No fulgor do instante em que os mundos se separam e entramos em outra dimensão…
No momento do prazer flamejante, de corpos que se fundem e afundam no mar cósmico do gozo em ação… Na aceitação de que somos ingentes, a deitarmos entre estrelas que dançam, exclamas: “Pareces um deus!”…
Então, me sinto São entre os sãos… Espalmo minhas mãos contra a sola de teus pés –– beijo a flor de lótus e entoo preces…
Te sinto uma deusa… Não! Mais do que isso… Te sinto maior que tudo… Te sinto Mulher!
*Há dois anos, em 2023, Rita Lee, se encantou definitivamente. Deve estar lá, entre os seus amigos extraterrestres, brincando com as estrelas que brilham tanto quanto ela no firmamento da eternidade da qual somos feitos… Por ocasião de sua passagem para outro estado de ser, escrevi:
RITA LEE, como é que você se sente em se tornar imortal? Como é ser um ser total? Não bastava ser a mais completa tradução de Sampa? Ser a mulher que traduziu como ninguém uma mulher, em “Cor-De-Rosa-Choque“? Não bastava reverenciar a vida de modo libertário, como em “Lança Perfume“? Não bastava cantar o inconformismo e a inadequação de todos os adolescentes e muitos adultos –– homens, mulheres, mais que mulheres, mais que homens –– em “Ovelha Negra“? E muito além, para quem não se adequa ao mundo? Homenagear o amor em “Mania de Você” e em tantas outras composições? De ser mutante, iconoclasta, vibrante, permitiu-se deprimir quando acontecia, expor as suas vísceras e surgir renascida. Maior personagem de si mesma, entre tantas identidades que assumiu. Não bastava ser maior que a Vida, você tinha que ser imortal, a partir do momento que nos deixa fisicamente. Rainha, padroeira da liberdade, entre outras rainhas, uma mulher, principalmente. Nosso amor imortal, vá reinar em outra dimensão!
Em princípio, o egoísmo é a base sobre a qual se sustenta o que poderíamos chamar de mal, porque não contempla o outro, causa sofrimento e provoca o isolamento…
No entanto, se um ser vivesse sozinho no planeta, sendo o seu único habitante, até poderia se sentir pleno, total. Ao não conhecer um outro igual, não teria conflitos nascidos da convivência com alguém que lutasse pelos mesmos recursos para satisfazer as suas necessidades. Por isso, Sartre chegou a dizer que o inferno são os outros… Justamente porque os culpamos por nossas deficiências.
O diabo é que a partir do momento que houvesse pelo menos dois indivíduos ocupando o mesmo espaço, cria-se uma dependência. Caso essas duas pessoas se apartassem, veríamos surgir a solidão… e a solidão dói como se tivéssemos a nossa carne rasgada com uma faca cega… Os antigos devem percebido essa dimensão ao assegurarem que um ser teria surgido do corte de parte de um outro.
Proponho, porém, que a história seja contada de outra forma — o homem teria surgido de parte da mulher — não ao contrário, porque o completo não nasce do incompleto…
*Texto constante de REALIdade, lançado em 2017 pela Scenarium.
Ledo engano imaginar que ledor leia apenas a dor. Ledor lê o desengano, a alegria, a raiva, a tristeza, o amargor, a lida e o suor. Lê o amor e seu contrário — o vazio. O ledor lê o crime, a bondade, o cenário, a incapacidade de estar, a vontade de ficar ou viajar. Lê a engenhosidade do escritor, sendo que a maior é não identificar, quando o lê, o engenho da criação. Quando sente cabalmente o seu efeito sobre si e se identifica com o que lê. Ao mesmo tempo, o escritor escreve também para si e fica contente quando percebe que se encanta com o seu próprio canto e o toma como se não fosse seu. Sente-se bem e angustiado. O escritor se pergunta — conseguirei voltar a criar uma obra, um texto, um parágrafo, uma linha que me abandone e se torne autônoma de mim?
Apôs começar o ano como programei — lendo uns quinze títulos em dois meses — voltei à secura dos olhos. Não que não tenha lido muito. Seria insuportável para mim. Mas pegar um livro entre as mãos e seguir às páginas com gosto e periodicidade, deixou de ser uma prioridade, enquanto retomava a rotina inóspita do saariano tempo pandêmico. Escrever, escritor que me nomeio, igualmente se tornou penoso, porque criava mesmices e sensaborias. Aliás, criar já é algo pretencioso demais. Os escritores, os melhores de nós, creio alcançarem apenas jogar luz sobre os recônditos cantos de paredes da casa onde habitamos. O que já é um grande talento. Artistas fora de padrão conseguem transfigurar de forma aguda uma realidade que, de paralela, se impõe como existente.
