Censurado — Scenarium

Sempre que me deparo com um tema que diz respeito à convivência social, faço um exercício de viagem no tempo e tento regressar aos primeiros grupamentos humanos. Sei que é algo quase impossível. Mas eu tento fazer uso de minha sensibilidade e conhecimento para alcançá-los em nosso percurso de centenas de […]

Censurado — Scenarium

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Calendário Particular

Para além das efemérides coletivas, feriados que ensejam finais de semana prolongados — vivemos atualmente um bem longo — nossa vida acontece individualmente, envolvendo circunstâncias de grande importância particular, mas que para o mundo quase nada representa, a não ser que o anunciemos de alguma forma nas redes sociais ou outro meio. Isso poderá causar algum tipo de impacto para alguns poucos, muitos ou ninguém, o que apenas reafirma nossa particular pequenez. A não ser que, como eu, os considere como marcos da estrada que percorro. Se são de granito — como os antigos — ou feitos por pedaços de pão, eventualmente devorados pelos pássaros, só o tempo dirá… enquanto o tempo “existir”.

Janeiro II
“O Beijo Eterno” e a Igreja e Convento de São Francisco, adiante à esquerda

Janeiro. No dia desse registro, voltava de ônibus bem cedo vindo da Zona Sul. Cheguei ao Centrão para pegar outro ônibus para a Cachoeirinha. Caminhava em direção ao Convento Franciscano, intrinsecamente ligado a minha história. Era a primeira hora naturalmente iluminada do dia e a cidade despertava.  As pessoas começavam a circular ou nem tanto. Abaixo da marquise de entrada da tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco, deserdados dormiam a sono solto. Em frente a ela, passei pelo “O Beijo Eterno” ou “Idílio”, em homenagem ao poema homônimo e ao seu autor, o poeta Olavo Bilac, ídolo nacionalista dos estudantes da faculdade no início do século XX. Esculpida pelo sueco William Zadig, em 1920, sofreu uma campanha de ódio nos Anos 60, levada adiante por conservadores que a consideravam sem valor estético. Porém, outras questões ganhavam relevância: se tratava de um beijo inter-racial — entre uma índia e um branco — inteiramente nus. A mesma indignação patrocinada por “novos” conservadores, quase 60 anos depois, pela aparição de um beijo gay numa revista em quadrinhos. Ah… as voltas que o mundo dá…

Fevereiro III
Participação de ETs no Carnaval de 2020

Fevereiro. Ocorrido no final do mês, o Carnaval, no qual trabalhei como prestador de serviços de som e luz, se desenrolou já com as notícias sobre o contágio da Covid-19 para além das fronteiras da China, chegando com força a alguns países da Europa, como Grã Bretanha, França, Espanha e Itália. A chamada pandemia aparentemente não foi levada a sério e alguns deles não tomaram as medidas restritivas preconizadas para conter o novo coronavírus. O número de mortos subia dia a dia, encontrando a União Européia na contra-mão. Enquanto isso, no continente americano de Estados Unidos e Brasil, a vida continuava sua rotina despreocupada, incrivelmente a negar que a doença pudesse atravessar o Atlântico ou o Pacífico. Em comum entre os dois países, governantes da mesma cepa virulenta do fascismo talvez se vissem a salvo por conta de algum tipo de messianismo ou apenas priorizavam a visão do lucro financeiro, não importando as vidas em jogo. Até o povão se sentia imune, dizendo se tratar de uma doença de rico. Começou realmente com quem podia viajar para o exterior, mas hoje a população mais pobre é a que sofre as maiores perdas. Ainda estou esperando a chegada dos ETs…

