Confissões*

Senhor, confesso que pequei… e continuo a pecar. Registrei uma parte em livro.

Eu nem me lembro se já fiz um diário. Talvez eu tenha feito. Mas para ter certeza, teria que revirar os meus papéis antigos, guardados em alguma caixa de papelão jogada em algum canto da casa.

Onde devem estar reservados vários livros antigos, degredados da biblioteca oficial, estabelecida em uma das salas. Devido ao estado um tanto precário de alguns — encardidos, com páginas rasgadas, comidas por cupins ou traças — vivem escondidos dos olhos de quem julga um livro pela capa.

Tenho alguns defeitos e vou enumerá-los aos poucos. Um deles é ter apego a esses velhos companheiros. Fui catador de papéis e outros materiais descartáveis quando moço, junto com o meu pai, aos sábados e domingos. Utilizávamos a Gertrudes, a nossa Kombi, para carregar o que conseguíamos. Vários desses livros são dessa época. Foram jogados fora, alguns reconhecidos clássicos da Literatura. Outros, recolhi do lixo do colégio no qual fiz o Segundo Grau, expulsos da antiga biblioteca, então demolida. Muitos, doados por ex-estudantes ou colaboradores que têm os seus nomes neles registrados.

Se há rastro de algum diário, estará entre esses papéis… inúteis para tantos.

*Lançado em 2019, pela @Scenarium Livros Artesanais.

BEDA / Deseducação

De acordo com uma reportagem de O Globo, “O Governo de São Paulo recusou livros didáticos do MEC para usar apenas seu próprio material digital em alunos do 6º ao 9ºano do Primeiro Grau. O Estado alegou que possui material didático próprio para manter a ‘coerência pedagógica’ e que escolas têm a orientação de providenciar a impressão do conteúdo digital sempre que houver necessidade.

O governo de São Paulo decidiu não aderir ao Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD), do triênio de 2024 a 2027, para o segundo ciclo do ensino fundamental (entre o 6º e o 9º ano). Segundo Ângelo Xavier, da Associação Brasileira de Editores e Produtores de Conteúdo e Tecnologia Educacional (Abrelivros), essa é a primeira vez que isso acontece desde a criação do programa, há mais de 80 anos. Com isso, os estudantes de São Paulo, a partir do 6º ano, só terão material digital. Para os anos iniciais, material digital com suporte físico; nos anos finais e ensino médio 100% material digital”.

Lembrando que não há custo do Estado no recebimento do material didático, foi decidido aderir apenas à compra de obras literárias para o PNLD e do material didático para a educação de jovens e adultos (EJA). Foi uma tomada de decisão unilateral, sem consulta às escolas ou especialistas, pelo Secretário da Educação paulista, Renato Feder. Obviamente, alinhado à orientação do Governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.

O carioca e bolsonarista Tarcísio foi uma invenção do ex-presidente brasileiro para concorrer ao Estado que se constitui no segundo orçamento nacional, atrás apenas do Brasil. Antes de ser colocado no jogo, não conhecia São Paulo e não saberia distinguir localizações tão distantes quanto São José dos Campos e São José do Rio Preto. Eleito pela população paulista majoritariamente conservadora do Interior, está tentando implementar uma visão programática à Direita.

O sujeito disse a que veio ao trazer a visão belicista à Segurança Pública inefetiva no Rio de Janeiro. Permitiu e abençoou uma operação gigantesca, utilizando uma força composta por 600 homens na invasão a uma favela no Guarujá, em resposta à morte de um PM da ROTA. Até o momento, a operação gerou 14 mortos e contando, com a acusação recorrente de moradores na prática de torturas para obtenção de informações e execuções.

No Litoral Paulista, devido ao Porto de Santos, grandes traficantes com ramificação internacional, mantém o domínio de comunidades que recorrentemente foram deixadas de lado pela Administração Pública com relação aos investimentos em melhorias da infraestrutura. Seria o caso de uma operação que envolvesse a utilização de inteligência policial (o que no Brasil parece ser uma contradição em si) do Estado e da Polícia Federal. Mas Tarcísio pretende que São Paulo se torne um enclave opositor às políticas governamentais do Governo Federal.

