#Blogvember / Voo Cego

“Aprendi com as palavras o que eu não consegui com as asas: voar!”, por Suzana Martins, em (In)Versus

Quando adolescente, fã de séries de viagens espaciais, ficava intrigado com as que eram realizadas num átimo como em Jornadas Nas Estrelas, através das “dobras espaciais”. O veículo através da qual a comunidade múltipla-humana viajava o Espaço – a fronteira final – era a nave estelar Enterprise, “em sua missão para explorar novos mundos”. O contato com seres humanoides, de formas físicas diferenciadas dos Homo sapiens, com adaptações adequadas aos seus ambientes originais, propunha uma interação possível entre as várias raças e conformações.

Um mandamento que foi colocado de forma clara era o de não intervenção direta no desenvolvimento das civilizações originais dos planetas visitados. Mas, como não iria deixar de acontecer, o Capitão Kirk, o comandante da missão, era um humano que infringia as normas frequentemente, tendo em contraponto Mister Spock, cujo planeta carrega a racionalidade como característica principal, se opunha quase sempre às aventureiras opiniões de seu capitão, sendo ele o segundo em comando. O interessante é que o homem de Vulcano trabalhava a razão num contexto em que tudo inspirava a imaginação. Diante de muitas novas descobertas, o sábio ser desferia a expressão: “fascinante!”.

Para mim, o planeta ao qual me foi dado a explorar é este no qual vivemos. Por ter um olhar de estranhamento quanto a praticamente tudo que me cerca, me pego acordado a sonhar. Ou a sonhar acordado. Quando pequeno, voava sobre as casas do meu bairro, fazendo rasantes junto aos morros em que a vegetação verde ainda imperava. Lembro que percorria ruas que não conhecia ainda, a frente ou abaixo da qual morava. Confirmando depois seus caminhos. Deem o desconto de que a minha memória não é confiável. Mas quando menino cria que fosse assim. Ainda assim, percebi que a forma mais rápida de viajar era o pensamento.

As minhas asas eram invisíveis (para os outros) ou eu as mantinha escondidas para não parecer mais estranho ainda aos olhos dos outros. Através das palavras as materializava. Quando me perguntavam de onde surgiam tantas ideias para escrever não poderia dizer que armava as minhas asas para visitar as diversas realidades. Para parafinar minhas penas, lia bastante. Tudo me interessava. Nunca se sabia onde encontraria os melhores temas para desenvolver novas histórias. Essas construções buscavam reproduzir mundos ideais. A maldade humana era sempre suplantada. O Bem, poderoso, ao final vencia o Mal.

Enquanto isso, lá fora, onde eu não voava; onde os homens conseguiam vencer trapaceando; onde as mulheres choravam por seus filhos mortos; onde as botas pisavam sobre as cabeças dos subjugados; onde a Polícia matava pela ação dos esquadrões da morte (motivo de temor constante na Periferia); onde meu pai se ausentava; onde eu apanhava da Turma do Louquinho; onde a minha única alegria era jogar bola, apesar da miopia que crescia – eu me sentia Ícaro, em voo cego rumo ao abismo.

Participam: Mariana Gouveia / Suzana Martins / Lunna Guedes / Roseli Peixoto

#Blogvember / O Limbo

conscientemente
sigo pelo caminho torto
cansado de enfrentar tanta gente de bem
vou seguindo a chuva que renova os meus passos
raios e trovões me animam a continuar
enceto em sentido da luz ofuscante
do rugido do ar rasgado pelo chicote
“em delírio me transporto ao limbo”
chegada a borda do universo
declamo canções de gil e caetano
teço loas à santa arte profana
permaneço em êxtase fora do eixo
enquanto sofro da dor do prazer
dualidade unida em um único sentir
me esfacelo em tiras sanguinolentas
cor de vermelho fogo
o calor transporte para o deserto
sem oásis me aprofundo na direção do cinza
de minha vida anódina em extinção
sem tempo nenhum a não ser passado
revivido ad eternum
elejo a minha sina muito melhor a escuridão
dos cegos ignorantes insensíveis dos absortos em si
radicalizo a minha opção pela morte
bem vinda amiga amada amante de toda a vida…

