O Carlos (Vila Madalena)

– Me paga uma cerveja?

Levanto os olhos do meu computador, onde escrevo o meu novo artigo e vejo Karl Marx… ou alguém muito parecido. A luz que vinha da janela do bar onde, num canto, eu tenho uma mesa cativa quase debaixo da pequena escada caracol, lhe emprestava uma aura de eternidade. Não o conhecia, mas lhe indiquei a cadeira à frente, sempre vaga para os meus encontros profissionais ou amigáveis. Chamei à Cíntia com a mão e pedi para que lhe trouxesse uma caneca com uma cerveja que eu gostava, artesanal.

– Bom dia! Como você se chama?

– Ah! Bom dia! Desculpa a falta de educação! Fico assim quando estou com fome… Meu nome é Carlos

– Quer comer alguma coisa?

– Oh, não! A cerveja já me basta como alimento… O senhor é escritor?

– Nada de “senhor”! O meu nome é Francisco. Sou escritor, sim…

– Desculpa em interromper o seu trabalho. Eu o vi de fora e fiquei fascinado por sua “ausência”. Como se fosse um pianista executando uma partitura em seu momento de transe.

– Gostei da sua imagem. Também escreve?

– De outro modo. Sou compositor, mas atuo apenas como músico. Lançar composições autorais no mercado do jeito que está – concorrido e parcial – é só para os mais fascinados pelo sucesso comercial… e que não se importam em fazer concessões. Prefiro tocar em barzinhos…

– Que instrumento toca?

– Baixo, guitarra, violão… o que estiver precisando.

– Sabe o que é interessante? O meu artigo é sobre a letra de uma música. Não é o caso de decifrá-la, mas interpretá-la. “O Quereres”, do Caetano

– Eu amo “O Quereres”! É quase perfeita! Dentre os vários versos, há um que até entendo o que Caetano quis dizer, mas não acho que não sejam tão opositores assim…

– É? Qual passagem?

– “Onde queres família, sou maluco / Onde queres romântico, burguês”…

– Por que, não?

– Olha, só um doido para querer formar uma família nos dias de hoje… E o romantismo é uma criação burguesa. Surgiu no Século XVIII, com a Revolução Francesa, ascensão da burguesia, da liberdade individual. Nada mais burguês, já que não estar preso às convenções é algo apenas reservado às classes econômicas mais aquinhoadas, que não precisam seguir regras. Já estão com a vida ganha… Trabalhador não pode transpor certos limites…

– Você fala bem… como um professor…

– Ah, não queria parecer professoral. Já dei aula antes de viver como instrumentista. Sou formado em Sociologia.

A cada frase terminada, Carlos pontuava tomando um pequeno gole de cerveja, como se quisesse economizar.

– Você deve andar na corda bamba. Ser professor ou músico não deve ser fácil… Mas olha quem está falando… Tenho que produzir bastante para pagar as contas. Às vezes, trabalho no automático. A dona do bar é minha amiga. Permite que ocupe esta mesa. Disse que dá uma um certo ar intelectual ao lugar. Na verdade, ela gosta da minha presença. Sempre que recebo uma visita, a pessoa se torna freguês.

Um belo rapaz se aproxima da minha mesa e se posiciona ao meu lado. Ao virar o rosto, ele me dá

uma bitoca.

Fala, querido!

– Tô indo para o apartamento, tá bom, Chico?

– Fica à vontade! Berenice está com saudade de você!

– E eu, dela! Ela melhorou das dores nas pernas?

– A mesma coisa… se puder, faça uma massagem nas suas pernas e pés, tá bom? Esse é o Carlos, músico. Estamos discorrendo sobre um artigo que tenho que entregar.

– Olá! Tudo bem?

– Sim! Prazer em conhecê-lo…

Matheus! O meu nome é Matheus!

– O prazer é meu!

– Até mais, Chico!

– Inté!

