BEDA / Das Dores E Ratinho

Das Dores, conhecida como Jaqueline, carregava imensos olhos verdes, quais duas bandeiras nacionais desfraldadas em desfile no Dia da Independência. Em torno deles, o seu rosto, ainda interessante, encimava um corpo ainda atraente de formas brasileiras o suficiente para entusiasmar os mais ufanistas. Essa forma física lhe proporcionava condições suficientes para sobreviver em sua profissão, ainda que não fizesse o sucesso de vinte anos antes.

Ratinho era um velho músico aposentado, mas que ainda tocava esporadicamente nas noites paulistanas o seu trompete americano, comprado nos bons tempos em que saía de salões de baile para programas de televisão ou estúdios de gravação, quase sem intervalo, há quarenta ou cinquenta anos antes.

Por caminhos marcados pela mesma pouca iluminada noite madura, encontraram-se num bar de esquina do Bexiga. A voz profunda e de acentuação nordestina chamou a atenção de Das Dores por lembrar a de seu pai, homem rigoroso que a expulsou de casa quando, adolescente, se deitou com um dono de posto de gasolina de sua cidade, no interior do Ceará. Fascinada pela possibilidade de ascender no conceito de suas amigas, bonita e despachada, chamou a atenção de Seu Romarinho, o sujeito mais rico que conhecia. Desgraçou a vida dele e possibilitou que a sua ganhasse rumo em direção a São Paulo.

Ratinho, que tinha esse apelido por ser branquinho como um filhote recém-nascido do roedor, depois de uma apresentação em um baile de dança de salão, decidiu esperar o horário do seu ônibus madrugador a tomar um conhaque batizado. Falava pouco, sorria muito e seu tamanho compacto lhe conferia um toque de presença quase alienígena. A sua pele descamava e poderia até parecer repugnante se não fosse a sua evidente simpatia. Estranhou quando aquela mulher bonita se aproximou e puxou conversa.

Com os seus cabelos espetados agora tão brancos que pareciam brilhar no escuro, Ratinho estava acostumado a ser rechaçado até mesmo por prostitutas que procurava. Não queria àquelas que fariam qualquer coisa para obter o dinheiro da droga que as mantinham funcionais. Naquela idade, mais do que qualquer outra coisa, ele apenas queria conversar. Era absolutamente sozinho. Nunca se casou. Os seus parentes mais próximos moravam longe. Bastante resignado com a sua condição de terceiro trompete, sentava tão perto da beira do palco que certo dia caiu e desapareceu sob a estrutura. Desmaiado, só deram por sua ausência no intervalo entre uma seleção e outra.

Das Dores pareceu genuinamente interessada em conhecê-lo. No decorrer da conversa, se surpreendeu com a candura daquele senhor desajeitado e de gestos parcimoniosos. Principalmente, o incentivava a falar o máximo que pudesse. O som daquela voz a fazia retroceder anos dentro de sua alma. Era como um acalanto vindo de longe. Percebeu que sentia mais saudade de seu pai do que gostaria de admitir. Ele nunca a perdoou e o dinheiro que lhe enviou ao longo do tempo nunca foi aceito pelo Senhor José. Ao amanhecer, se despediram e marcaram um encontro para breve. Ratinho precisava voltar para a casa. Estava cansado e sabia que Arturo, seu gato, o esperava ansioso pelo leitinho da manhã. Jaqueline precisava ainda faturar algum para Das Dores comer algo e ainda levar um presentinho para a filha da vizinha que aniversariava.

Depois daquela primeira vez, Das Dores e Ratinho se tornaram grandes amigos. A madrugada sempre terminava num dos quartos dos hotéis do Centrão. Quase ninguém compreendia aquele relacionamento, mas que deu a Ratinho uma receptividade mais calorosa por parte de seus pares da noite. Durante os encontros, Das Dores pedia a Ratinho que contasse as suas histórias, ainda que repetidas. Em determinada ocasião, ela percebeu que encontrava muito prazer em se masturbar ao ouvi-lo, enquanto ele adorava tocar as suas fartas mamas e estapear a sua bunda rotunda. Era só o que o seu coração fraquejado lhe permitia fazer.

Um dia, Ratinho decidiu morrer. Já não conseguia alcançar as notas exigidas pelas partituras. Sabia que logo não seria mais chamado para trabalhar e isso o martirizava. Nem tanto por causa do dinheiro, mas pela companhia que desfrutava de velhos amigos dos tempos áureos da música no Rádio e na TV. Além disso, um a um dos seus companheiros estavam partindo ou não conseguiam mais tocar. Programou um encontro com Jaqueline, a sua Das Dores, e lhe avisou que aquele dia seria especial, a comemoração de uma data importante – a sua primeira apresentação na TV Rádio Clube de Pernambuco, em 1966.

