Cometi um crime, hoje! Se bem que justificável. Tive que tirar essa pequena planta que houve por bem se incrustar na parede. Tive que arrancá-la porque, se a deixasse progredir, causaria um bom estrago. Já aconteceu antes. Causou infiltrações e deslocamento de uma parede, devido ao engrossamento do tronco e das raízes. Um dia, quando o ser humano não estiver mais ocupando a face deste planeta, talvez as plantas tenham chance de prevalecer, finalmente…
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Blogagem Coletiva Scenarium / De Que Eu Me Lembro? / Lembrar-Me
Do que eu me lembro, nada obedece a uma sequência programada, sequencial, consequente. Talvez, caso eu fosse chamado para um interrogatório — onde você estava em tal dia, em tal lugar, com quem, de que maneira chegou até lá, quais eram as suas intenções? — quem sabe conseguisse puxar pela memória fatos que me revelassem o crime cometido.
Por mais que me sinta culpado — aquela culpa atávica de estar vivo e inteiro num mundo em processo de desintegração — não creio que seja um sujeito ruim. Colabora para esse sentimento liquefeito a facilidade de me esquecer. Por uma estratégia de sobrevivência, vou me desvencilhando dos elos da pesada corrente que nos puxam para o passado. Não as arrasto feito fantasma de mim mesmo. Ainda que identifique aqui e ali marcas de ferrugem na minha memória.
Ao mesmo tempo, tento me manter atento ao fato de fazer parte da espécie que me dá as referências sobre as quais caminho — Homo sapiens — homem, brasileiro, idoso (renitente), simpatizante da diversidade de gêneros e identidades sexuais, feminista mentalmente formado no Patriarcado, portanto, contraditório. A situação mais marcante que aconteceu comigo nos últimos tempos foi o arredondamento da minha idade para os fatídicos 60 anos que me faz automaticamente precipitar para o abismo dos “idosos”. Brincando, digo que o “fardo” que carrego é de alguém com 59.
Para muitos, é como se fosse a chancela para seja sacrificado por sua inutilidade. Para mim, é a oportunidade de demonstrar para mim mesmo as teorias que desenvolvi desde novo, quando já não sentia acolhido pelos números que designam os ritos de passagem de criança, para adolescente, depois para jovem adulto, adulto, meia-idade, velho, decrépito… — a que o processo de desenvolvimento é pessoal. As idades mentais não se coadunam muitas vezes como as físicas, que o espírito é independente do corpo, apesar da gravidade atuar inexoravelmente para que concordemos com os parâmetros confortáveis que ditam tarefas afeitas a cada tempo de vida.
De modo mais claro, eu me lembro que transitei por “idades” díspares pelas quais era identificado. Já fui um velho moço, um adolescente quase à morte, um senhor criança e sou, se é que se pode estipular dessa maneira, um eterno curioso de mim no mundo, em busca de uma desesperada identificação com os outros seres da minha espécie. No entanto, rejeito rótulos, oblitero exteriorizações, tento caminhar por referências pessoais, procuro me incluir entre os tolerantes. Ainda que seja eu a principal vítima de minha intolerância.
Fisicamente, quando passei por um processo de enfermidade, em que emagreci 30 Kg em pouco tempo, lutei para não me assustar com a imagem que via no espelho, totalmente diferente da que carregava em minha memória como sendo a do Obdulio que conhecia. Não apenas eu, mas as pessoas não me reconheciam de imediato e o olhar que apresentavam quando me viam era assustador. Mais novo, ao adotar o vegetarianismo, também havia perdido bastante peso e ocorreu algo diverso — eu continuava a me ver como era antes.
Eu havia desenvolvido a distorção de imagem pela qual muitas pessoas passam em diversas circunstâncias. O ex-gordinho continuava a se ver gordinho e o olhar de horror das pessoas era mais evidente em uma época que a AIDS surgia com força avassaladora. Isso serviu para me identificar com quem sofria a rejeição pela doença e atento às informações sobre a enfermidade, sabia que a “peste” que grassava maior então era a da ignorância — algo cíclico em todos os tempos — que se abateu sem dó sobre quem viveu aquela fase tenebrosa.