Trocamos outro beijo leve nos lábios. Logo após a saída de Matheus, Carlos sorriu e perguntou a quanto tempo conhecia o Matheus.

– A vida toda, dele…

Diante do olhar entre espanto e censura, expliquei.

– Ele é meu filho. Ele sempre me chamou por meu apelido. Nos cumprimentamos com selinhos desde que ele era bem novinho. Gostava de beijar todo mundo. A mim, minha ex-mulher… os tios, primos…

– Ele tem um porte atlético! O que faz?

– Estuda Direito. Fica um pouco comigo, um pouco com a minha ex-mulher e o pai biológico dele. Mas é a mim que considera como pai e assim me chama quando quer conversar sobre algo mais íntimo.

– Quantos anos ele tinha quando você se casou com a…?

Ella, com dois “eles”… Estávamos namorando e ela anunciou que estava grávida. Logo, providenciamos os papéis. Eu sempre quis me casar! Apesar de acalentar o sonho de ser escritor, eu trabalhava com comércio exterior, acredita? Ganhava bem… até que…

Inesperadamente, fiquei emocionado. Não esperava que a velha história ainda me tocasse daquela maneira. Mesmo sendo tão clichê…

Matheus tinha 14 anos e percebeu que a mãe estava se comunicando frequentemente com um tal de Raul, como ouviu chamá-lo. Ciumento, me falou sobre ela estar namorando pelo telefone, marcando encontros. Ao interpelá-la, me confessou que estava tendo um caso com o sujeito. Perguntei a quanto tempo. Respondeu que quando me conheceu, tinha acabado de romper com ele. Gostou de mim. Eu parecia ser cara legal, além de estável financeiramente. Achou que talvez o esquecesse… Preciso também de uma cerveja…

Sinalizei para a Cíntia para que nos trouxesse mais duas canecas. Carlos rapidamente tomou o que restava da primeira. Com os seus olhos de pensador alemão parecia me ouvir com um ar de real tristeza, como se fosse um velho amigo.

– Foi então que fez a revelação que me derrubou. Ella havia tentado ainda mais uma vez voltar com Raul. Saíram, foram prá cama e ela engravidou. Quando revelou sobre a gravidez, Raul disse que não se importava… Ela que tirasse! Pai e mãe religiosos, sem nenhuma outra opção, me usou. Foi a melhor coisa que poderia ter feito. Mesmo iludido por considerar Matheus meu filho natural, nunca me separaria dela. Estava apaixonado por minha família. Só ocorreu a separação porque voltou a encontrar a quem sempre amou. Raul havia se separado da esposa, deixando a casa para ela e o casal de filhos, irmãos do Matheus.

– Nossa! Que história! E Matheus, com quem ficou?

– Tivemos que contar tudo com muito cuidado, mesmo porque Raul queria conhecer o menino. Apesar de tudo, era seu direito, assim como era direito do Matheus saber. Mas menti quando disse que sabia desde o início não ser seu pai biológico. Mesmo porque, era estéril…

– Caramba! Até nisso mentiu?

– Sim e não! Sempre tentamos ter outra criança. De fato, era mais um desejo dela do que meu. Após a revelação, procurei fazer um exame que constatou a minha esterilidade. Quando Matheus soube de tudo, ficou desesperado. Disse que queria ser meu filho, não daquele sujeito que nem conhecia direito. Como já tinha 14 anos, apesar dos apelos da mãe, ele escolheu ficar comigo. A Berenice, nossa auxiliar, nos ajudou muito. Com a ausência tanto dos meus pais quanto os de Ella, que morreram quando Matheus ainda era pequeno, ela representou muito bem o papel de avó. Nós a amamos como tal!

– E quando mudou de atividade?

– Quase ao mesmo tempo em que ocorreu a separação. Acho que precisava de uma sacudidela para mudar. Dei sorte de ter conhecidos que me indicaram para a realização de artigos na área de comércio exterior. Gostaram de meu estilo menos pomposo para explicar o funcionamento do mercado, esse ser invisível. Logo, estava escrevendo sobre outros assuntos.

