feita de sabores tênues, sons surdos, visões esquivas, toques delicados e odores entremeados de maresia, ainda que o cheiro de esgoto vindo do Rio Perequê-açu que desemboca junto ao Cais na Praia do Pontal.

B.E.D.A. / Rave*

Eu, trajado à caráter para uma rave em casarão mal-assombrado… (meados dos Anos 90).

Há alguns anos, nós, da Ortega Luz & Som, fizemos uma Rave em um casarão da Avenida Paulista. Fiquei impressionado com o ambiente, que exalava outrora grandeza. Os pés direitos não tão altos quanto o de várias construções antigas que conhecia, mas que abrigava diversos ambientes que desativados-limpos, apenas imaginava para que serviriam. Nosso equipamento ficou abrigado da sanha dos convidados no que era provavelmente um dos banheiros.

Nas paredes desbotadas encontramos desenhos e motivos em papéis de parede, que representavam rostos, provavelmente dos antigos moradores. Nos era interditado subir ao sótão ou descer ao porão, onde estavam guardados os móveis da antiga mansão e o escritório da empresa que o alugava para eventos.

Procurei saber um pouco mais sobre aquele lugar. Soube que se tratava da “residência do Coronel Joaquim Franco de Mello. Localizada na Avenida Paulista, 1919, o imóvel é da família do agricultor e fundador da cidade de Lavínia, nome dado em homenagem à sua esposa. Viviam na residência com seus 3 filhos, Dr. Raul Franco de Mello, Dr. Raphael Franco de Mello e Dr. Rubens Franco de Mello. O palacete foi construído em 1905 pelo construtor licenciado Antônio Fernandes Pinto, cidadão português. A casa é o único exemplar remanescente da primeira fase residencial da Avenida Paulista (1891-1937). Está num terreno de 4720m², com uma grande área verde particular que a família Franco de Mello ainda mantém. O casarão tem 35 cômodos. Sua fachada é em estilo eclético, com influências da arquitetura da época de Luís XV nos enfeites rococó do frontão curvo e nos caixilhos das janelas e mansarda renascentista com telhas francesas e torreão” (Wikipédia).

Quanto à Rave em si… foram doze horas de loucura, loucura, loucura… Meu irmão, eu e meu traje nos recolhemos ao pequeno espaço inicial sem quase nenhuma possibilidade de escape, a não ser pela janela para ir aos banheiros químicos e só… Dessa “torre” protegida vislumbramos (ou imaginamos ver) às guerras de corpos em luta sôfrega em meio à semi-escuridão — homens-mulheres, mulheres-mulheres, homens-homens — apenas constatada por paredes que pareciam se mover. Perdi bastante de minha inocência naquela ocasião…

*Imagem de acervo pessoal e texto de 2012


Buscando um pouco mais, encontrei uma página que mostra os vários palacetes construídos naquela que é considerada a “mais paulista das avenidas”, justamente porque representa essa voragem típica desta São Paulo que “ergue e destrói coisas belas”…

http://netleland.net/hsampa/mansoesPaulista/mansoes.htm?fbclid=IwAR00fTFm4QhaMd7g7tbCyToHCaxfyl0hgyA3j2BArZDKsK2mmSJJLGKNVvM

Participam do B.E.D.A.:
Lunna Guedes
Roseli Pedroso
Mariana Gouveia
Cláudia Leonardi
Darlene Regina
Adriana Aneli

BEDA / O Desaparecimento De Cidade Pequena

Eu vim de Cidade Pequena. Todos que lá moravam se orgulhavam de ser pequenenses. Casas baixas, cercas apenas para carregar trepadeiras que floresciam em todas as estações. Famílias cujos pais e filhos desde crianças se conheciam, de geração em geração, vizinhos que se ajudavam. Saí apenas para estudar, mas pretendia voltar um dia. Rosana me esperava. Eu a desejei por toda a vida. População, menos de cinco mil almas, como dizia o Pe. Jacinto, pároco que recusou se mudar para outro lugar. Elegeu para viver Cidade Pequena como sua morada, desde que chegou 30 anos antes, mesmo convocado para outras paróquias. Levava, mas não impunha a Palavra original e boa, a quem a quisesse receber, libertadora.

Ao invés dos olhares íntimos que pudessem oprimir aos cidadãos, todos se sentiam abertos quanto ao comportamento de cada um, se a ninguém machucasse. Não havia julgamentos quanto a diferenças. Quem quisesse ficar, não importava que identidade apresentasse, sendo afável e trabalhador, seria aceito como padeiro ou professor, cantora ou doutora, maquinista ou vereador. Política se discutia nas ruas, nas praças, botecos e lanchonetes, quiosques e pousadas — sem restrições de preferências. Todos desejavam o bem comum, os impostos eram bem aplicados, a escola construída, o hospital equipado, a delegacia modernizada, a Natureza preservada, obras fundamentais realizadas. Paraíso na Terra? Não! Fruto da arquitetura humana bem fundamentada. Desenvolvimento de relações saudáveis. O exercício da cidadania, dos princípios democráticos.

Até que tudo acabou, consequência de uma força externa. Algo estranho? Sim, mas previsível em suas repercussões. Anormal, mas controlável, se houvesse vontade. 4.195 pessoas sucumbiram em 24 horas, sufocadas. Cidade Pequena inteira desapareceu. Seus habitantes dizimados. Ao final do dia, alguém distante desse povo, ainda que devesse ser o responsável por seu bem estar, ainda que soubesse o que ocorreria ou, por isso mesmo, apenas riu… Cidade Pequena é fantasiosa, o monstro que poderia devastá-la, infelizmente, não…

Darlene Regina / Roseli Pedroso / Lunna Guedes
/ Mariana Gouveia / Claudia Leonardi / Adriana Aneli / Alê Helga