O que parece contraditório é que o avanço tecnológico no combate à letalidade na condução da segurança – o uso de câmeras nos uniformes policiais pretende impor o material didático virtual como única alternativa de ensino.  No caso da Educação, o que parece ser um avanço, esbarra na precária rede de Internet nas escolas, além da falta pura e simples de tablets, laptops e computadores de mesa suficientes para todos os alunos nos próprios escolares. Mas quando ocorre uma ação dessa turma dessa magnitude, não podemos deixar de perceber que o custeio de novos apetrechos terá um gasto bastante atraente para alguns agentes da área digital ligados ao financiamento da sua campanha ao governo paulista.

Eu conheço um pouco da realidade de escolas estaduais na Capital e sei que ainda que sejam fornecidos aparelhos suficientes, a estrutura digital é deficiente para atender a esse plano que visa, prioritariamente, o afastamento da orientação do Governo Federal na área didática. É uma guerra ideológica escamoteada pelo termo “manutenção da coerência pedagógica” paulista. Sei que o futuro será a utilização cada vez maior de recursos digitais. O que não quer dizer que seja exatamente um progresso humano, mas o subdesenvolvimento de funções mentais, físicas e psicológicas de nossos jovens.

A experiência sueca, que buscou a mesma orientação agora preconizada, deu meia volta, já que os índices de aprendizagem caíram drasticamente. A começar com a quase extinção da escrita à mão, já referenciada como excelente para o desenvolvimento motor e cognitivo. Uma decadência de mão única para a queima virtual de bibliotecas inteiras e tentativa do controle absoluto sobre o comportamento humano, finalmente condicionado à virtualidade.

Texto participante de BEDA: Blog Every Day August

Bob F / Roseli Pedroso / Suzana Martins / Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Claudia Leonardi

BEDA / Universo Cidade*

dois ônibus ir dois voltar
atravessar cidade universidade
mãe orgulhosa pai exultante
dizia para amigos meu filho uspiano
afastado não ajudava
madalena sozinha pagava transporte
quatro passes por dia
dinheirinho lanchar xerocar
saía cedo voltava noite
quinze minutos de atraso
multiplicado tempo por quatro
trabalhos feitos nas coxas
papel caneta trepidação asfalto irregular
letra estranha hieroglifo pessoal
egiptologia primeiro desafio
professora boa severa
o tema é este se virem
biblioteca lugar preferido
mudei maneira exposição
regrei pensamento
conheci colegas artistas
ratos de porão ira!
piscina plataforma dez metros
saltos prova de coragem
futebol campo oficial médio volante que batia
corridas cem metros diversão
um dia fiquei preso trânsito parado
dormi meia hora acordei mesmo lugar
preferi hora mais ficar entre livros
no retorno augusta noturna
mulheres lindas altas curvilíneas
especiais volumosas homens
quis cantar no coral
rejeitado maestrinho novo filho de maestrão
cargo indicado o vaidoso queria distinção
contrário anúncio não precisava saber cantar
feliz ano velho figurante de filme
pensei ser ator
colega cabelos dourados desfilava pelos corredores
guardava o sol na cabeça
iluminava meu olhar seu sorriso
outra noiva que desejava
convite bicicleta Ibirapuera
timidez atroz medo escapei
outro amor do colégio
estudava nutrição invadi sala entreguei cartas
declaração admiração paixão recolhida
encontro noite estranha
eu não conseguia falar o que desejava
ela disse você não pertence a sua família
mãe irmãos dissemelhantes
como se fosse adotado
aumentou sensação de alienígena
quando a busquei de novo
comportamento muito ruim
passei limites me senti diferente de mim
mas era eu mesmo assim
dissociação perigosa inescrupulosa
um dos meus avessos quis ser frei franciscano
quase três anos caminho
visita seminário agudos santo antônio
frei luiz não quis mais um ano sabia
frei não seria
de história entrei curso português
sonhava ser escritor mudei opinião conheceria mulher
tingi cabelo amarelo trabalhar carnaval
encontrei namorada que veio de longe
rasguei peito abri coração
perdi virgindade transei primeira vez
mudei curso rumo caminho história
27 anos engravidei casei
a vida acontece apesar da vida.

