#Blogvember / Nosso Traço Falho

Detalhe do afresco A Criação de Adão, pintado por Michelangelo no teto da Capela Sistina entre os anos de 1508 e 1510, a pedido do Papa Júlio II.


Rozana Gastaldi Cominal, em “Mulheres que voam”, apregoa que “não dá para ser perfeito com defeito humano já vem a ser: traço falho”.

A condição humana natural não é exatamente sem defeitos. A velha frase que ecoou por séculos de que “o homem nasce bom, mas a Sociedade o corrompe” é, em si, incongruente ao desconsiderar que a Sociedade é justamente formada por… homens. Não conheço a fundo as teorias a respeito de seu formulador, o filósofo Jean-Jacques Rousseau, mas essa generalização “passa a mão na cabeça” dos seres humanos à priori, os inocentando de todas as possíveis falhas que venham a cometer contra outros da sua e de outras espécies – “criadas para lhes servirem”.

Para justificar essa característica de ser falho, criou-se o episódio da expulsão do Paraíso, porque Deus, em sua eterna glória, nunca cometeria o erro de nos dotar com tantos defeitos. Nesse caso, são os homens a absolvê-lo. Na visão humana, ao longo da História, os homens foram transformando seus deuses em pessoas com o dom da criação, da Eternidade e o poder de interferir na realidade, matar e destruir. Ao contrário do que versa a Bíblia, foi o Homem que O fez a sua semelhança.  

Para nos redimir, outra versão de nossa existência nos coloca como seres evolutivos que passamos por etapas de aprendizagem em vidas seguidas de mortes e renascimentos, até alcançarmos o estágio final em que seremos perfeitos. Artigo de , como todas as crenças, esse desejo que temos de nos eternizarmos, apesar das dores reincidentes, talvez para vivenciarmos prazeres fugidios é, no mínimo, comovente. Por outro lado, o fanatismo de todas as ordens gerados pelas diversas convicções é alimentado por chefes religiosos que ganham em poder ao jogar uns contra os outros na busca das diferenças.

Para o bem da convivência entre as gentes, a vontade de acreditar no imponderável deveria ser exaltada como identidade comum. Mas defeituosos que somos, não admitimos que as diferenças configurem um traço de igualdade. A onda de lideranças políticas que querem destruir a convivência democrática entre as pessoas de posturas desiguais ao que é proposto como norma, creio ser o pior defeito da personalidade humana carregada de falhas. Gera violência e sofrimento.

Para mim, o maior crime propiciado por essa “qualidade” destrutiva em sua gênese é o ataque à Natureza na tentativa de buscar lucro. Queremos controlar o meio ambiente como se fosse um inimigo a ser combatido, como se não devêssemos nos incluirmos como participantes. Abusamos da extração, sem reposição. Sofremos nós, os outros animais, as plantas, o planeta. Mais cedo ou mais tarde, pagaremos o preço. Talvez até consigamos reverter um pouco do estrago e eventualmente voltarmos atrás no caminho do suicídio… Até vermos surgir uma outra falha que parece ser permanente em nossa formulação: o esquecimento. Parece que não queremos aprender com os nossos descaminhos. O que nos condenará a cometermos os mesmos erros novamente.

Participam: Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Suzana Martins / Roseli Pedroso

BEDA / Os Santos Inventados, Mas Reais

São Jorge, visto na Lua

Hoje é dia de São Jorge, comemorado com um feriado na cidade do Rio de Janeiro. Assim como São Sebastião se tornou um outro padroeiro da Cidade Maravilhosa, ambos santos teriam vivido na mesma época e contexto, com referências parecidas , ainda que duvidosas quanto às suas existências. A principal característica é que teriam sido soldados romanos do Imperador Deocleciano. Enquanto o primeiro teria se recusado a perseguir e a matar os Cristãos, o segundo teria se alistado para defender e levar conforto aos perseguidos religiosos que, na visão do Império, se constituíam em opositores à organização política, já que transferia a autoridade suprema do Imperador para um opositor da Província da Galileia.

São Jorge (em grego: Άγιος Γεώργιος; romanizÁgios Geṓrgios; em latimGeorgius; entre 275 e 280 — 23 de abril de 303), também conhecido como Jorge da Capadócia e Jorge de Lida foi, conforme a tradição, um soldado romano no exército do Imperador Diocleciano, venerado como mártir cristão. Na hagiografia, São Jorge é um dos santos mais venerados no Catolicismo, na Igreja Ortodoxa, bem como na Comunhão Anglicana. É imortalizado na lenda em que mata o dragão. É também um dos Catorze Santos Auxiliares. No cânon do Papa Gelásio (+496), São Jorge é mencionando entre aqueles que ‘foram justamente reverenciados pelos homens e cujos atos são conhecidos somente por Deus’” (Wikipédia).

