Outra Dimensão*

O meu amigo desde garoto, Beto, me convidou para o tradicional futebol de domingo de manhã. Eu joguei com ele e outros amigos durante anos seguidos, mas há uns treze que já não frequento os campos de society com a turma. Normalmente, quase na mesma hora que teria que ir jogar, estou a voltar dos eventos nos quais trabalho. Quando mais jovem, até aguentava o tranco, quando não havia outro evento no mesmo dia. Com o aumento da demanda e com o acréscimo dos anos às costas, ficou cada vez mais difícil conciliar trabalho e prazer, ambos cansativos fisicamente. E o que os diferenciava? No trabalho, se deslocar, descarregar, montar, ajustar som e iluminação, fazer a passagem do som e encontrar colegas talentosos no canto, na dança ou narração. O que não deixava de ser prazeroso, porém se revestia, como principal característica, do dever a ser cumprido da melhor forma possível. Naquela época, não conseguia relaxar tanto quanto hoje, em que consigo me divertir até com a função de subir os equipamentos até segundos ou terceiros andares dos salões, muitas vezes sem elevador.

No futebol, o corpo sofria o estresse por correr, se alongar, se contrair, se atirar para executar um movimento mais amplo, saltar mais alto para alcançar a coisa mais desejada da vida naquele momento – a bola. Durante o tempo de jogo, nada acontecia fora das quatro linhas. Não que se esquecesse de todos os problemas do mundo. Simplesmente, não havia mundo fora dali. No futebol, as regras externas se diluíam, não havia diferenciação social ou qualidade física que não fossem superados pelo talento no jogo. O office-boy, o estoquista, o microempresário ou o dono de posto de gasolina, em boa forma física ou acima do peso visavam conseguir, juntos, trocar passes, se movimentar, defender a sua meta e marcas gols no adversário. Todos desejavam, juntos, congregar e chegar à vitória. Caso contrário… Bem, perder também faz parte do pacote. Quantas vezes não se valorizaram mais a derrota bem jogada contra um timaço do que a vitória “mamão-com-açúcar” contra um time “meia-boca”?

A linguagem usada no campo de futebol também se tornava alternativa e restrita. O vocabulário se restringia a dez ou doze palavras e poucas expressões, sempre acompanhadas das indefectíveis (me perdoem) “porra” e “caralho”. Essas palavras tanto podiam ser usadas como substantivo ou adjetivo, além de servirem eventualmente como pronome. Sempre houve muita discussão e entreveros entre nós e os adversários e entre nós mesmos, que se encerravam depois que saíamos do campo e íamos para o bar comer porcarias e beber umas (várias) cervejas. Bem, eu nunca bebi álcool, mas participava do grupo com as minhas opiniões “papo-cabeça” acompanhadas de uma legítima Coca-Cola na garrafa de vidro (a melhor!).

De vez em quando, as mulheres e namoradas acompanhavam alguns jogadores, mas, na maioria das vezes ficavam à margem do grande evento, a tratar de assuntos que não tinham nada a haver com o que acontecia dentro do campo. O sacrifício que deviam fazer em acompanhar os seus parceiros devia ser comparável ao do deles em acompanha-las às compras. Hoje, teríamos um churrasco depois do jogo. Eu não poderia ficar porque tinha coisas a fazer, mas não sei se ocorreu realmente o congraçamento, já que o sujeito que trouxe a carne e os acompanhamentos, brigou com o pessoal por não ter sido colocado no time e parece que foi embora antes do final da partida. Infelizmente, no intercâmbio de dimensões, um mundo acabou por invadir o outro…

*Texto de 2013

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