*Poema de 2021

Imagem: Foto por t4hlil em Pexels.com

Participam: Danielle SV / Suzana Martins / Lucas Armelin / Mariana Gouveia / Roseli Peixoto / Lunna Guedes / Dose de Poesia / Claudia Leonardi / Alê Helga



  



Missivas De Primavera / Receituário De Uma Quinta Infinda

Roseli Pedroso

Companheira,

se fosse fazer uma brincadeira, dessas de criança, perguntando: “o que é que é, um ponto prateado num Centro cinza” – sem pestanejar, responderia – Roseli! Pois você se destacaria com a sua cabeça de prata em meio a multidão que caminha pelas ruas centrais da Vila Buarque. Assim como o Buarque de Holanda, também escreve e poetiza a realidade com as suas crônicas que falam de tudo e de todos – da vida e da morte, do azar e da boa sorte, de si e do outro. Como o compositor, compõe crônicas ora com a alegria de viver, ora com a decepção de saber, ora com a oportunidade perdida, ora com a batalha vencida.

Senhora de si e do verbo, escreve Quinta das Especiarias, remetendo ao passado de sabores, odores e amores que a formaram. Como também narra as vidas de mulheres que viveram as agruras de expectativas não realizadas, alienação e sofrimento de umas e revoltas construtivas de outras, em Equação Infinda. Em Receituário de Uma Expectadora, vemos mais do que alguém que espreita o movimento, mas intervém na Realidade, imprimindo com a sua análise a marca de ironia fina. Contadora de histórias e defensora do conhecimento, quase a imagino um ser mitológico, uma espécie de Atena, que após o fim do mundo como o conhecemos, a encontraria guardiã de uma imensa biblioteca para o bem do novo alvorecer.

E é aí que nos encontramos, passeando para além do cenário amado do Centrão, ainda que nunca tivéssemos trombado por aí. Porque talvez os forasteiros não saibam, mas São Paulo é uma província, apesar de tanta gente viver por aqui. É o teatro onde buscamos personagens e lugares, falas e situações que nos enredam e nos trazem enredos com os quais enveredamos por testemunhos e textos. Quase a imagino um ser mitológico, uma espécie de Atena, que após o fim do mundo como o conhecemos, seria guardiã de uma imensa biblioteca para o bem do novo alvorecer.

Com eles, contribuímos para a boca de cena da Scenarium. Lugar de amálgama, síntese e solvências, esta cidade é a seara onde plantamos palavras que geram escritos, ainda que seja um campo endurecido de asfalto e concreto. Como sabemos, nada é por acaso. Se uma italiana se perdeu / se encontrou em Sampa e, através dela estes paulistanos se encontraram, alguém objetaria dizer que não foram pelas mãos de divindades celtas? Promotora de misturas alquímicas, realizou cerimônias ritualistas a qual chamou de Saraus, a nos colocar sempre fora de prumo, pela luz da Lua minguante.

Querida, espero nos reencontrarmos num desses rituais promovidos pela sacerdotisa-mor ou antes, por um desses acasos de tempo e lugar. Por enquanto, envio esta missiva, com muito carinho, já antevendo o seu imenso sorriso que nos remete à eterna menina que é.

Um abraço cenográfico!

