A minha irmã, Marisol — em busca da nossa poodle Sandy que sumira — em suas andanças pelas ruas do bairro, acabou por recolher dois outros cães. Passado um ano da passagem da minha mãe, cuidadora de bichos durante toda a sua vida, ela começou a desenvolver um comportamento similar e nunca deixou de procurar a companheira constante de Dona Madalena. A Sandy esperava o dia inteiro no portão a volta da minha mãe de sua última internação (o que nunca ocorreu) e, um dia, desapareceu ser deixar vestígios. Vizinha separada por um portão, para não misturarmos os cachorros do lado dela (são cinco) com as cadelas do meu lado (quatro), os encontrou no dia de São Bento. Católica fervorosa, a Marisol nomeou a um deles em homenagem do santo. Bento, provavelmente abandonado por causa de uma paralisia dos membros posteriores, só consegue andar por algum tempo com o uso constante de remédios. Boa parte do dia, ele mal consegue se deslocar. Mas isso não o impediu que transpusesse o portão e tentasse encontrar a Penélope — labradora grande e acima do peso — no cio. Este chamado da natureza foi poderoso o suficiente para propiciar o registro dessa paixão.
Como vai, Bento? Você não me conhece, mas eu o conheço. Na verdade, muita gente o conhece, ainda que talvez não saiba. Culpa sua, que divulgou sua passagem pela Terra. Com o passar do tempo, no entanto, a sua figura acabou por se tornar secundária em sua própria história. Mais adiante, falarei sobre isso.
Já me disseram que pareço com você. Pode ser. Há algumas similaridades. Você fez seminário, eu flertei com a possibilidade de me tornar frei franciscano. O meu orientador voltou para a Bélgica e tive lhe dar com um novo que pediu mais tempo para me conhecer. Disse que não poderia esperar mais um ano. Conheci a minha futura esposa logo em seguida.
Nunca quis seguir Direito, que supostamente busca a justiça. A única equivalência possível é que nasci sob Balança, de pratos sempre desequilibrados. Passei por situações que o mau humor me afastou das pessoas – pura casmurrice. De certa forma, não me importava tanto assim se ficasse só. Hoje mudei. Busco contato, alcancei reputação de ser boa praça. Espero ter ultrapassado a condição de ser que viesse a morrer amargurado se soubesse (ou presumisse) que uma das “minhas” filhas não fosse minha. Eu as amo tanto…
Sabe o que conseguiu com tudo que nos passou com a sua desconfiança? Que Capitu se tornasse cada vez maior do que você. Por algum sortilégio de cigana ou porque Capitu tenha ultrapassado sua condição de mulher resignada a seu papel de esposa silente, ela alcançou status de ícone feminino. Seus olhos de ressaca atravessaram quase dois séculos e continuam a fazer sonhar homens e mulheres.
Ela não era dissimulada, era alguém que sabia o que queria e quis e fez. Para se defender, usou das armas a que muitas mulheres utilizavam à época e ainda hoje, quando supostamente têm maior liberdade. Desculpe, meu caro, mas Capitu não cabia no personagem que gostaria. Pelo menos, você, Bento, teve a capacidade de nos revelar a verdadeira identidade dela através de seus olhares. Não se engane, não era o mesmo que o de Sancha, por ocasião do velório. Era mais profundo…
Creio que com a morte inesperada de Escobar, ela sentiu que um modelo de homem que admirava também morria. Ainda que não tenha se envolvido tão profundamente a ponto de se relacionar sexualmente com o seu amigo, ela via nele a possibilidade de interação que deveria ter consigo. Que eventualmente se prenunciou quando eram crianças. No final, perdurou a sensação de anticlímax.
Enfim, teria uma pergunta a lhe fazer se soubesse que responderia com sinceridade: você realmente amava mais a ela ou a Escobar? O rosto que via em Ezequiel não seria a face que gostaria que lhe acompanhasse amorosamente durante toda a sua vida? No entanto, até seu filho você perdeu durante a trajetória que decidiu desenvolver.
Oh, Bento!… Tão auto enganado, tão digno de pena, tão enganado… Boa noite, oh, insone!
Escolher meu personagem favorito, entre todos que encontrei em minhas leituras poderia ser difícil, se já não tivessem me chamado, um dia, de Bentinho. Após a leitura de Dom Casmurro, uma pessoa proclamou que eu parecia demais o personagem criado por Machado de Assis. De qual fase? – Bentinho, Dr. Bento ou Dom Casmurro?…
Do mesmo Machado, também me encantei por Brás Cubas. Talvez devesse ser o meu escolhido. O irônico defunto-autor faz uma análise pertinente e necessária para o mundo no qual viveu-morreu, cabível até hoje para muitas coisas, principalmente quando lidamos com as ações humanas.
Ou até devesse escolher o próprio Machado de Assis, um personagem rico, principalmente por sua vida incrível e contradições. O futuro fundador da Academia Brasileira de Letras, mestiço, neto de escravos alforriados, estudou apenas os primeiros anos escolares e se instruiu por sua conta, posteriormente. Começou a trabalhar em uma tipografia aos 16 anos e um pouco mais tarde começou a publicar seus primeiros textos. Rapaz de má fama – seja lá o que isso significasse – casou com Dona Carolina Xavier, de origem portuguesa, à contragosto da família da moça. Ela foi fundamental no crescimento literário de Machado, o colocando em contato com a literatura europeia, mormente a portuguesa e a inglesa. O contato com sua companheira de quase toda a sua vida, o influenciou decisivamente em muitos aspectos, principalmente no criativo. Chegou a homenageá-la com Dona Carmo, personagem de Memorial de Aires. O seu passamento, o deixou bastante abalado. Não tiveram filhos. Talvez, os livros os substituíssem.
Por fim, decidi ficar com Bento, mesmo. Tenho certa tendência a me mortificar e ser comparado a esse personagem, um anti-herói, me apraz. Não me reconheço inteiramente nele – os parâmetros que utilizo são íntimos e impublicáveis – porém, é um personagem complexo. E, principalmente, teve Capitu em seus braços. Apaixonado pela moça com “olhos de ressaca” desde garoto (eu e ele), não me importaria em dividi-la com Escobar. Assim como suspeito que, contrariamente, ele não gostaria de dividir Escobar com Capitu e Sancha…
Como eu, Bento nasceu de um parto difícil e flertou (se bem que à força – ele, não eu) com a vida religiosa. Como ele, fui mimado amorosamente por minha mãe. Por sua influência, ainda que nossas condições econômicas não permitissem, comecei a trabalhar tarde. Ela tinha um espírito religioso, mas não ortodoxo. Abrangia várias crenças, em um amálgama religioso que herdei em termos gerais. Nunca fui e nunca serei um homem abastado, a não ser em amor. Aceitaria um filho que suspeitasse não ser meu, por amor. Ao contrário do personagem de Dom Casmurro. Ainda tendo algum tempo pela frente, não creio que venha a desenvolver a casmurrice que o notabilizou. Apesar de ser um tanto teimoso. Otimista, sou praticamente uma Pollyanna, a fazer o “jogo do contente”: tento sempre ver o melhor lado de cada acontecimento.
Minha imaginação grandiloquente eventualmente possa associar Bento a mim. Com ela e minha memória, um dia escreverei um livro-relato de uma vida toda. Os personagens serão apenas um – eu mesmo – multiplicado. Não seriam todos os personagens somente reflexos do autor, ainda que a quem ele venha se referir realmente tenham existido? É provável que não conseguisse escapar ao meu centro umbilical. Olha, mais uma aparência com Bento – egocentrismo a toda prova…