Imagem representando a selva escura do Inferno (Divina Comédia), de Dante Alighieri, Canto I

Participam: Suzana Martins / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes

BEDA / Amorosa*

Tenho por amor, a Tristeza.
Eu A amo com a certeza
dos amores impossíveis,
daqueles épicos,
inéditos,
inauditos,
malditos…

A minha Amada me livra da Ilusão
de que o Eterno exista,
de que a Vida persista
para sempre, para além…
Do Bem a vencer o Mal…

Eu A recebo em minha cama,
faço amor com a rigidez do membro
espasmódico
a ejacular dores adormecidas
e despertadas das minhas entranhas…
Estranhas
testemunhas
da minha entrega
sem Esperança…

*Poema de 2017

Foto por cottonbro em Pexels.com

Adriana Aneli / Alê Helga / Claudia Leonardi
Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Darlene Regina

BEDA / O Desaparecimento De Cidade Pequena

Eu vim de Cidade Pequena. Todos que lá moravam se orgulhavam de ser pequenenses. Casas baixas, cercas apenas para carregar trepadeiras que floresciam em todas as estações. Famílias cujos pais e filhos desde crianças se conheciam, de geração em geração, vizinhos que se ajudavam. Saí apenas para estudar, mas pretendia voltar um dia. Rosana me esperava. Eu a desejei por toda a vida. População, menos de cinco mil almas, como dizia o Pe. Jacinto, pároco que recusou se mudar para outro lugar. Elegeu para viver Cidade Pequena como sua morada, desde que chegou 30 anos antes, mesmo convocado para outras paróquias. Levava, mas não impunha a Palavra original e boa, a quem a quisesse receber, libertadora.

Ao invés dos olhares íntimos que pudessem oprimir aos cidadãos, todos se sentiam abertos quanto ao comportamento de cada um, se a ninguém machucasse. Não havia julgamentos quanto a diferenças. Quem quisesse ficar, não importava que identidade apresentasse, sendo afável e trabalhador, seria aceito como padeiro ou professor, cantora ou doutora, maquinista ou vereador. Política se discutia nas ruas, nas praças, botecos e lanchonetes, quiosques e pousadas — sem restrições de preferências. Todos desejavam o bem comum, os impostos eram bem aplicados, a escola construída, o hospital equipado, a delegacia modernizada, a Natureza preservada, obras fundamentais realizadas. Paraíso na Terra? Não! Fruto da arquitetura humana bem fundamentada. Desenvolvimento de relações saudáveis. O exercício da cidadania, dos princípios democráticos.

Até que tudo acabou, consequência de uma força externa. Algo estranho? Sim, mas previsível em suas repercussões. Anormal, mas controlável, se houvesse vontade. 4.195 pessoas sucumbiram em 24 horas, sufocadas. Cidade Pequena inteira desapareceu. Seus habitantes dizimados. Ao final do dia, alguém distante desse povo, ainda que devesse ser o responsável por seu bem estar, ainda que soubesse o que ocorreria ou, por isso mesmo, apenas riu… Cidade Pequena é fantasiosa, o monstro que poderia devastá-la, infelizmente, não…

Darlene Regina / Roseli Pedroso / Lunna Guedes
/ Mariana Gouveia / Claudia Leonardi / Adriana Aneli / Alê Helga

A Moça De Aquário

A Moça De Aquário e eu, antes da Pandemia, reunidos no lançamento de “Confissões”.