Março I
Sol, mar e máscara em Março

Março. Mês de mar e amor. Amor pelo sol e pelo mar. Amor por amar. O Brasil contava os seus primeiros mortos, iniciado com a primeira vítima no dia 17 e eu sabia que as minhas mini-férias poderiam se prolongar se as medidas mais rígidas começassem a ser implementadas. Contrário à orientação da presidência da República, os governadores decidiram tomar providências mais sérias. Estava na Praia Grande há pouco tempo e talvez tenha tido apenas uns cinco dias antes que fosse proibido pisar na areia e nadar no mar. O meu caso com as ondas e a salinidade é algo que me define. Sou água, apesar de meu signo ser do ar. Os eventos programados para o mês foram cancelados, por conta do fechamento de clubes, buffets e restaurantes, entre outros espaços de festas e confraternização. Foi implementado o uso de máscaras em público e o distanciamento social. Fiquei totalmente isolado por três semanas. Havia barreiras sanitárias que impediam a descida ou subida de ônibus de viagem e carros de fora. Não fosse a pandemia e seu teor infeccioso, eu estaria muito bem. A solidão era uma companheira antiga e íntima.

Abril II
Baile de máscaras

Abril. Mês que apresenta efemérides como a do dia 21, de Tiradentes — Joaquim José da Silva Xavier — eleito herói por ter pretendido a separação de Portugal, pagando com a própria morte. A do dia 22, do Descobrimento do Brasil por Pedro Álvares Cabral que, na verdade, denuncia a data da invasão de Pindorama pelos portugueses. Foi re-significada com a reunião ministerial que foi divulgada tempos depois — a descoberta do verdadeiro Brasil. Dia 10, foi Sexta-Feira Santa, um final de semana prolongado, muito ansiado pelos trabalhadores para escaparem às montanhas, às praias e aos campos, se o isolamento social não transformasse todos os dias em domingos em casa. Uma página de negócios chegou a fazer uma matéria que frisava: “Os feriados de 2020 podem representar uma ameaça ou oportunidade para o seu negócio — tudo depende da sua capacidade de planejamento. Este ano, especialmente, teremos nove feriados prolongados — quase o dobro de 2019″. Não coloco aqui a fonte para não desmerecê-la. A bem da verdade, a não ser os cientistas sanitaristas, poucos acreditavam no que viria a acontecer. Para mim, está claro — até hoje e desde então — nunca mais saímos do dia 1º de Abril.

Maio I
Pão, pão, beijo, beijo

Maio. Mês de ficar resolutamente em casa. E dá-lhe fazer pão, inventar receitas, experimentar novos pratos. Ou deixar de acordar ou dormir em horários fixos. Dias de alternar rotinas, conversar à distância com pessoas que sequer conversávamos presencialmente e, no meu caso, escrever muito. Ler os livros que não tinha tempo, apagar a lista de eventos dos meses que viriam. A não ser um, em agosto — uma moça que não abriu mão de casar — mesmo com todas as restrições que permearão as atividades no setor de eventos. Iniciei uma rotina de exercícios que alternavam ciclismo (apenas na Praia Grande, em horários alternativos) e circuitos de caminhada em casa, com passagens por escadas, além de uso de pesos feitos com vasilhames de alças, cheias de água. No mais, seguimos caminhando como se estivéssemos no escuro, tateando as paredes, tentando não darmos uma topada numa pedra ou batermos a cabeça numa quina. Pessoalmente, não sei se por clarividência ou puro pessimismo, não via a luz no fim do túnel.

Junho
Mês das reticências…

Junho. Mês da conformação, último do semestre. Mês de estabelecer definitivamente as regras do “novo normal” — locução que significa apena isso mesmo. Porque há pessoas que não se conformam. Brincam com as possibilidades expressas em porcentagens, transformadas no jogo do “talvez, sim, talvez, não”. Um outro nível de negação, jogado em fases de perigos maiores ou menores. Bares reabertos lotados, festas clandestinas saudadas como a última chance de ser feliz, roletas russas em que as armas são as próprias pessoas  — seres que respiram o mesmo ar, sem máscara. Mês da nuvem de gafanhotos, insetos que ameaçavam as nossas fronteiras em contraponto aos gafanhotos humanos que assolam o Brasil desde sempre. Mês das reticências… como as que aparecem na foto acima, surgidas inadvertidamente. Mês de quem viver, verá…

