Os Solitários

Fred & eu, em 2019…

Há exatos dois anos antes, escrevi:

“Hoje, volto para São Paulo e me despeço deste meninão, Fred. Jovem, três ou quatro anos, já passou poucas e boas – atropelamento, tentativa de homicídio – mas segue em frente, com sua voracidade de viver. Saía à noite com ele para andar junto ao mar e para explorar as redondezas. Farejava cada recanto e marcava a sua passagem com seu cheiro (não sei de onde retira tanta urina). Não gosta de outros cães e muito menos de carros e motoqueiros, demonstrando seu ressentimento contra essas máquinas – lembranças de seu sofrimento. Porém, gosta de gente que encontra à pé, portanto, desarmada. Foge de casa sempre que pode, mas volta tempos depois de dar as suas voltas, às vezes machucado por brigas com outros cães. É um ser contraditório como todos nós, humanos. Como dois solitários que estávamos ou somos, passamos a nos compreender. Até a volta, meu amigo!”.

Atualmente, Fred é meu vizinho em São Paulo. Mora na casa ao lado, com a minha irmã, Marisol. Tanto ele, quanto Marley, que se juntou a ele no ano seguinte, foram trazidos-resgatados da casa que estavam – nossa própria casa – ocupada por invasores. A propriedade da Praia Grande contém duas casas. Nós ficávamos na casa de trás. A da frente estava sendo ocupada por um pessoal que não admitia sair depois que solicitamos a sua devolução. Deixaram um sujeito dormindo no local para demonstrar que alguém do grupo residia ali. Como o caso foi parar na Justiça, não a deixariam até que fosse assim decretado.

Eu voltava sempre que podia, uma tradição pessoal que se repetia nos três primeiros meses do ano, desde a minha adolescência. Minha mãe, a deixou equipada da maneira que sempre quis para receber a família no verão. Ver aquele espaço profanado com desdém pelos invasores era não apenas difícil, mas bastante ofensivo. Porém, com a Pandemia e as resolução que impedia o despejo de imóveis nesse período, tínhamos que esperar que tudo passasse.

Em meados de Março de 2020, quando cumpria mais uma suposta pequena temporada na Praia Grande, desta vez durante a vacância causada pelo que supúnhamos ser um momentâneo intervalo no cronograma de nos nossos eventos pela Ortega Luz & Som, foi decretado o controle de idas e vindas de pessoas e veículos entre as cidades. Acabei ficando mais tempo do esperava, o que acabou sendo bom para o Fred e o Marley. Voltei em outras oportunidades nas quais aproveitei para andar bastante de bicicleta, fazer caminhadas, escrever e cuidar dos dois. Nesses períodos, eu alimentava os “meninos” e eles dormiam comigo dentro de casa. Eram momentos de escape da rotina interminável de serviços caseiros entre acordar e dormir. Mas o entrechoque com os invasores foi aumentando e ir para a PG foi se tornando mais motivo de estresse do que relaxamento.

Para tentar controlar a situação para quando meus irmãos e eu não estávamos, foram instaladas câmeras que registravam a frequente ausência do sujeito. Apenas graças à benevolência de vizinhos, que colocavam comida através de aberturas no portão, os “meninos” foram alimentados. Instalamos bebedouro e comedouro para que não ficassem sem água e alimento. Mas uma gravação mostrava o sujeito retirar comida do comedouro para levar para o cachorro da casa onde estavam as outras pessoas do grupo. Para piorar, outra gravação mostrava o sujeito os espancando com fio elétrico. Antes mesmo que nos fosse devolvida a casa, em certa oportunidade, aproveitando a ausência do sujeito, retiramos o Fred e o Marley do local. Nossa suposição é que eles eram usados como uma espécie de prova de ocupação.

Apenas ao final do primeiro trimestre de 2021, a situação foi resolvida. A justiça nos restituiu o imóvel. Voltamos a nos assenhorar de uma casa depredada, com muitas reformas a serem realizadas. Mas o melhor foi ver renovado o sentimento de “volta para casa” da mãe.

Marley e Fred, em meados de 2020.

Outra Dimensão*

O meu amigo desde garoto, Beto, me convidou para o tradicional futebol de domingo de manhã. Eu joguei com ele e outros amigos durante anos seguidos, mas há uns treze que já não frequento os campos de society com a turma. Normalmente, quase na mesma hora que teria que ir jogar, estou a voltar dos eventos nos quais trabalho. Quando mais jovem, até aguentava o tranco, quando não havia outro evento no mesmo dia. Com o aumento da demanda e com o acréscimo dos anos às costas, ficou cada vez mais difícil conciliar trabalho e prazer, ambos cansativos fisicamente. E o que os diferenciava? No trabalho, se deslocar, descarregar, montar, ajustar som e iluminação, fazer a passagem do som e encontrar colegas talentosos no canto, na dança ou narração. O que não deixava de ser prazeroso, porém se revestia, como principal característica, do dever a ser cumprido da melhor forma possível. Naquela época, não conseguia relaxar tanto quanto hoje, em que consigo me divertir até com a função de subir os equipamentos até segundos ou terceiros andares dos salões, muitas vezes sem elevador.

No futebol, o corpo sofria o estresse por correr, se alongar, se contrair, se atirar para executar um movimento mais amplo, saltar mais alto para alcançar a coisa mais desejada da vida naquele momento – a bola. Durante o tempo de jogo, nada acontecia fora das quatro linhas. Não que se esquecesse de todos os problemas do mundo. Simplesmente, não havia mundo fora dali. No futebol, as regras externas se diluíam, não havia diferenciação social ou qualidade física que não fossem superados pelo talento no jogo. O office-boy, o estoquista, o microempresário ou o dono de posto de gasolina, em boa forma física ou acima do peso visavam conseguir, juntos, trocar passes, se movimentar, defender a sua meta e marcas gols no adversário. Todos desejavam, juntos, congregar e chegar à vitória. Caso contrário… Bem, perder também faz parte do pacote. Quantas vezes não se valorizaram mais a derrota bem jogada contra um timaço do que a vitória “mamão-com-açúcar” contra um time “meia-boca”?

A linguagem usada no campo de futebol também se tornava alternativa e restrita. O vocabulário se restringia a dez ou doze palavras e poucas expressões, sempre acompanhadas das indefectíveis (me perdoem) “porra” e “caralho”. Essas palavras tanto podiam ser usadas como substantivo ou adjetivo, além de servirem eventualmente como pronome. Sempre houve muita discussão e entreveros entre nós e os adversários e entre nós mesmos, que se encerravam depois que saíamos do campo e íamos para o bar comer porcarias e beber umas (várias) cervejas. Bem, eu nunca bebi álcool, mas participava do grupo com as minhas opiniões “papo-cabeça” acompanhadas de uma legítima Coca-Cola na garrafa de vidro (a melhor!).

De vez em quando, as mulheres e namoradas acompanhavam alguns jogadores, mas, na maioria das vezes ficavam à margem do grande evento, a tratar de assuntos que não tinham nada a haver com o que acontecia dentro do campo. O sacrifício que deviam fazer em acompanhar os seus parceiros devia ser comparável ao do deles em acompanha-las às compras. Hoje, teríamos um churrasco depois do jogo. Eu não poderia ficar porque tinha coisas a fazer, mas não sei se ocorreu realmente o congraçamento, já que o sujeito que trouxe a carne e os acompanhamentos, brigou com o pessoal por não ter sido colocado no time e parece que foi embora antes do final da partida. Infelizmente, no intercâmbio de dimensões, um mundo acabou por invadir o outro…

*Texto de 2013