Fim De Festa

O clima de “fim de festa” impera entre os perdedores. Muitos, dopados pela alegria que alcança os seus picos com a valiosa ajuda de aditivos e vontade de ultrapassar limites. Após a terceira dose, qualquer banda “meia-boca” se torna a melhor, não importando as “bolas nas traves” de instrumentistas e cantores. Qualquer bandeja que cai dos braços dos garçons é motivo para dançar. As mulheres substituem os saltos-altos pelos chinelos ou pés descalços. Os homens, arrancam as gravatas, as camisas abrem os peitos, as retiram das calças. Beijos entre desconhecidos de minutos antes são trocados. Todos estão irmanados na sensação de felicidade baseada na possibilidade de eterno gozo. Porém, vivemos na Terra, na realidade transitória deste plano – típica do próprio planeta – que um dia será engolido pela explosão do Sol.

A operação de rescaldo é realizada por aqueles que não participam do evento como convidados, a não ser para servir a ela. Os músicos guardam os instrumentos, os técnicos desmontam o equipamento de som e iluminação. Os garçons recolhem pratos, talheres, os restos alimentares e os conduzem para a cozinha onde serão lavados e guardados. Logo mais, haverá outro processo de catarse – para o “bem” ou para o “mal” – sempre haverá registros dos quais muitos se ressentirão, quando a intenção seria o de festejar. Aliás, a depender dos que estavam festejando antes do tempo, ao perceberem que terão “contas a pagar” após o encerramento do furdunço, o arrependimento bate fundo…  Se não, será o momento das explicações. Que as aceitem quem o quiser. São lobos que ao perderem os dentes, virão outros a substituírem.

As repercussões duram o tempo que merecem durar. Sempre haverá outra festa, incluindo àquelas que são feitas para desviar a atenção sobre a maior delas. Vida que segue, a ressaca moral só ocorre quando o coração se faz presente. Incluindo a aqueles de certa maneira decidimos não gostar. Se for para errar, que seja pelo coração. A decepção normalmente é do tamanho da expectativa. Quanto maior uma, maior a outra. A narrativa dos participantes é validada por “torcedores” de seus emissores. Aliás, a “verdade” dos fatos depende muito de quem os narra. Da carga de prestígio do narrador infere-se a veracidade.

Porém, é comum que os bons mentirosos se sobressaiam em protagonismo, acostumados que estão ao exercício da vivência pela baseada na ficção. De fato, os fãs esperam ávidos a nova mentira que será proferida, principalmente porque se alinham ao que pensam, não importando que tenham base nos acontecimentos obviamente expostos. É o famoso “me engana, que eu gosto”. Fim de festa, enfim, nunca será o fim. Isso, quando sabemos que festas são feitas para acabar…

Foto por Kindel Media em Pexels.com

#Blogvember / O Caderno

“…um caderno que colecionava relatos de personagens antigos”, por Suzana Martins, em As Estações

escrevo… sou muitos
muitos eu desconheço
as estações recorrentes as mesmas diferentes
coleciono personagens antigos e seus relatos
em cadernos esquecidos
ressentidas essas vozes caladas
me assombram em sonhos em que revivo as suas vidas
cortadas do pergaminho
revido os deixando no ostracismo
extraviados à beira do caminho
são papais noéis vampiros arrependidos
assassinos em série empresários depauperados
moças vencedoras mas tristes
olhos verdes em poemas involuntários
paixões irrealizadas amores perdidos
não os fiz completarem os seus ciclos
viverem suas vidas ainda que acabadas
em fim trágico conflito ou alegria e festejos
por que sedutoramente as deixo sem final algum?
por que a palavra
não
tantas vezes reiteradas?
autor por que nos matou antes de nascermos?

Participam: Suzana Martins / Lunna Guedes / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia

Projeto 52 Missivas / Voo Aberto

Caro companheiro de jornada,

possuo a doença dos espaços incomensuráveis. Plano entre planos, ultrapasso fronteiras, mergulho em dimensões várias, infinitas, ínfimas, atômicas. Invado buracos negros, comprovo a matéria escura, enquanto passeio entre galáxias que giram por multiuniversos. O meu espírito paira entre as tramas que sustentam os milhões de planetas e suas multidões de espécies interestelares, diversas e exemplares em diversidade.