Alê Helga— Darlene ReginaLunna Guedes

Isabelle Brum — Mariana Gouveia

Normalidades

Normalidades 5
João Pedro, George e Miguel

Seria falta de empatia ̶ alienação ̶ pouco valor à vida?
Ou algo pior?
Seria esquizofrenia ̶ negação operacional ̶ realidade partida?
Ou algo pior ainda?
Aproveitar a pandemia ̶ virtual genocídio ̶ eugenia?
Eliminar os velhos pensionistas ̶ Seus Juquinhas, Donas Marias?
Mortandade como projeto de governo ̶ equalização de perdas econômicas?
Nosso País a viver o drama do fascismo redivivo ̶ teorias de raças hegemônicas ̶
tiros às dezenas a metralharem jovens pobres e pretos ̶ Joões Pedros ̶
invasão de casas em comunidades, como se fora guetos?
Antes, talvez fosse uma simples operação policial boçal,
mas não ̶ faz parte de um sistema antigo ̶ racismo estrutural.
O mesmo que fez por destino-desdém a branca mão ̶
empurrar o corpo do anjo Miguel do alto até o chão…
No Norte da América, Floyd chama pela mãe ̶ última palavra a dizer…
Sem poder respirar, o homem clama por ar ̶ último desejo antes de morrer…
Talvez se sentisse um rei branco aquele que pressiona, ajoelhado,
o pescoço do homem preto subjugado…
Branca mão no bolso, olhos frios, alheio aos pedidos do entorno, conta mentalmente
o tempo que resta da energia que se esvai do gigante.
Uma morte entre tantas mortes ̶ brutalidade exposta ̶ silenciosamente
a melhor parte de nossa humanidade é atacada na nossa frente.
Devemos erradicar as doenças ̶ aquelas que nos mata em conjunto.
Bem como aquelas que nos mata por dentro, dia-a-dia, miseravelmente.
Afastar de nossa convivência aquele que diz não ser coveiro,
mas negocia armas e meios para produzir defuntos.
Devemos nos precaver das enfermidades sistêmicas ̶ combater os males da alma.
Buscar o caminho correto, andar pela claridade do saber e do discernimento.
Sabemos que a morte ̶ fato da vida ̶ é causa perdida, inevitável…
Viver com medo e precariedade, por imobilismo governamental,
sem ter como nos defender do sofrimento por descaso ativo ̶ intencional ̶
é imperdoável.

O Novo Normal

De perto, ninguém é normal ˗˗
já disse Caetano ˗˗
não há engano.

Anunciam que normal, há um novo ˗˗
o mesmo novo de outras vezes ˗˗
em épocas de outros revezes.

Ciclos do mal ˗˗
de maus e bem maus ˗˗
ciclotimia macabra,
penúria que não se acaba.

Sina de brasileiro é esquecer ˗˗
revive a reviver ˗˗
elege e reelege malditos,
proclamados como benditos.

Da antiga norma, surgiu o anormal,
de mau passo ˗˗ o novo natural ˗˗
morram, saiam do claustro:
anunciação do falso astro.

“Salvem o PIB!
Reabram-se as empresas que me presam.
Labutem, carreguem os pesos.
Apesar dos pesares, suportem a lide.
O governo não é do povo, nem é altruísta ˗˗
proteger os desamparados ˗˗ coisa de “comunista”!

Danos colaterais em todas as guerras, há…
E daí?
Se perdermos pobres e velhos?
Seres inúteis, a viverem com dificuldades ˗˗
mulheres e homens marginalizados,
enfim igualizados ˗˗
pais, mães, filhos, avós, tios, tias, amigos…
Olha, que bom! ˗˗ genocídio legalizado ˗˗
sonho dos trinta mil mortos, realizado!”

Nos tornamos prisioneiros do negacionismo ˗˗
contra a ciência, vivemos de achismos,
malversação da ideologia
e horror à Democracia.
Fato tal e qual, eis o novo normal ˗˗
além do novo coronavírus ˗˗
nos infectou o adormecido mal…

A doença não se curará…
Poderemos controlá-la pelo discernimento,
se nos tratarmos pela cultura e pelo conhecimento.
Porém, mesmo depois de passarmos pela pandemia,
doentios políticos assintomáticos,
contaminados pela ignorância efetiva
e pelo fascismo nativo-ativo,
sempre haverá…