– Que legal! Nunca imaginei que teria uma manhã tão inspiradora apenas porque desejei matar a minha sede! Você é foda, Francisco!

– Pode me chamar de Chico! Nunca havia contado essa história para ninguém de maneira tão aberta! E para quem nem conhecia. Foi a cerveja mais bem paga que banquei! De repente, me senti aliviado!

– Olha, preciso ir ensaiar! Eu vou me apresentar junto com uma cantora ótima, na próxima quinta-feira. Lá no Bar do Pereira, conhece? Vai lá me visitar! E sempre que tiver chance, virei aqui com segundas intenções…

Após engolir de uma vez um pesado gole de cerveja, testemunhei o sisudo Karl Marx a rir desbragadamente. Saiu, caminhando rua abaixo. Há 1 Km, ficava o Bar do Pereira. Vila Madalena confirmou que continuava a ser um país incrível!

Imagem ilustrativa do Bar São Cristovão, na Vila Madalena.

B.E.D.A. / Os Chinelos

Dia dos Pais. Domingo de descanso, dentro do “descanso”. Com poucos eventos para cumprir pela Ortega Luz & Som, cumpro minhas tarefas caseiras diárias. Eterna labuta em que sempre falta o que fazer. Mais do que ninguém, percebo o quanto elas têm tempo de duração efêmero. Horas, com sorte. Valorizei desde sempre a faina ao qual apenas as mulheres tinham por “obrigação” executarem. Simplesmente porque haviam nascido mulheres. Quase como se fosse predestinação — gado marcado — pertencente aos senhores da casa.

Por sorte — no sentido de destino fui criado quase que somente por minha mãe. Irmão mais velho, eu a ajudava nas tarefas de casa. De certa forma, comecei a gostar disso, ainda que em muitas situações, quando algo mais atraente surgia, como jogar bola, eu as tenha deixado de lado. Puxar água do poço, fazer fogueira para esquentar a água do banho de canequinha, são coisas que não faço mais. Porém, fazer feira, preparar comida para as criações de galinhas e para os muitos cachorros, varrer a casa e o quintal, lavar a louça, preparar almoços e jantas também as realizo atualmente.

O meu pai foi exemplo em sentido contrário de como não deveria agir como pai. No entanto, não é fácil se desvencilhar de anos de tratamento de choque patriarcal. Busquei ser para a Romy, a Ingrid e a Lívia alguém que fosse, no mínimo, verdadeiro, estando certo ou errado, na visão que pudessem ter de mim. Chegava a dizer em tom de brincadeira séria, que a nossa relação não era uma Democracia. Não que as impedisse de serem o que ou quem quisessem ser. De certa maneira, o máximo que podemos fazer com relação aos filhos é que lhes forneçamos subsídios, espaço seguro e anteparo para os voos pessoais. E isso passa também por regramento.

Depois de sua passagem, tenho tentado aplainar as diferenças com o meu pai para chegar o mais perto possível dele — perdoá-lo em mim, me perdoando. Os momentos mais próximos que tive com o senhor, meu pai, foi quando arrisquei entrar por três vezes no lugar onde ficou preso e foi torturado — nas celas do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) onde hoje encontramos a Estação Pinacoteca. Cheguei a entrar no saguão, mas não consegui ir além. Li que as antigas celas haviam sido convertidas em mini galerias, com exposições temporárias de artes. Esqueceram de dizer que fantasmas rondam aquele lugar e as vozes de torturados ecoam pelas paredes e atravessam as mentes de alguns, como eu.