Quando mais moço, lia frequentemente e não havia lugar que não fosse bom o suficiente para me entreter com os livros. Conseguia me apartar da conjuntura externa e me tornar invisível. Quando gostava do tema, mergulhava fundo nas palavras e me enxergava atuando com as personagens. Ainda que o livro não fosse tão interessante, a curiosidade era suficiente para me conduzir para longe de onde estava. O caminho que seguia pertencia a uma dimensão particular. Atualmente, tenho que buscar silêncio e condições mínimas de paz de espírito para que consiga ler. Gostaria imensamente de voltar a ser o mesmo de antes. E o relógio não para de tiquetaquear. O ledor está cada vez com menos tempo de vida terrena para degustar outras formas de vida pela leitura. Resta perguntar: na paz da morte teria como continuar a ler?
O meu amigo desde garoto, Beto, me convidou para o tradicional futebol de domingo de manhã. Eu joguei com ele e outros amigos durante anos seguidos, mas há uns treze que já não frequento os campos de society com a turma. Normalmente, quase na mesma hora que teria que ir jogar, estou a voltar dos eventos nos quais trabalho. Quando mais jovem, até aguentava o tranco, quando não havia outro evento no mesmo dia. Com o aumento da demanda e com o acréscimo dos anos às costas, ficou cada vez mais difícil conciliar trabalho e prazer, ambos cansativos fisicamente. E o que os diferenciava? No trabalho, se deslocar, descarregar, montar, ajustar som e iluminação, fazer a passagem do som e encontrar colegas talentosos no canto, na dança ou narração. O que não deixava de ser prazeroso, porém se revestia, como principal característica, do dever a ser cumprido da melhor forma possível. Naquela época, não conseguia relaxar tanto quanto hoje, em que consigo me divertir até com a função de subir os equipamentos até segundos ou terceiros andares dos salões, muitas vezes sem elevador.
No futebol, o corpo sofria o estresse por correr, se alongar, se contrair, se atirar para executar um movimento mais amplo, saltar mais alto para alcançar a coisa mais desejada da vida naquele momento – a bola. Durante o tempo de jogo, nada acontecia fora das quatro linhas. Não que se esquecesse de todos os problemas do mundo. Simplesmente, não havia mundo fora dali. No futebol, as regras externas se diluíam, não havia diferenciação social ou qualidade física que não fossem superados pelo talento no jogo. O office-boy, o estoquista, o microempresário ou o dono de posto de gasolina, em boa forma física ou acima do peso visavam conseguir, juntos, trocar passes, se movimentar, defender a sua meta e marcas gols no adversário. Todos desejavam, juntos, congregar e chegar à vitória. Caso contrário… Bem, perder também faz parte do pacote. Quantas vezes não se valorizaram mais a derrota bem jogada contra um timaço do que a vitória “mamão-com-açúcar” contra um time “meia-boca”?
A linguagem usada no campo de futebol também se tornava alternativa e restrita. O vocabulário se restringia a dez ou doze palavras e poucas expressões, sempre acompanhadas das indefectíveis (me perdoem) “porra” e “caralho”. Essas palavras tanto podiam ser usadas como substantivo ou adjetivo, além de servirem eventualmente como pronome. Sempre houve muita discussão e entreveros entre nós e os adversários e entre nós mesmos, que se encerravam depois que saíamos do campo e íamos para o bar comer porcarias e beber umas (várias) cervejas. Bem, eu nunca bebi álcool, mas participava do grupo com as minhas opiniões “papo-cabeça” acompanhadas de uma legítima Coca-Cola na garrafa de vidro (a melhor!).
De vez em quando, as mulheres e namoradas acompanhavam alguns jogadores, mas, na maioria das vezes ficavam à margem do grande evento, a tratar de assuntos que não tinham nada a haver com o que acontecia dentro do campo. O sacrifício que deviam fazer em acompanhar os seus parceiros devia ser comparável ao do deles em acompanha-las às compras. Hoje, teríamos um churrasco depois do jogo. Eu não poderia ficar porque tinha coisas a fazer, mas não sei se ocorreu realmente o congraçamento, já que o sujeito que trouxe a carne e os acompanhamentos, brigou com o pessoal por não ter sido colocado no time e parece que foi embora antes do final da partida. Infelizmente, no intercâmbio de dimensões, um mundo acabou por invadir o outro…