Aliás, essa última frase serve para tudo, principalmente quando algo não pode ser provado por testemunhos factuais. Diriam que é questão de . A justifica quase tudo, na verdade. Não desdenho dessa característica humana que faz com que as pessoas suportem as piores agruras. O fato de alguns dos santos chegarem a condição de santidade pelo martírio em nome de algo intangível, invisível a olho nu, é um um dado que me interessa bastante, já que percebo poucas coisas, mas desconfio de muitas outras, por puro sentimento de identificação ou “intuição”.

No caso tanto de São Jorge da Capadócia como de São Sebastião, torturas e execuções ajudaram a enaltecer suas trajetórias através dos fins trágicos. A imagem alegórica do santo sobre um cavalo branco, matando um dragão (representação do Mal) sendo morto por sua lança, o transformou em uma figura mítica, bem afeita as mais variadas acepções fantásticas. A crença humana o fez ser visto até na Lua.

Ainda assim, foram construídas apocrifamente biografias que tentam validar suas existências e atuações. Tanto um quanto outro são santos militares, sendo que a adoção de São Jorge como padroeiro da Inglaterra, assim como de Portugal, talvez justificasse o furor que empregavam na luta para derrotarem os povos que defendiam seus territórios invadidos.

São Sebastião, flechado amarrado a um carvalho.

São Sebastião, acusado de acobertar e auxiliar cristãos perseguidos, foi condenado a ser executado preso a um carvalho símbolo de força moral e física, como o atesta a sua expressão em latim, robur. Segundo alguns relatos, ainda que ferido de morte, teria se dirigido ao Imperador para confrontá-lo, sendo espancado até a morte, tendo o seu corpo jogado em nos esgotos de Roma. Foi adotado como padroeiro da cidade do Rio de Janeiro por um evento histórico: em 20 de Janeiro de 1567, os portugueses e seus aliados — o grupo indígena rival dos Tupinambás, os Temiminós — destruíram a colônia francesa incrustada na região.

Ambos os mártires acabaram por representar vários personagens no fenômeno do crescimento da adoção do Cristianismo como a religião entre os soldados romanos. Mais tarde, a Igreja Católica Romana adotou a formulação de divisões militares romanas na organização de sua estrutura. São Jorge, no Brasil, começou a ser identificado no sincretismo religioso afro-brasileiro, com Ogum da Umbanda, o poderoso guerreiro, dono do ferro e do fogo, que defende a lei e a ordem.

São Sebastião, mais recente, com o movimento LGBTQIA+. Segundo o pesquisador norte-americano Richard Kaye, PhD pela Universidade de Princeton e professor no Hunter College de Nova York, apresenta-o como um soldado “muito amado” pelos imperadores romanos de seu período, que o queriam sempre por perto. O autor insinua que o santo poderia ter sido, mais do que guarda pessoal, amante dos imperadores (publicação da BBC).

Para Maerki, é importante ainda pontuar que São Sebastião “é o santo masculino mais retratado na história da arte”. “E a imagem clássica de seu corpo, seminu, resplandecendo beleza, se tornou simbólico. Historiadores e especialistas como Kaye veem nesse imaginário do corpo sendo retratado com um erotismo, uma espécie de propaganda do desejo homossexual”, analisa. Outra identificação ocorre por ele ser protetor dos perseguidos que defendem as suas causas.

Carrego a convicção que muitos fatos, mesmo que não sejam corroborados por provas científicas ou históricas, eles acabam por se tornar “reais”, pelos efeitos que causam na Realidade e como repercutem no imaginário das pessoas que com elas se identificam. Os documentos normalmente são apócrifos e no caso dos dois referidos santos, para assustar quem quisesse defender a fé cristã, foi decretado que não fossem referidas as biografias pessoais de cada traidor, mas sim as sevícias a que foram submetidos, com requintes de crueldade. De qualquer forma, estou aqui eu a discorrer sobre algo que carrega dúvidas quanto a sua origem, mas têm lugar no mundo. A mesma “fé” que eu trago que o que venha a escrever possa ser lembrado por quem me lê.

Participam do BEDA: 
Lunna Guedes / Alê Helga / Mariana Gouveia / 
Cláudia Leonardi 

A Fé De Dona Anna Maria

Capela do Menino Jesus e Santa Luzia, construída na chácara de Donna Anna Maria, onde hoje fica a Rua Tabatinguera, no Bairro da Sé.

A esposa do Capitão General Bernardo José de Lorena, Governador da Capitania de São Paulo, Anna Maria de Almeida Lorena Machado, uma “virtuosa dama da sociedade paulista”, como a definiu um jornal da época, envidou grandes esforços para construir, em sua chácara, uma capela para homenagear o Menino Jesus e Santa Luzia, venerados de sua devoção. Ela patrocinava festas celebradas sempre nos dias 13 e 25 de dezembro, religiosamente.

