A Pipa*

Perdeu, playboy!

Quando eu era garoto, adorava empinar pipas (papagaios, pandorgas…). No início, quando não tinha tanta habilidade ou recursos, aprendi a fazer “capuchetas”, com folhas de jornal. Ficava feliz quando encontrava um papel mais firme para fazê-las e era uma vitória emérita quando conseguia colocar uma no ar. Com o passar do tempo, aprendi a confeccionar pipas mais complexas.

Para tanto, tinha que conseguir um pedaço de bambu, que separava em varetas, que deixava na espessura, lisura, peso e flexibilidade ideais, com uma faca de cozinha mesmo. Preparadas, confeccionava a minha pipa, com linha, cola e a disposição ideal das varetas, no desenho e na distância necessária para que ela planasse de acordo com o perfil que desejava e a aplicação requerida — agressiva, para um combate no ar ou mais abrandada, simplesmente para vê-la voar. Escolhia o papel de “seda” na cor preferida, às vezes com sobreposições, feitas com cuidado para que a pipa não ficasse “pensa” — desequilibrada.

O “estirante” também contribuía para que a dirigibilidade não ficasse comprometida, além da “rabiola”, que tinha que ter o tamanho e o peso certos para que ela pudesse subir. A aspiração de todo garoto era conseguir comprar a linha “nº 10 – Coats Corrente” para empinar, além da lata de pêssegos em caldas perfeita ou outro enlatado de tamanho proporcional para que a enrolássemos.

Geralmente, depois de tanto envolvimento, acabava por dar um nome às pipas e sentimento de perda intensa quando a via partir devido a um rompimento da linha, pela força do vento ou por ser “cortada” por outra pipa. Apesar disso, nunca corri atrás de uma “mandada”, porém compreendo a descuidada busca por pipas perdidas. É comum vermos crianças de todas as idades correrem pelas ruas de forma imprudente, chegando a pularem muros e subirem em telhados. No “meu” tempo não havia tantos carros na periferia, mas cães bravos sempre foram onipresentes. Todo esse trabalho fazia parte do aprendizado da atividade de “empinar” pipas, o que conferia um prazer imenso ao vê-las ganhar os ares e uma dor equivalente quando as perdíamos.

Atualmente, para a maioria das crianças, vendem-se pipas prontas, feitas “em série”, sem envolvimento emocional ou desenhos diferenciados, a não ser pela exposição de logotipos esdrúxulos, que denunciam, antes de tudo, uma espécie de perda simbólica da inocência…

*Texto de 2012

Taquara*

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A voltar da academia, ao passar por uma rua próxima de casa, ouvi o seguinte bordão apregoado pelo alto-falante de um pequeno caminhão: “Temos bambu! Bambu para varal! Dois Reais cada um! Trocamos também por Tele-Senas vencidas ou baterias de carro usadas!”…

Passei pelo caminhãozinho. Na carroceria constavam parrudos bambus, uns vinte, de quatro metros cada, pelo menos. Há muito tempo que não via esse tipo de material, um dos mais ecléticos que existe. Ainda mais aqui, em São Paulo, mesmo sendo este, um bairro de periferia.

Senti vontade de comprar pelo menos uma vara de bambu, que eu não sei em que poderia usar, mas pelo menos ficaria em algum canto do jardim, como um exemplar raro de um tempo que passou…

Lembrei-me das taquaras de bambu que eu usava em minha meninice para várias finalidades, da confecção de pipas a cercas e, obviamente, varais. Houve tempo em que a maior parte dos paulistanos vivia em casas térreas e qualquer casa tinha quintal. Erguíamos a corda do varal em um ponto central para que recebesse uma maior incidência dos raios solares. Quando havia brisa, quaisquer lençóis transformavam-se em bandeiras brancas e coloridas, verdadeiras alegorias da liberdade.

Em tempo, Sílvio Caldas compôs uma das mais belas canções da nossa música, chamada “Chão de Estrelas”. A letra toda é um primor. Em certo trecho, ele cita:

“Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda qual bandeiras agitadas
Pareciam um estranho festival
Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros mal vestidos
É sempre feriado nacional”…

Eram outros tempos, de varais, de quintais, de morros pacíficos e não apenas “pacificados”… Será que a taquara ainda está a R$ 2,00? Provavelmente, não. Não são apenas as nossas referências numéricas que se movem na memória…

*Texto de 2015