Em todas as ocasiões, chorei. Quem eventualmente me visse, não entendia nada. Mas estava sentindo a dor de meu pai e de tantos outros que ali sofreram. Sentia não apenas a dor física, mas também a de abandono à própria sorte. Sentia a humilhação por ter a vida nas mãos de tipos que chegavam a sorrir com o sofrimento alheio. Sentia a aniquilação da humanidade em jogo de via dupla tanto torturados quanto torturadores — transformados em simples animais.  Encharcados de suor, urina e merda, os seviciados voltavam para as suas celas subjugados a ponto de agradecerem não terem morrido depois de cada sessão em que crescia o desejo de verem extinto o padecimento — uma pequena vingança contra quem sente prazer em levar o inimigo ao limite intangível.

Há alguns dias, a Tânia me presenteou com um par de chinelos pelo Dia dos Pais. Eles me remeteram aos chinelos que meu pai usava, parecidos a estes. Confortáveis, abertos, podem ser usados com aquela meia velha, puída, de aconchego confiável. Acolhimento de aposentado, meu pai talvez se reservasse o direito de ficar longe de filhos e netas, com seus pedidos, desejos e manhas. Nunca foi bom em ser pai, com certeza não seria melhor avô. Ou foi e eu não sei. Ouvi relatos das minhas filhas e sobrinha que me indicavam o contrário. Então, vai ver, o problema era pessoal, só comigo mesmo…

Resolveremos essa pendenga um dia…

Participam do B.E.D.A.:

Adriana Aneli / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia /

Lunna Guedes / Darlene Regina / Claúdia Leonardi

BEDA / Projeto Fotográfico 6 On 6 / Aconchego

Estar em aconchego varia de pessoa para pessoa. Para alguns, a casa é o lugar mais aconchegante. Outros, dirão que onde estiverem os amigos ou os familiares, ali a pessoa se sentirá mais aconchegada. Uma imagem, uma referência aleatória, uma cidade inteira podem ser, simbolicamente, um lugar de aconchego para alguém. Há vários, cada vez mais, que dizem sentir mais aconchego ao estarem sozinhos ou com seres não humanos. Enfim, o aconchego não é algo que se possa mensurar ou estabelecer critérios arbitrários. Aconchego, aconchegar, aconchegante termos que podem mobilizar uma variedade imensa de sentimentos.

Esse é o pessoal do 6º Bimestre de Licenciatura em Educação Física, período diurno, da UNIP Marquês ou, simplesmente, Turma da Caverna do Dragão em junho de 2012 com a qual me senti acolhido e aconchegado, apesar da diferença de idade, em torno de 25 anos entre mim e eles. Da mesma maneira, procurei aconchegar quem estivesse se sentindo inseguro no curso através da minha experiência acadêmica anterior. Na época, nós nos formamos em Licenciatura. Prossegui por mais dois semestres e acabei por me tornar Bacharel em Educação Física.

Em uma mensagem a eles, escrevi: “Pessoal, vamos dizer que o Sistema seja o Vingador e o Tempo, o Mestre dos Magos. Enquanto o Vingador tenta nos enredar e nos vencer com os desvios do caminho, buscando roubar as nossas Armas do Poder (ética, consciência, perspicácia, estudo, criatividade, vontade de conhecimento…), o Tempo, ao contrário do que as pessoas imaginam, não nos rouba a juventude. De fato, ele faz uma troca justa, devolvendo experiência, conhecimento e estabilidade emocional, entre outros benefícios, desde que saibamos caminhar com ele. Tiamat, o qual o próprio Vingador teme, está mais perto do que pensamos e podemos chamar de Desesperança, pois não contribui para que Sistema seja melhorado, ao mesmo passo que impede que vivamos o Tempo com sabedoria para superarmos os nossos limites. O nosso curso Educação Física está aí justamente para que ajudemos as pessoas a viverem mais e melhor. Dessa forma, nos tornaremos heróis. Nossa dedicação aos outros, um dia propiciará que voltemos para a casa sabendo que cumprimos a nossa missão”.