Eu vi uma foto sua postada em que o meu neto de quatro patas, o Bambino, está diante da velha entrada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, local onde você estudou e se formou em Direito. Respondi à postagem dizendo que nunca imaginei na época que fiz três ou quatro eventos musicais por lá, que um dia uma filha minha estudaria naquela prestigiada instituição. Já havia utilizado outras áreas do Campus, mas quando sonorizamos a apresentação de Os Demônios da Garoa no sagrado TUCA, o teatro que foi incendiado à época do regime de exceção, em 1968, além de sofrer dois outros incêndios em 1984, no aniversário do primeiro e dois meses depois senti uma forte emoção ao ver as paredes laterais crestadas, gritando a sua relevância. Foram tentativas de calar movimentos libertários nascidos no seio artístico e estudantil um marco de nossa História. Também nunca imaginei que reviveríamos as mesmas ameaças da época da Ditadura, com a arte sendo atacada da mesma forma. Hoje, devido à Pandemia de Covid-19, o Campus inteiro da PUC-SP se encontra fechado. A vida está fechada. Vivemos uma Quarta-Feira de Cinzas depois de um não-Carnaval. Vivemos tempos nebulosos, entregues à sanha de um dos cavaleiros do Apocalipse Peste, Fome, Morte e Guerra. Para quem revelou que o negócio dele é matar, não duvido que represente a Morte. A Peste, já a estamos vivendo. A Fome é nossa companheira constante, mas crescerá diante do atual quadro recessivo e a Guerra já não é um desejo tão secreto do sujeito ao qual me refiro.

Quando você se formou há seis anos, lhe disse que estávamos deixando uma pesada herança para quem viesse depois de nós. E que também que não acreditava que veria um País melhor antes que eu viesse a morrer. Mesmo não sendo tão otimista, não passava por minha mente sequer metade dos problemas que presenciamos hoje no Brasil. Porém, quando a vejo diante de mim e testemunho a sua força, determinação e preparo, alguma coisa se acende em mim. Não diria esperança, porque não sou do time dos esperançosos, muito talvez por ter visto tantas vezes os brasileiros ludibriados por seus representantes, que deixei que esse sentimento se esvaísse pelos bueiros de nossas cidades sujas. A Democracia a ser aviltada por usurpadores de direitos e que colocam os seus desejos pessoais à frente dos coletivos uma nação tão rica, mas tão desigual. O fenômeno que eclodiu como pústula em 2018 não é causa, porém consequência de nossa condição de indigentes éticos. Como nasceu com o signo que carrega o futuro nos olhos e por tudo que realizou em sua vida, acompanhada de amigos e amigas talentosos e lutadores, o destino deste país pode não estar totalmente perdido.

Ingrid, meu amor, como eu gostaria de lhe fazer votos de felicitações, de alegria e alento! E apenas isso! Contudo, a realidade se impõe e não gostaria de ser desonesto consigo se não me mostrasse como o faço agora, inteiro. Ainda que um tanto ácido. Este é o meu presente! Você sabe que eu não tenho como lhe dar, neste momento, nada de regalo material… Eu lhe desejo saúde, sim; paz, sem dúvida; amor, mais do que já tem, se isso for possível! Eu lhe desejo o melhor do mundo. Mas sei que, como eu, você gostaria que o mundo todo também tivesse o que lhe desejo. Por isso, além de amá-la, eu a admiro. Pois você, aquariana, acredita na redenção dos contraventores, na inocência dos despossuídos, punidos antes mesmo da pena imputada, condenados por apenas existirem. Você é uma mulher ímpar, um ser do Bem, alguém que é devotada ao outro, que ama, amável que é! Se errar, será por amar, o melhor motivo. Já disse algumas vezes que sonhei com vocês três em minha vida, ainda um garoto imberbe, antes que pudesse entender o que isso significava. Cria num Brasil emancipado, equânime e justo para vocês. Apesar de tudo ou por causa de tudo que passamos para chegarmos até aqui e agora, não desejaria outras pessoas ao meu lado. Vocês me fazem renascer todos os dias! Especialmente nos dias em que recordo os seus nascimentos. Mas hoje, os meus parabéns serão somente para você, meu amor!