B.E.D.A. / Os Chinelos

Dia dos Pais. Domingo de descanso, dentro do “descanso”. Com poucos eventos para cumprir pela Ortega Luz & Som, cumpro minhas tarefas caseiras diárias. Eterna labuta em que sempre falta o que fazer. Mais do que ninguém, percebo o quanto elas têm tempo de duração efêmero. Horas, com sorte. Valorizei desde sempre a faina ao qual apenas as mulheres tinham por “obrigação” executarem. Simplesmente porque haviam nascido mulheres. Quase como se fosse predestinação — gado marcado — pertencente aos senhores da casa.

Por sorte — no sentido de destino fui criado quase que somente por minha mãe. Irmão mais velho, eu a ajudava nas tarefas de casa. De certa forma, comecei a gostar disso, ainda que em muitas situações, quando algo mais atraente surgia, como jogar bola, eu as tenha deixado de lado. Puxar água do poço, fazer fogueira para esquentar a água do banho de canequinha, são coisas que não faço mais. Porém, fazer feira, preparar comida para as criações de galinhas e para os muitos cachorros, varrer a casa e o quintal, lavar a louça, preparar almoços e jantas também as realizo atualmente.

O meu pai foi exemplo em sentido contrário de como não deveria agir como pai. No entanto, não é fácil se desvencilhar de anos de tratamento de choque patriarcal. Busquei ser para a Romy, a Ingrid e a Lívia alguém que fosse, no mínimo, verdadeiro, estando certo ou errado, na visão que pudessem ter de mim. Chegava a dizer em tom de brincadeira séria, que a nossa relação não era uma Democracia. Não que as impedisse de serem o que ou quem quisessem ser. De certa maneira, o máximo que podemos fazer com relação aos filhos é que lhes forneçamos subsídios, espaço seguro e anteparo para os voos pessoais. E isso passa também por regramento.

Depois de sua passagem, tenho tentado aplainar as diferenças com o meu pai para chegar o mais perto possível dele — perdoá-lo em mim, me perdoando. Os momentos mais próximos que tive com o senhor, meu pai, foi quando arrisquei entrar por três vezes no lugar onde ficou preso e foi torturado — nas celas do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) onde hoje encontramos a Estação Pinacoteca. Cheguei a entrar no saguão, mas não consegui ir além. Li que as antigas celas haviam sido convertidas em mini galerias, com exposições temporárias de artes. Esqueceram de dizer que fantasmas rondam aquele lugar e as vozes de torturados ecoam pelas paredes e atravessam as mentes de alguns, como eu.

Em todas as ocasiões, chorei. Quem eventualmente me visse, não entendia nada. Mas estava sentindo a dor de meu pai e de tantos outros que ali sofreram. Sentia não apenas a dor física, mas também a de abandono à própria sorte. Sentia a humilhação por ter a vida nas mãos de tipos que chegavam a sorrir com o sofrimento alheio. Sentia a aniquilação da humanidade em jogo de via dupla tanto torturados quanto torturadores — transformados em simples animais.  Encharcados de suor, urina e merda, os seviciados voltavam para as suas celas subjugados a ponto de agradecerem não terem morrido depois de cada sessão em que crescia o desejo de verem extinto o padecimento — uma pequena vingança contra quem sente prazer em levar o inimigo ao limite intangível.

Há alguns dias, a Tânia me presenteou com um par de chinelos pelo Dia dos Pais. Eles me remeteram aos chinelos que meu pai usava, parecidos a estes. Confortáveis, abertos, podem ser usados com aquela meia velha, puída, de aconchego confiável. Acolhimento de aposentado, meu pai talvez se reservasse o direito de ficar longe de filhos e netas, com seus pedidos, desejos e manhas. Nunca foi bom em ser pai, com certeza não seria melhor avô. Ou foi e eu não sei. Ouvi relatos das minhas filhas e sobrinha que me indicavam o contrário. Então, vai ver, o problema era pessoal, só comigo mesmo…

Resolveremos essa pendenga um dia…

Participam do B.E.D.A.:

Adriana Aneli / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia /

Lunna Guedes / Darlene Regina / Claúdia Leonardi

11 thoughts on “B.E.D.A. / Os Chinelos

  1. Algumas memórias ficam para sempre… que você consiga resolver essa pendência sim.
    Abraço e feliz Dia dos Pais para você!
    Abraço

      1. Nossa, com certeza! Essa é a beleza e a mágica da escrita! Colocar “pra fora” mesmo. Acho incrível esse poder das palavras.

  2. Eu confesso que estive na Pinacoteca algumas vezes mas apenas uma após saber o que era ali. Achei interessante ser um lugar de beleza e prazer (como escreveu Susan Sontag em seu ensaio sobre a beleza, aliás vou aproveitar para voltar a ler esse livro) em contraponto ao horror. Não sei de onde veio a ideia, e entendo que não seja fácil para quem conhece o cenário e sabe o que ali se passou.
    O projeto do Ramos de Azevedo é incrível e gosto da memória anterior, prédio da Sorocabana, um pedacinho da Estação da Luz. Não abafo o passado de horror, até porque somos feitos disso também…
    Quando ao tuo papa… ele foi um homem a luz de seus próprios demônios e viveu e sobreviveu como pôde. Você faz o mesmo… todos nós o fazemos.

    Ps. Existe uma psicanalista vivendo em mim, hoje. rá

    1. Faltou o “Rá!”, Lunna! Rs… Obrigado pela mensagem! Essas misturas entre arte e horror são tão comuns, tão entranhadas em nosso cotidiano que leva a crer que o ser humano possa ver beleza no caos, sendo ele mesmo a máxima expressão disso.

  3. Obdulio, entendo sua relação conflituosa com seu pai, pois meu irmão também teve uma relação complicada assim como você. Ocorre desencontros, falta de comunicação, expressão de carinho e amor, de ambas as partes. Não julgo, nem condeno. Cada um sabe onde o calo aperta. Tenha paciência consigo mesmo e perdoe e se perdoe também. Talvez esse seja o caminho para encontrar a tão buscada paz. Espero que seu “Dia dos pais” tenha sido bom!

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