Ratinho pediu para que Das Dores vestisse seu vestido mais bonito, a levou para comer em uma boa cantina e, de táxi, a conduziu para um motel de classe. Ao final de três horas, pediu para penetrá-la. Surpresa por vê-lo ereto, amorosamente abriu-se e o recebeu. Um minuto e dois suspiros depois, seu coração parou de bater no peito de sua amiga e gozou de seu descanso merecido.

Foto por Kendall Hoopes em Pexels.com

Participação: Lunna Guedes Mariana Gouveia / Claudia Leonardi Roseli Pedroso / Bob F.

BEDA / Descascando Cebola

Desde que acordei hoje, um tanto tarde, apesar da noite bem dormida, levantei meio melancólico. Estava feliz pelo trabalho no dia anterior que, apesar do frio de 11º C, chuva fina constante e correria, foi a contento. Abri a janela e o ar frio persistia em marcar a sua presença desproporcional, ainda que estejamos no inverno. Desci para tomar café — o dia não começa sem que o café me aqueça —, fui ao jardim conversar com as plantas, o que sempre me faz bem. Elas se deixaram fotografar.

Como já era tarde, fui preparar o almoço. Aproveitei que estava descascando cebola e misturei as lágrimas provocadas pelos compostos sulfurados, que se transformam em gases e irritam os olhos, com algumas verdadeiras. Aconteceu sem mais nem menos. Ou, antes, pela constante falta que sinto de algo indefinível. Ou até que escondo de mim mesmo dar a conhecer. Foram lágrimas que não precisava justificar, enquanto limpava a minha mente de coisas pesadas que repercutem em redes sociais, sem que queiramos ver, mas acabam rebatidas em imagens externas que invadem a nossa existência.

Preferi fazer uma postagem para deixar registrada a simplicidade de um dia de descanso com as minhas próprias imagens. Sempre com a participação de meus companheiros. Não é um descanso comum. O meu tempo não é tão livre, já que com textos a entregar, tenho que produzir. Mesmo que sofra para que uma escrita seja forjada, porque escrever mobiliza recursos pessoais que nos incomoda. Ao fim, pode se tornar uma “prisão prazerosa” para quem quer se entender livre.

Texto participante de BEDA: Blog Every Day August

Denise Gals Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Bob F / Suzana Martins Cláudia Leonardi

O Descanso*

A Penélope descansou. Seu enorme coração parou de bater nesta madrugada. Fiquei ao seu lado até o ultimo suspiro. Sua respiração foi ficando cada vez mais ofegante, até diminuir e cessar. Seus olhos, os mesmos que estavam embaçados pela idade, porém que ainda assim buscavam divisar qualquer sinal de petiscos em nossas mãos, se fecharam para sempre. Durante o tempo todo, segurei a sua cabeça e a acarinhei. Enquanto isso, lembrava que chamegos na cabeça e nas costas eram as únicas coisas que gostava mais do que comida. Esses afagos era como se lhe alimentassem a alma. Ela gostosamente se espichava toda e dava o “sorriso” que lhe caracterizava.

A sorridente “Penelopão” chegou ainda nova em nossa casa, mas já grande o suficiente para ocupar um espaço importante na vida da Família Ortega. Ela acompanhou o desenvolvimento das três adolescentes – RomyIngrid e Lívia – até as moças ficarem cada vez mais ausentes, ocupadas com os seus afazeres adultos. Os dois últimos anos foram os mais difíceis e houve episódios em que pensávamos que ela nos deixaria a qualquer instante. Diagnosticado o câncer, tomamos medidas para que fosse mantida em casa, com assistência e cuidados constantes para minimizar o desconforto e as dores, com a orientação da Tânia.

Nesse período, as patas não conseguiam mais sustentar seu pesado corpo com eficiência, mas ainda encontrava forças em algum lugar para se erguer e ir de encontro às pessoas que chegavam, as quais recebia – qualquer uma – com a cauda a dar lhes darem boas-vindas. Ultimamente, reclamava quando ficava sozinha na sala, cozinha ou quintal. “Para, Penélope! Estamos aqui!” – Depois de reclamarmos da “véia”, lá íamos ajudar a insistente a se levantar e caminhar até onde estávamos. Tomávamos precaução para não apertar seu corpo em algumas partes mais doloridas.

Esse ser, todo amor, deixará como legado a paciência com a qual recebia aos novos moradores caninos, que logo se afeiçoavam àquela labradora que protegia as novatas das outras companheiras de quintal. Mãezona, era também menina, sempre disposta a brincar e a passear. Adorava banana, maçã, abacaxi, cenoura… bem gostava de quase tudo. Não dispensava um pedaço de pão, que só introduzimos na dieta para dar o remédio que precisava. Na verdade, ela tinha fome de viver.

Sentiremos falta de seus chamados-latidos. O silêncio de sua ausência será, por um bom tempo, ensurdecedor. Sua marca, em nossas vidas, eterna… 

*Texto de três anos antes. A constatação é que talvez não haja dia que não a citemos ou que não lembremos de sua presença.