Somos filhos do mesmo Princípio e Fim, amálgama de substâncias alienígenas, resultado de bilhões de Tempos. Sei de nossa incapacidade em sabermos de nós. Percorro caminhos paralelos e coincidentes em destinos e recomeços. Corro por ciclos circulares de energia em consumações e criações eternas. Imprimo movimentos em velocidades portentosas por campos gravitacionais exponenciais em proporções absurdas de tão simples e luminares.

A Luz se alterna em cores que cortam meu corpo em fatias de frequências titânicas. Habitante do Nada total, a avalanche de sóis não soluciona a minha solidão quando me sinto apartado de Tudo. Sem sentido e profundidade, voo a esmo, com sorte decidida.  

Ainda assim, lhe pergunto: quando poderemos tomar um prosaico, ainda que importante café para discutirmos os nossos interesses no momento imediato a lamentarmos a impossibilidade de sermos felizes?…

Com admiração,                                                                                                        Pássaro Desencantado.

Foto por Felix Mittermeier em Pexels.com

Participam: Mariana Gouveia / Lunna Guedes

Projeto 52 Missivas / Antes Do Fim Do Mundo

Meu amor… saudade!

Dois anos sem nos ver, desde o fim do mundo. Em longas frases, digo coisas que apenas nós dois conhecemos. Você sabe que eu prezo o estilo mais prolixo. Mas aqui não quero testar a sua paciência. Assim como quando ao lhe falar começava com um assunto e terminava em outro. Tatibitate, sequer anunciava do que estivesse tratando. É que, na minha cabeça, eu converso consigo o tempo todo. Quando a minha voz sonorizava as palavras, era somente a continuação do que havia começado mentalmente. Muitas vezes me surpreendo por você não saber absolutamente tudo de mim. Esqueço que estamos apartados — no tempo e lugar.

Em março, completa dois anos em que namoramos, cantamos, mergulhamos em azul piscina, sempre com um golfinho a nos acompanhar. A areia lotada, deserta de gente que importava, a não ser nós dois. Cheios de paixão e amor.

Havia anúncios que os lugares iriam fechar. As praias ficariam inacessíveis. A pousada cerraria o portão. Vivíamos os últimos dias de um mundo antigo. Tínhamos alguns dias e nos amamos como vadios, em pé ou no catre, sabendo que as muralhas desabariam. Chegamos a ouvir as trombetas de Jericó. Desabamos suados e sorridentes, plenos de gozo. Amantes isolados de nós mesmos, deixamos de sonhar. Morte e quase morte a nos acompanhar. Choramos, brigamos, rimos e rumamos de volta para nossos lares.

Nunca mais voltamos a nos encontrar, a nos entregar, a nos perdermos… Meu mundo caiu e Maísa o cantou noites adentro. Dor de cotovelo. Sangue nos olhos. Lágrimas de sal. Beijos partidos. A faca da distância a cortar nossos corações. Continuo a conversar com a sua boca a centímetros de me abocanhar. A minha língua continua a sibilar como uma serpente a caminho da roseira. Apenas em imaginação. O rei sem o seu reinado. O jardineiro sem regar a rosa. Meu amor, que saudade! Será que um dia voltaremos a nos amar como antes do fim do mundo?

Participam: Lunna Guedes / Mariana Gouveia

Imagem por brenoanp em Pexels.com

Metalinguagem

Não pise na metalinguagem
Flutue nela
Não suba na árvore da prosódia
A abrace
Não se desvie das ideias
As vista
Não passeie pelos objetos diretos
Os concretize
Não circule pelas temáticas
As atravesse
Não se incline ao entendimento
O seduza
Não projete os seus parágrafos
Os viva
Não caminhe pela transversalidade
O verseje
Não se apoie na leitura
A compreenda
Não creia na ortografia
A ame
Não se circunscreva à parábola
A amplie
Não atinja a compreensão
A saiba
Não use pleonasmos
Os sinta
Não estabeleça a fluidez
A Navegue
Não aposte na realidade
A sonhe
Não espere a palavra
Se dê a ela
Não escreva
Se escreva
Não desafie a boca
Use a língua
Não esqueça do riso
Arme o circo
Não nade no nada
Toque o fundo
Não dialogue com o fim
O conclua.