Muita da minha memória é autorreferente. Eu fico encantado com quem consegue falar sobre o que aconteceu com os outros como se estivesse descrevendo um filme. As minhas lembranças que pontuam espasmodicamente aqui e ali, normalmente são de aparente insignificância, sem correlação com algo que pudesse ser chamado de “história”. Tem mais a ver com cacos de fatos disparatados como se fossem flashes instantâneos de recordações randômicas, aleatórias. Talvez fosse o caso de fazer análise de forma mais sequencial. Todas as vezes que começo, porém, acontecimentos alheios à minha vontade se interpõem, fazendo com que pare.
Enquanto isso, escrevo. É bem possível que minhas histórias sejam lembranças guardadas em algum depósito mental, liberadas aos poucos como se pertencessem a outros. Ou poderia dizer que essas histórias acabem por se incorporarem à minha, as tomando como se fossem comigo. Essa simulação de ser que muitas vezes me sinto, se mostra débil, mas estranhamente vigorosa, como se fosse a maior característica de minha existência: um sobrevivente que caminha sobre escombros de terra arrasada. Sobreviverei enquanto a curiosidade me guiar à procura de saber quem eu sou.
Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Roseli Pedroso
Os Mafiosos*

Antonio Raimundo Montana, conhecido como Tony Montana, é o personagem fictício interpretado por Al Pacino no filme Scarface, codinome, advindo de uma cicatriz no rosto, é resultado de uma briga quando criança. Seu pai o abandonou quando era pequeno e o relacionamento com sua mãe e irmã sempre foi instável. Refugiado ilegal cubano, fugitivo do regime comunista de Fidel Castro, seu amigo Manolo “Manny” Ribera em um acordo com um chefão das drogas de Miami, em troca de alguns serviços, resultou no green card para Tony, que trabalhava como lavador de pratos em uma lanchonete até entrar definitivamente na máfia que controlava o comércio de entorpecentes. Traços marcantes do personagem eram o uso abusivo de cocaína e o assassinato frio, com requintes de crueldade de suas vítimas. Acabou se casando com Elvira, a loira personagem de Michelle Pfeiffer, ex-esposa de seu antigo patrão. Scarface pode ser considerado um dos grandes filmes sobre a Máfia do cinema americano, juntamente com The Godfather e Goodfellas.
Além disso, Scarface, de 1983, com o argumento de Oliver Stone e direção de Brian De Palma, inspirou outras mídias e modelos de expressão:
- O jogo Grand Theft Auto: Vice City tem muitos traços que indicam serem inspirados no filme e em Tony. O personagem principal do jogo se chama Tommy Vercetti. A mansão dele é idêntica à de Tony, bem como uma casa onde se acha um banheiro sujo de sangue com uma serra elétrica, uma das cenas do filme.
- Foram criados dois outros jogos em sua homenagem: Scarface: The World Is Yours e Scarface: Money, Power, Respect, ambos lançados em 2006.
- Vários rappers aderiram à expressão: “Money, Power, Respect” ̶ o grupo The Lox fez um CD com esse nome.
- Também foi criado um jogo de celular em sua homenagem. A trama do jogo é parecida com Mafia Wars e se chama Scarface: The Rise of Tony Montana.
- O rapper e integrante do grupo de K-pop sul-coreano BTS, Agust D (Suga) fez uma música em referência a ele em sua mixtape solo intitulada Agust D.
- Um miliciano brasileiro atuante no Rio de Janeiro, o adotou como ídolo e ao ser preso, encontrou-se bonecos na prateleira inspirados no personagem Tony Montana, junto a um pequeno cartaz com a inscrição AI-5.
O Ato Institucional nº5 (AI-5), baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do Gal. Costa E Silva, foi a expressão mais significativa da Ditadura Militar brasileira, que durou de 1964 a 1985. Vigorou até dezembro de 1978 e produziu uma série de desdobramentos arbitrários de efeitos duradouros, como a morte e desaparecimento de opositores. Definiu o momento mais duro do regime, dando poder de exceção ao governo para punir arbitrariamente os que fossem críticos do regime ou inimigos atuantes. Isso incluía prisões sem justificativas e torturas realizadas por agentes militares e civis para a obtenção de possíveis informações de ações que viessem a atacar o governo.
No campo cultural, censurou inteiramente ou vetou partes de roteiros de cinema, peças de teatro, novelas de TV, músicas, livros e jornais. Em lugar de notícias, alguns periódicos passaram a dar receitas culinárias. A Imprensa foi impedida de noticiar acontecimentos que denunciassem ou minimamente indicassem algo que viesse a demonstrar desvios de conduta dos participantes do chamado “governo revolucionário”.