Conforme narrado pela família da fundadora, sua devoção ao Menino Jesus e à Santa Luzia nasceu devido ao episódio do naufrágio que sofreu ao retornar de uma viagem de navio que fez a Paris. Muitas pessoas perderam a vida, Dona Anna Maria foi salva, mas perdeu todos os seus pertences. Entre eles, havia uma lindíssima imagem do Menino Jesus de Praga, estimada por toda sua família. Desesperada, começou a rezar, fervorosamente, por um milagre: o de reaver a imagem do Menino Jesus.

Estando na praia, ao amanhecer, enquanto aguardava o barco de retorno, viu flutuando a imagem se aproximar a boiar no mar. Dona Anna Maria foi correndo ao seu encontro e, nesse momento, prometeu que, ao regressar ao Brasil, construiria uma Capela em honra ao Menino Jesus e a Santa Luzia, o que realizou em 13 de dezembro de 1901. Ela faleceu a 11 de junho de 1903, um ano e meio depois da sua inauguração, que hoje completa 116 anos.

*Texto de 13 de dezembro de 2017, que é também a data do registro da imagem acima. Fiquei curioso quanto a aglomeração frente à pequena capela e busquei conhecer a sua história.

Filhos Da Tempestade

O Cristão e a Filha de Iansã
se encontraram em repartição pública.
Em comum, contas atrasadas,
vidas rasuradas,
documentos sem rubrica…
Na sala de espera,
sentados lado a lado,
confidenciaram reclamações –
“maldito governo”,
“febre terçã”,
“longo inverno”…
Sentiram mútua simpatia,
revelaram planos para o futuro,
fizeram confidências,
trocaram telefones…

Tiveram um segundo,
um terceiro,
um quarto,
vários quartos
em encontros…
Sempre furtivos…
Sempre breves…
Segundos era quanto parecia durar
o tempo que dispunham…
A paixão uniu os dois corpos,
acima das crenças
e das certezas…
Quando se confessaram amantes,
intensificaram a fé
em Jesus e em Olurum.
Ela, em devoção pelo bem querer.
Ele, em penitência pelo amor proibido.
A Filha de Iansã nunca dançou tanto no terreiro.
No templo,
o Cristão nunca cantou tão intensamente os hinos devocionais.
Acostumado aos rompantes da índole tempestuosa,
o marido dela aprovou o seu duradouro bom humor.
Acostumada à temperança sexual,
a mulher dele agradeceu ao Senhor
o fogo redivivo de início de casamento.

Até que, um dia, discutiram pesadamente…
Não foi por causa das entidades da Natureza
ou pelo mandamento contumaz de algum versículo da Bíblia.
Mas ciúme e sensação de incompletude,
por não se pertencerem completamente…
Em troca de mensagens,
ele passou por cima de seu habitual comedimento
e se declarou perdidamente apaixonado..
Ela, ao querer puni-lo,
agiu com a frieza de vento junino.
Disse, simplesmente: “Obrigada!”…
Com o peito dilacerado,
ele respondeu: “Por nada! Adeus!”…
Os corações empedernidos,
talvez por vontade de Deus,
não voltaram a se encontrar…
A Filha de Iansã não voltou ao terreiro…
O Cristão abandonou o templo…

Foto por Johannes Plenio em Pexels.com

A Esfinge

Exposta às intempéries – à luz, à câmera, aos desejosos olhares –
passam todos por sua superfície,
essência que se esconde,
ao se mostrar em pele…
Corpo de mulher, cabeça de azul – esse ser-etéreo-cor –
proclama a antiga máxima, apenas por tradição:
“Decifra-me ou lhe devoro!”
Pois que não deixa de devorar, a quem-qualquer se lhe aproxima –
o pensamento e a atenção – tensão
que não se basta.
Antes, se abastece da atração – se desbasta
de adoradores que se entregam, de bom grado,
à sua devoção-devotamento…

A Esfinge ora a que deus, se ora?
A oratória é de quem quer ser,
mais do que a qualquer divindade – adorada.
De hora em hora, são miríades – mulheres, homens e anjos-de-asas-sem-penas –
entidades-sem-sexo a penarem
por seu olhar-de-terra-à-vista do primeiro astronauta:
“por mais distante,
o errante navegante –
quem jamais te esqueceria?

Eu-o-observador, creio que seu segredo está em não ser decifrada –
A Esfinge –
mas ser aceita em sua complexidade-de-mulher-que-finge
ser quem não é, por profissão
de fé e paixão.
Que esse fingimento é sua essência-de-jogo-de-espelhos que se alheia
e se mistura às gentes, que as consumem por dentro,
enquanto sua beleza de Alien simbiótica-mística-quântica
a reproduzir sua imagem em cada íris de quantos-olhos-outros,
muitos, embarcados em existires sem nexo.
Por que o faz, se mata de amor aos seus hospedeiros e se deixa morrer?
Sua natureza esfíngica explica…
E nada revela!

https://www.youtube.com/watch?v=mWWIi65O5dg