                                                                                                                                Obdulio

Participam: Lunna Guedes / Suzana Martins / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso

Dez Vezes Escritor

Imagem parcial da biblioteca com títulos da Scenarium Plural — Livros Artesanais

Tudo começou com latas de manteiga que meu pai usava para guardar pregos, parafusos e itens similares. Comecei a desenhar as letras, uma por uma, em meu caderno de brochura da pré-escola. Ao terminar a página, passava para a outra sem o “vale” existente entre as duas me impedisse.

Nos primeiros anos escolares, lia os livros de todas as matérias até a metade do ano, por pura curiosidade e sede de conhecimento, não importando o tema. Excetuando as matérias exatas. No primeiro ano primário, como mudei de escola, li os dois de alfabetização, diferentes entre si.

Eu buscava o “Excelente!” das professoras como se fosse um prêmio para o meu artesanato na escrita. Ganhei alguns e percebi que gostava de agradar às minhas “primeiras leitoras”.

Quando ajudava o meu pai como “catador de papel”, entre os 12 e os 14 anos, recolhi vários livros jogados fora como lixo, o que me proporcionou formar a minha biblioteca particular. Alguns deles, guardo até hoje.

Quando garoto, apresentava algumas habilidades artísticas inatas: lia e escrevia com facilidade, desenhava razoavelmente bem e sabia modelar com massa e cheguei a usar barro para fazer algo parecido com “esculturas”, além de arte em relevo em madeira. Para completar arranhava bem o violão. Mas escrever começou a ganhar cada vez maior espaço. O meu mundo interior ganhava clareza no uso das palavras, as quais comecei a cultivar com carinho crescente. Namorava termos e sentenças. Buscava os efeitos inusitados e passei a amar livros e escritores que me estimulavam mais fortemente.

Porque escrevia bem, segundo avaliaram, fui escalado como candidato a um concurso de leitura. Eu e outro colega “duelamos” para representar a nossa escola. Fiquei tão incomodado com aquilo que não me esforcei para vencer. Depois da decisão, feita pelo professor, me perguntaram a razão de estar sorrindo. Não sabia responder. Ao ler em público, percebi que além da timidez, tinha uma maneira não linear de ler. Era como se eu tentasse “escrever” o texto ao mesmo tempo que lia. Achava estranho quando a ideia era desenvolvida diferentemente do que eu estava imaginando. Tive que me disciplinar para que pudesse ler “realmente” o que propunham os escritores, ainda que saiba que ler também é reescrever uma história.

Como adorava cinema, pensei em me tornar um cineasta. Mas sabia que a “sétima arte” no Brasil era precária. Depois, me imaginei um publicitário. Isso, antes de não querer mais “participar do sistema” de forma alguma, a partir dos 17 anos. O máximo que cheguei perto “fazer um filme” foi participar como figurante de “Feliz Ano Velho”, em 1987, quando fui aluno de História, na USP e lá recrutaram quem quisesse fazer parte da filmagem. Mas desde o início meu foco recaía na criação e desenvolvimento literário por trás da expressão cinematográfica.

Em certa época, encetei a possibilidade de me tornar Frei Franciscano. Não cheguei a frei, mas franciscano sou até hoje. Enquanto lia obras sacras relacionadas aos temas para a preparação seminarística, continuava a ler os livros seculares ou mundanos. Os de Machado de Assis, por exemplo, eram sagrados para mim.

Ao me casar, diminuí bastante a atividade da escrita, até praticamente deixar de escrever. Depois de vinte anos “parado”, voltei a exercitar a palavra escrita com o surgimento das redes sociais. Alguns anos depois, Edward Hopper e Maria Cininha me juntou a Lunna Guedes. Sob sua orientação, percebi que tinha que reaprender a escrever.

Aos 55 anos, lancei o meu primeiro Livro — “REALidade”. Mais dois — “Rua 2” e “Confissões” — se sucederam, pela Scenarium Plural – Livros Artesanais. É bem possível que um quarto venha à luz ainda este ano — 2121 — também conhecido como segunda edição de 2020.

Isabelle Brum – Darlene Regina – Lunna Guedes