O que os militares denominaram de Revolução foi basicamente um golpe de estado realizado pelas Forças Armadas, no mesmo formato que imperou no continente latino-americano durante décadas do século XX, normalmente ligados à direita patrocinada pelos Estados Unidos da América. Em sentido contrário, o exemplo mais famoso de uma revolução influenciada pela esquerda tradicional foi a cubana, liderada por Fidel Castro. Seria por isso que o Fabrício Queiróz teria Tony Montana como ídolo, por ele ser um fugitivo do Regime Castrista? Ou por que ele ter angariado tanto poder a ponto de ser um exemplo de sucesso na seara do crime? Ou a realidade que ele vive espelha exatamente o clima de violência e negação de humanidade ao qual se acostumou na formação da quadrilha da qual participa? Isso explicaria a falta de empatia de seu Chefe direto? Será que tanto ele quanto o Chefe conseguem distinguir entre realidade e ficção?
Eu não sei de quase nada, mas desconfio de muita coisa. Normalmente, por observação. O fascínio por poder dessa turma que atua no governo brasileiro mistura alhos com bugalhos e desvios de conduta com estilos formais que denotam projeções de personagens maiores do que suas ações. É comum se refestelarem no uso de interjeições, palavras de ordens e palavrões. “Fuck” foi pronunciada 182 vezes por Tony no filme Scarface. 37 palavrões foram proferidos na reunião ministerial de 22 de abril de 2020. 29 deles, pelo Chefe do grupo. Apraz aos nossos mafiosos promover atos kitsch associados à riqueza, como pilotarem jet-esquis ou se mostrarem montados a cavalos em público, sobranceiros.
Gostam de alardearem atributos com ares de arrogância e de realizarem movimentos que demonstrem força. Algo como, por exemplo, dizer que tem histórico de atleta e fazer excêntricos “abdominais de pescoço”. Suas atitudes são baseadas em profecias ou restauração de paraísos perdidos, utilização de frases bíblicas que, vez ou outra, vão de encontro a ideais de dominação hegemônica de um País originalmente múltiplo em termos raciais, sociais, religiosos e econômicos como o nosso. Uma pandemia, a saber que provavelmente os eleitos de Deus estariam protegidos contra ela, viria bem a calhar para eliminar parte da população, exatamente aquela que representa a menos interessante para quem deseja um país padrão ̶ pobres, velhos e doentes crônicos ̶ tomadores de recursos. Deixaria correr solta a manifestação de sua força se não fosse a intervenção das outras instâncias institucionais.
Associada às iniciativas negacionistas, abominam o Conhecimento e a Ciência. Guindados ao poder pela pregação de seu evangelho particular, buscam desmantelar a Educação e as plataformas de expressão de artistas que exprimam um estilo de vida que destoem de seu projeto. Efetivamente, atacam um outro flanco do ambiente pernicioso que aviltaria o ideal de Pátria sem ideologia ̶ a Cultura ̶ na verdade, uma ideologia branca, de viés fascista-miliciano. Não é por outro motivo que propõem liberdade de armamento para a população. Que população seria essa? Minhas filhas, a Marineide, o Seu Zé da esquina, escritores, artistas, religiosos, locutores esportivos? Ou milicianos, que já usam armas com desenvoltura e já participam das máfias que prosperam à sombra do vácuo do Estado?
O Escritório do Crime de Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, constitui um desses grupos de milicianos. Surgiu inicialmente como matadores de aluguel e, aos poucos, cresceu com a adesão de “de agentes de segurança do estado, entre servidores da ativa, aposentados e afastados. O grupo se imiscuiu em atividades ilegais, como a grilagem de terras, a construção e venda de imóveis sem licença, a extorsão de moradores e de comerciantes e o controle e cobrança de serviços essenciais como água, gás, luz e transportes públicos. A quadrilha também negocia permissões para que candidatos possam pedir votos nas áreas que domina. Só faz campanha ali quem paga pedágio”. Não duvido que possa ter se tornado, de fato, em reduto de votos de simpatizantes da milícia, como a famiglia que está em Brasília, ao molde dos antigos “currais eleitorais” da política brasileira, em que se colocavam eleitores em cercados até serem liberados para a votação. Os modernos currais se expandiram pelas redes sociais, armados de fake news, lançadas alegremente por uma fake elite e robôs pagos a soldo por empresários fakes.