Saudade de certo tipo de aconchego também pode ser considerado algo aconchegante? Sim, desde que venha a se tornar um objetivo voltar a ser alcançado. A Scenarium promovia encontros em que a Literatura era valorizada através de saraus com lançamentos de títulos, discussões temáticas, mescladas a outras expressões artísticas, como música e teatro. Outra atividade que realizávamos era o Clube de Leitura, em que livros escolhidos por Lunna Guedes eram lidos e discutidos a cada mês. Atividades presenciais, aglomerávamos, nos abraçávamos, conversávamos cara-a-cara, pulsávamos na mesma vibração. Eu me sentia entre os meus. Aconchegado.

Estar em casa, com a minha família, é o maior sentimento de aconchego ao qual posso aspirar, mesmo porque tem sido cada vez mais difícil estarmos reunidos pelas atividades de cada um que nos afasta cotidianamente. Quando esse encontro acontece, passamos a valorizar imensamente. Aconchegar, mesmo em família, principalmente em tempos de Pandemia, tem sido oportunidades inestimáveis e quase impossíveis.  

 

Sair da Espanha, atravessar o Oceano Atlântico em um navio por semanas, chegar do outro lado no Porto de Santos, Brasil, com seus cinco filhos. Essa foi a jornada de Dona Manoela Nuñez Prieto, minha avó materna, e meus tios, ainda crianças. Por aqui, os esperavam meu avô, Antônio Nuñez Prieto, que viera uns dois anos antes. Corria a década de 20 do século passado. Portanto, cem anos nos separam do fato. Resta a imagem das crianças um tanto assustadas e de minha avó que talvez carregasse, além de roupas em suas malas, as dúvidas quanto ao que encontraria. A minha mãe, Madalena, e seu irmão, Benjamin, o caçula da família, viriam a nascer já no Brasil. Sei que minha avó se sentiu acolhida e aconchegada por aqui, apesar da vida difícil, ainda mais em época de Guerra, nos Anos 40, quando faleceu. A minha mãe disse que ela sabia o Hino Nacional “de cor” e o cantava com fervor.

É possível se sentir bem e aconchegado apenas um tempo que seja através de uma expressão da Natureza? Sim! Assim sou eu com o mar. Dentro da água, movimentada em ondas, calma tanto quanto possa ser, eu me sinto no aconchego do meu lar. Sinto que a atração é mútua…

Eu nunca me senti bem comigo mesmo durante quase toda a minha vida. Mas quando minha mãe era viva, eu tinha a quem me referenciar, um colo para me aconchegar, ainda que durante muitos anos não conseguisse sequer abraçá-la. Até que nasceram as minhas filhas. Consegui, pouco a pouco, destravar corpo e mente para que por momentos ficasse aconchegado. Dona Madalena era o meu aconchego fisicamente viva. E continua sendo, agora que está cada vez mais íntima. Sem ela, não estaria aqui, agora. Das duas maneiras pelo parto e por me manter vivo.

Adriana Aneli Alê Helga – Claudia Leonardi Darlene Regina
Mariana Gouveia Lunna Guedes / Roseli Pedroso

Bambino & Eu

Bambino & Eu

EU

Eu não tenho escrito tanto quanto gostaria, ainda que os temas passem diante dos meus olhos em todos os sentidos, como citadinos caminhantes nos amplos calçadões do Centrão. Eu já testemunhei cachorros mais conscientes de seu destino do que algumas pessoas. Entre elas, estaria eu. Aos outros, os observo, os absorvo, mas não os testifico em tela ou papel. Tenho me dedicado mais a realizar projetos caseiros, a montar e desmontar coisas, fazer exercícios de permanência material, erguer um jardim, pintar ou destruir uma parede. Leio esparsamente. Quando paro diante do computador, comento aqui e ali nas redes sociais. No ano passado, tomei estranhas decisões, como enviar saudações de aniversários a todos que nasceram em outubro — mês do meu aniversário — depois de ficar um tempão sem prestar atenção a isso. Foram desafios inúteis, mas inescapáveis, sob o risco da sensação que sofreria uma pesada represália (seria do deus Zuckerberg?): delírio pandêmico?… De toda a forma, estou preso a meus pés e minhas mãos não me libertam…

