BEDA / Voo Emprestado*

Você me chamou e não a ouvi
Estava absorto na faina cotidiana
Navegava pelos rios de asfalto da cidade
Percorria os túneis de fuga terra adentro
Para fora de mim mesmo
Sempre apartado do meu corpo

O que poderia ser um sinal de independência
Não se cumpria
Pois os pensamentos arquitetados
Por outras mentes
Eram absorvidos pelos meus olhos
Invadiam o meu cérebro
E eram caminhados por minhas pernas
Se incorporando à minha rotina
Como se meus fossem através do poder de intervir
Consumado pela arquitetura citadina
Realizada pelos planejadores do ir e vir

Estava partindo para um lugar certo
Porém não pensava nisso
Mesmo querendo parecer borboleta
Ainda que formada e liberta
Voltava para o meu casulo
Que me atraía
Como tal, as minhas asas voavam um voo curto
Mais decorativas do que eficientes
E termino sendo um simples humano ser
Fingindo um próprio querer…

Foto por JESHOOTS.com em Pexels.com

Poema de 2019*, participante do BEDA: Blog Every Day August

Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Bob F / Lunna Guedes / Suzana Martins / Cláudia Leonardi / Denise Gals

BEDA / Uma Só Asa

Eu, até os meus quatorze ou quinze anos, escutava muito mais músicas brasileiras do que estrangeiras. Corria o início dos anos 70. Era bastante fascinado pelas letras, que em conjunto com as belas melodias, compunham o meu acervo poético, para quem não tinha tanto acesso à literatura em versos para além dos livros didáticos do ginásio.

Entre os compositores que apreciava, Chico Buarque era um dos meus favoritos. As suas composições, falando das mulheres como se fora uma, me influenciou grandemente. Eu, que apenas queria entender aquele ser que se expressa fortemente através da associação do cérebro a uma parte do corpo que os homens nem sequer imaginam o poder – o útero – o usei como referência em muitos aspectos. Quando ouvia “Mulheres de Atenas”, “Com açúcar, com afeto”, “Cotidiano” e “Sem açúcar”, por exemplo, sabia que era apenas um contraponto, já que a minha mãe, minha referência imediata, não se parecia com aquelas mulheres aparentemente submissas.

Nos versos a seguir, que fiz para um projeto musical apenas iniciado, mas nunca levado adiante, tento me colocar no lugar de uma mulher. Espero que as minhas amigas se sintam pelo um pouco representadas por eles. Se não, perdoe a intromissão nesse universo que tento compreender até sempre.
Anjo
Uma Só Asa

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?

Um anjo caiu em meu quintal e foi assim
Uma luz, um estrondo… e um rapaz se ergueu
Entre a garagem coberta e o canteiro do jardim
De seus ombros largos, apenas uma asa, a outra se perdeu…

Vestia uma roupa muito branca, quase transparente

Deixava entrever as formas de um corpo esguio
Jeito de menino-homem, com a sua asa pendente
Caminhando decidido, veio direto para mim, bravio

Não tive medo, não pensei neste tempo doentio

Parece até que o esperava, o buscava em meu sonho
Não aguardava que fosse um anjo vindo do vazio
Mas senti que ele seria aquele ser que chegara risonho…

Ao se aproximar, pegou em minha mão, que tremia
Beijou a minha testa e baixou os lábios até a minha boca
Apenas entreabriu a sua e soprou que me queria
Que já há algum tempo me observava e que chegara a nossa época…
Perguntei sobre a asa que não trazia, a que havia sumido
Respondeu que começou a pensar apenas em mim e que caíra em casa
Já amputado, porém feliz, pois fora atendido em seu pedido
E dessa maneira, ganhei o meu homem, um anjo de uma só asa…

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?”

Redemoinhos, Rodamoinhos, Remoinhos, Moinhos

Careca

Hoje, perdi um grande amor – os escritores são pródigos em perder histórias e amores – todos os dias. Ao passar a mão pela cabeça desnudada, com os poucos cabelos quase ao rés (máquina 2), dia de calor intenso, sinto o suor a umedecer a pele da palma e lembro dos redemoinhos da vasta cabeleira que portei durante décadas. Desde garoto, fui adepto dos fios longos, ainda que não os penteasse, por questão de princípio. Fui perdendo os cabelos ao longo do tempo, influência direta da ascendência calva de meu pai. Ultimamente, como foco de resistência, tenho adotado a barba um tanto mais pronunciada, quase sempre desgrenhada.

Meus redemoinhos ficavam (ficam) em três pontos, no cimo, e atrapalhavam o penteado mais comportado. Segui suas desorientações. Certa ocasião, ouvi alguém chamá-los de remoinhos. Procurei saber e descobri que também é uma forma de nomear essas zonas tempestuosas em nossas cabeças. Eu os imaginava como sorvedouros de ideias. Seria uma das possíveis explicações para eu viver a criar histórias vindas do nada ou inspiradas por palavras soltas ou circunstâncias as mais simples imagináveis – temas de amor, vida e morte.

O meu cérebro, logo ali, abaixo dos pelos, se transformava em moinho de ventos e pensamentos, gerando viveres e sonhos – esfarelados, amalgamados, reconstruídos – e jogados no papel. Certa ocasião, decidi parar de aceitar que meus rodamoinhos pessoais deixassem de tragar histórias. Quis criar vivências reais, com pessoas reais. O sofrimento igualmente tornou-se real – não fingido – doloroso e cru, ventos contrários. Em contrapartida, o amor ganhou solidez e riqueza – ventos favoráveis. A caneta de lado, quase não mais serviu ao propósito de transformar tudo em ficção. Cria que isso balizaria minha existência. No entanto, quase morri…

Porque somente a realidade ou pelo menos a realidade que nos impõem, é prerrogativa da existência. Como no Cosmos, a matéria escura – algo supostamente ausente – tem o condão de explicar a união da matéria mensurável. Precisamos – eu preciso – sonhar a vida. Escrever gera esse movimento. Apesar de meus redemoinhos estarem invisíveis, pelo efeito da calvície, ainda têm o poder de absorver e regurgitar energia. Metaforicamente, ainda balanço a cabeleira ao vento e absorvo, com cada vez maior paixão, a vitalidade de existir.

Amar Em…

Screenshot_20180530-002630_Instagram
Invólucro…
2040 – estamos na estação das chuvas ácidas…
O clima mimetiza as relações tácitas,
enquanto enormes exaustores de chumbo
executam a tarefa de limpar o ar imundo…

As precipitações corroem os cimentos e as ferrações.
Tampouco parece poupar pessoas, corações…
Não batem por outros seres, apenas anseiam por novos jogos,
lançamentos que são comemorados com fogos…

Brinquedos simulam vidas as quais os participantes não vivem.
Eletrodos conectados ao cérebro estimulam emoções eclodirem…
Imaginam, sem se tocarem, que amam profundamente
seus próximos, ainda que distantes remotamente…

Estou perto dos oitenta. Reformei recentemente o meu envoltório,
com as modernas técnicas científicas do território.
Cortei metade da idade, para adequar meu corpo à mente.
Revolucionário, quero amar em plenitude, como se fazia antigamente

Me apaixonar sem higiene high-tech, me embebedar de sumos corporais…
Gozar através dos meus poros, esvair por meus terminais…
Suar, ejacular palavrões, subverter este mundo do amor em decadência.
Quero borrar a maquiagem da amante, ser um herói da resistência…