Adriano Nóbrega, ex-capitão do BOPE, líder do grupo miliciano Escritório do Crime, em 2005 foi homenageado em projeto de resolução proposto por Flávio Bolsonaro, então deputado do PP, com a Medalha Tiradentes, a mais alta honraria da Assembleia Legislativa do Rio, arquivo vivo no caso da morte da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Depois de permanecer escondido com a ajuda de políticos e outros criminosos, está morto. Sua esposa, sumiu. Sua mãe, que foi assessora do mesmo Flávio, desapareceu. Fabrício Queiróz, amigo de 30 anos de Jair Bolsonaro, operador financeiro do grupo chefiado por Flávio, foi preso há pouco, na casa do advogado da famiglia. A amizade com Adriano “se formou dentro da Polícia Militar do Rio. Em 2003, os dois amigos participaram de uma ação da PM na Cidade de Deus que resultou na morte de um técnico de refrigeração. Há 17 anos, esse caso se arrasta entre a polícia e o Ministério Público, à espera de uma conclusão”. A ajuda de políticos poderosos tem preservado Queiróz de não ser punido. Sua esposa, Márcia, é fugitiva procurada. Não sei se o Santo Tony Montana, mesmo que com armas em punho, poderá ajudá-lo nessa etapa em que os soldados devem sumir ou se calar para o bem da segurança do Chefe e subchefes.
*As informações factuais deste texto foram amealhadas através do Wikipédia, órgãos de Imprensa como G1, Revista Época, El País, noticiosos de rádio, TV, YouTube e por observações e vivências pessoais.
Carapuça

Há um ano, em maio de 2019, e no ano anterior, 2018, quando surgiram os primeiros sintomas da doença que enfim tomou conta do País, antes da pandemia de Covid-19 — que foi apenas mais “azar” a se somar ao outro — relatei um episódio ocorrido na emblemática Avenida Paulista. Para quem quisesse ou pudesse ver, estava a se demonstrar qual seria o rumo que tomaríamos desde então quanto ao quadro que se apresenta hoje.
“Avenida Paulista, 26 de Maio de 2019, São Paulo. Não consigo ter outra leitura em relação à hostilidade sofrida pela mulher que vestia uma camiseta com o nome de Marielle Franco no peito: seu covarde assassinato parece ter muitos mais apoiadores do que pudéssemos imaginar.
Antes que alguém venha me chamar de ‘esquerdopata’, saibam que sou um crítico contumaz quanto aos rumos tomados pelos governos executivo, legislativo e, eventualmente, judiciário no Brasil dos últimos 20 anos, de todos os matizes ideológicos, o que tem causado algumas discussões em casa com as únicas pessoas para quem tenho mostrado os meus posicionamentos —minha família.
No entanto, o que aconteceu há pouco mais de um ano foi um complô horrendo para eliminar uma corajosa voz discordante ao sistema dominado por poderosos claramente ligados ao crime organizado. A possibilidade de haver canais de comunicação do atentado com o atual governo central parece ter melindrado um grupo específico em meio à multidão que prestava apoio a ele, a ponto da senhora ter precisado de proteção policial para não ser ferida, o que me dá a impressão de que esse pessoal tenha vestido a carapuça…
Mais um acontecimento no mínimo impróprio dentre tantos outros de várias gradações — de hilários a tristes — que preencheram os primeiros cinco meses do ‘novo’ governo brasileiro.”
BEDA / Scenarium / 8 Ou 80, Revisitado

Há fatos que se sucedem em avalanche uns sobre os outros de tal maneira que mal conseguimos respirar, se a opção for a de nos mantermos atentos aos tempos que correm. Porém, o mais comum, é que esqueçamos o que se passou há uma semana, há um mês, há um ano antes. Como no caso sobre o qual escrevi em 2019, neste mesmo mês de Abril – o mais terrível dos meses – segundo o poeta T.S. Eliot. Olhando em perspectiva, podemos perceber elos que se encadeiam a explicitar o momento político-social que vivemos. A chegada da Covid-19 apenas pôs a mostra a chaga aberta no Estado brasileiro. Muitos não enxergam. Precisamos, mais uma vez, descobrir o Brasil.