BAMBINO

A minha mãe foi para um lugar distante chamado Bahia. Ela me deixou com o meu avô. Eu gosto dele, mas além de mim, ele tem que cuidar das outras filhas e netas. Na casa de minha mãe, eu era tratado como um rei. Na verdade, lá, sou chamado de “Princeso”. Será que isso se deve ao fato de eu ter sido castrado? Ou por que sou delicado e assustado? Quando vim para cá, vomitei quatro vezes no carro. O meu avô ficou comigo o tempo todo com um saco para que não sujasse o banco. Ao chegar, ainda vomitei mais uma vez. Mas agora estou bem, mas parece que quem não está é ele. Eu o vejo triste, caminhando de um lugar ao outro, sem se demorar em cada canto. Muitas vezes, quando para, sem muito entusiasmo, fica diante de um objeto estranho, dando dedilhadas espaçadas. Antes, ficava um tempão batucando naquilo. Quando terminava, apresentava um sorriso no rosto…

Quanto ao medo de andar de carro, minhas tias e ele, os ouvi tentando interpretar a razão desse meu sintoma. Especularam que seria pelo fato de ter sido abandonado pelo antigo cuidador, que me deixou na estrada, após eu ter dado um passeio que achava que fosse para o parque. Eu não sei… esqueci. Assim como é uma lembrança vaga o canil em que estava ter sido atacado por uma onça… Malditos gatos!

O amor é um curativo muito bom para essas coisas…  

As Dores Do Mundo*

DORES

Sobre o dia de hoje, 1º de março de 2019 – marcado pela morte por meningite, de Arthur Araújo Lula da Silva, neto do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – que dividiu, acima das ideologias, as pessoas de boa das de má índole, as cordatas das insensatas. Sinto vergonha dos manipuladores de qualquer lado. O texto a seguir é de 2015*.

“Hoje, acordei parecendo sentir todas as dores do mundo – as veras e as imaginadas, as graves e as leves, as minhas e as alheias. Passei a manhã recolhendo pelo caminho todos os vexames e as humilhações, as penas e as cenas.

Acordei sentindo a dor do homem que sai sem se despedir da mulher que ama porque ela está em outra cama; a dor de ouvir no noticiário matutino criminosos discursando em nome de cidadãos probos; a dor de caminhar até o ponto de ônibus na expectativa de embarcar no cargueiro de carnes no horário exato; a dor de ver o pai do menino especial que deseja ver o seu filho viver a vida escolar normal, enquanto outras crianças não querem acordar para ir à escola ou, muitas vezes, sequer querem acordar… nunca mais…

Hoje, acordei sentindo a dor de me ver dormindo sob a marquise, cercando a minha intimidade sonolenta por velhos guarda-chuvas, momentaneamente improvisados de paredes do meu quarto; a angústia do cão que passa o dia aguardando a volta de meu humano que saiu para trabalhar; a amargor dos familiares do homem que saiu para trabalhar para não mais voltar; o martírio do garoto tímido que esperava ver a amada passar, atrasando a sua chegada várias vezes no emprego – que perderá; a aflição da garota que sabe que o garoto a deseja, mas não revela que aprecia o seu desejo; a inadequação do velho no Metrô que ouve pacientemente as asneiras da moça bem mais nova, a desfiar o seu corolário de dores fátuas, apenas para não se sentir só.

Hoje, acordei sentindo a dor da bela moça que tem todos os sonhos do mundo, mas que não consegue levá-los adiante porque o seu fôlego, que se escasseia, a impedirá. A dor da vida que não completa seu ciclo natural – do avô que perde o neto, da mãe que perde o filho. Hoje, acordei sentindo que poderia abarcar todas as dores do mundo, as veras e as imaginadas de todos nós. Humano que sou, por elas morrerei um dia…”.