Somos o País do tudo ou nada. Ou quase nada de tudo, se esse “tudo” for o melhor possível. Por outro lado, apresentamos o pior de tudo, muitas vezes.
Se podemos escolher nossos dirigentes, votamos nos mais inaptos. Se temos uma empresa entre as maiores do mundo, será uma que arranca sua riqueza da forma mais mortal e predatória. Se temos um dos maiores movimentos de emancipação GLBTQIA+ do planeta, ao mesmo tempo somos os que mais matamos os seus participantes. Se temos uma das maiores populações afrodescendentes fora da África, apresentamos as mais persistentes ações discriminatórias da Terra perpetradas por uma sociedade hipócrita ao se proclamar igualitária.
Se for para matar um homem preto, que despejemos oitenta tiros sobre ele. Oito, não bastam – a média de projéteis lançados por cada um dos dez atiradores que confundiram o alvo-negro-no-carro-branco com um suposto assaltante. Condenado por engano – se for para nos enganarmos que seja por muito – por um juízo de valor eivado de preconceitos, incompetência e poder de fogo, um pai de família foi fuzilado em plena luz do dia, diante de testemunhas, por armas que atiram projéteis 7.62 à velocidade de oitocentos metros por segundo, a uma curta distância. Fico a imaginar se houve tempo de Evaldo pensar na segurança de uma amiga e da família que também ocupavam o carro – sogro, filho e esposa – antes de ser assassinado…
Quando tudo aconteceu, há um ano, uma segunda-feira, havia trabalhado o dia todo em ambiente fechado. Soube no dia seguinte, depois de ter dormido quatro horas desde a sexta anterior. Acordei com a repercussão da notícia propagada pelo rádio despertador de cabeceira. Como muitas vezes acontece, pareceu que estava sonhando. Não era possível, mesmo para o “País do 8 Ou 80” que aquilo fosse real. A “notícia boa”, diante de tamanha gravidade foi que dos cinco alvos do alvo veículo que carregava seus ocupantes a um chá de bebê, apenas o músico foi atingido. Isso significa que a munição descarregada sobre ele não foi a esmo, mas dirigida. Os ferimentos no sogro, um efeito colateral. Luciano, um catador de papel que tentou alertar os atiradores sobre a família, também alvejado, morreu dias depois.
Em uma sociedade organizada, as funções de cada instituição são delimitadas de maneira que uma não invada a outra. Membros das Forças Armadas não deveriam exercer a função de Polícia. “O Exército tem como missão preservar e garantir a defesa da Pátria, zelar pelo cumprimento pleno da Constituição e pela manutenção da Lei e da Ordem. Em tempos de Paz, uma das principais funções do Exército é defender as fronteiras brasileiras, garantindo a Soberania nacional.” Foi o caso daquela segunda-feira?
Houve ordem de prisão contra os elementos envolvidos na ação. Só não ficou esclarecido quem teria sido o mandante do crime. Um soldado cumpre ordens. Faz parte do espírito da corporação militar obedecer a cadeia de comando, assim como existe uma natural sequência na cadeia alimentar. Vitórias e derrotas se sucedem dessa maneira. Assim como a sobrevivência das espécies. O triste é que os brasileiros parecem sobreviver caminhando sobre os corpos ensanguentados dos mais vulneráveis…
Um mês depois, os meios de comunicação anunciaram: “O Ministério Público Militar denunciou doze militares que dispararam contra o carro de uma família que se locomovia para um chá de um bebê, causando a morte do músico Evaldo Rosa e do catador de material reciclado Luciano Macedo, ferido enquanto tentava ajudar a família em Guadalupe, no Rio de Janeiro. Os militares foram denunciados pelo homicídio dos dois e pela tentativa de homicídio do sogro de Evaldo, Sérgio Gonçalves de Araújo, ferido na mesma operação. Também estavam no veículo a esposa, o filho e uma amiga do músico, que não foram atingidos.”
Em maio, o STM decidiu liberar os atiradores.
Passado um ano, após as sucessivas tragédias que vivemos, incluindo a que estamos vivenciando atualmente, Evaldo e Luciano foram poupados de verem crescer os efeitos da infestação dos vírus que tomaram conta do corpo brasileiro…


