Blogagem Coletiva Interative-se / Coleções / Crepúsculos

Quando garoto, gostava de colecionar coisas aleatórias como bolinhas de gude, tampinhas de refrigerante, penas de galinha (era granjeiro), álbum de figurinhas (tristemente jogados fora por minha irmã), livros velhos (quanto mais desfolhados, melhor), aos quais gostava de preencher com as minhas próprias linhas, folhas de árvores em diferentes formatos e cores, pedras e conchas. Se buscasse pinçar mais na memória, certamente me lembraria de mais coleções advindas do desejo de regrar meu mundo, resultado de um leve transtorno obsessivo compulsivo.

Quando comecei a escrever compulsivamente, gastava a tinta de diversas canetas que, à época, poderiam vir em várias cores além dos tradicionais azul, preta ou vermelha — verde, roxo, marrom, rosa. Como não tinha condições de comprá-las seguidamente, resgatava as que eram jogadas fora por aí em minhas coletas de lixo. Um dia, em um momento incrível de desprendimento, vendi todas as mais de duzentas como plástico.

Passei agora há pouco uma vista por minha biblioteca e percebi que tenho uma espécie de coleções de coleções — romances brasileiros e internacionais, de filósofos e pensadores, de enciclopédias, de revistas… Atualmente, eu coleciono entardeceres. O crepúsculo representa algo de vida e morte. A luz se esmaecendo entre nuvens, edifícios, casas, árvores, carros, montanhas, rios, pessoas, as tornando personagens do lusco-fusco.

No Inverno que morre, a inclinação do Sol varre os seres, provoca sombreamentos, reformas de imagens, banhos em vermelho e amarelo luminares. Muitas vezes, interfiro nesses reflexos despudorados de vida em morte como forma de moldar a minha visão de vida que é, antes de tudo, uma tentativa de capturar o espírito da luz. Já fotografei auroras, mas para quem tem a alma melancólica como a minha, perceber que a luminosidade apenas inicia a sua faina de calor e dor, amor e prazer, quase como se fosse interminável, me exaspera um pouco. Quero o quase fim e a promessa noturna de um novo dia… que poderá não acontecer.

Capturar e colecionar crepúsculos é como se eu caminhasse, a cada passo no chão, a marcar os meus pés nas nuvens…

Participam da Blogagem Coletiva Interative-se:
Isabelle Brum / Mariana Gouveia / Lunna Guedes

Taninha*

Taninha, aos 5 anos

Tânia recebeu de uma prima, via Whatsapp, a reprodução de uma foto sua aos cinco anos de idade. Logo, divulgou para o resto da família. Viu semelhanças entre a menina que foi e a Ingrid, nossa filha do meio. Há quem discorde, mas olhos de mãe não se enganam. Eu percebi que ela ficou emocionada em se ver eternizada em linhas esmaecidas. Perguntei se chegava a se lembrar do vestidinho, que presumi ser branco, com bolinhas negras. Ela se lembrou que era de um tecido macio, leve, quase certo que de algodão, composto de quadradinhos de cores variadas. O passado dessa idade, normalmente é visto em preto e branco, talvez até em sonhos.

Eu tenho a sorte de ter em meu acervo várias fotos desde bebê. Minha mãe era zelosa quanto a isso, ainda que fôssemos pobres. Porém, a família da Tânia era mais simples em recursos do que a minha, além de mais numerosa. Eu, um garoto da cidade, ela, uma garotinha do interior. Quem vive hoje, tendo acesso a imagens instantâneas que descarta, caso não goste, não imagina o quanto era caro e difícil fotografar. Encontrar fotos desse período é como descobrir um tesouro.

Imagino se a Tânia conseguiu identificar no olhar da menina que foi, a resolução da jovem que emigrou da vila da cidade pequena para cidades sempre maiores e novos horizontes mais amplos, se bem que obstruídos por altos edifícios. Se observou nos traços arredondados, a força em superar tantos percalços. Se vislumbrou no cabelo penteado a ordem que quis imprimir ao mundo, com as consequentes decepções que todos nós sofremos.

Temos necessidade em buscar as raízes fincadas em nosso chão original. As visões que nos movem desde o início, iluminadas pelo passado. O desejo de vida em imagens paralisadas pelo tempo. Talvez, para nos confirmarmos seres que tem origem, mas sem fim — vida eterna. E compreender nosso caminho torto, mas certo, porque é nosso. E de perceber o valor dos encontros que temos em nossa existência — essa viagem incrível.

*Texto de 2018

Scenarium / Leu… Está Lido / Fim

FIM

FIM é meu objeto de análise instilado pelo tema proposto pela Lunna para esta postagem: “Leu… está lido!”.

De início, FIM nasceu para morrer, aliás como creio tudo que perpassa por nossa existência, nasça. Sem fim, não há razão para existir. Essa ideia de infinitude serve para o Universo… ou não. A não ser que tenhamos total ciência de nossos aprendizados pelos seguidos renascimentos, individualmente somos limitados pela morte. Em existindo renascimentos. Em se considerar que renasçamos sempre seres humanos e não flores de jardim, de vez em quando. Pensando bem, deve ser maravilhoso ser flor.

A proposta diria respeito a um livro já lido que não pretendamos não ler novamente, nunca mais. Tanto quanto os personagens do belo livro de Fernanda Torres, estou chegando a um patamar  ̶  idade e constituição física  ̶  que a velhice está mais próxima de fazer mais uma vítima, do que perto da força juvenil. Ainda que me sinta bem o suficiente para lembrar o deus Ciro, tenho impulsos de Sílvio, a sobriedade do Neto, a perplexidade do Álvaro e a inveja do Ribeiro  ̶  personagens que contam a história de um Rio de Janeiro humano, superficial e profundo.

Fernanda Torres  ̶  filha da imensa Fernanda Montenegro e do grande Fernando Torres  ̶  começa pelo fim de cada um deles para narrar a versão em primeira pessoa, como vozes solos de um coral, do concerto que ocorreu em determinada época sob o sol macabro do Rio, de areias carregadas de histórias em forma de gente. A viagem passeia pelos anos 60, passa pelos estertores do Século XX e finda no início do XXI, quando o último membro da gangue, Álvaro, começa a narrar seus passos finais, relembrando amigos e peripécias daquele grupo que variava de status profissionais, dentro de uma mesma bolha comportamental, reverberando viva felicidade a permear o vazio existencial.

Mas todos têm as suas chances de participar. De Álvaro a Ciro, Sílvio, Ribeiro, Neto conduzem o cortejo fúnebre de forma esplêndida, com a participação de personagens e contrapartes  ̶  as mulheres que fizeram parte de suas vidas. Mais cedo ou mais tarde, todas percebiam que não se envolviam apenas com um homem, mas com todo os cinco. Ciro, o mais icônico e amado do grupo é o primeiro (no tempo) e último a morrer (no livro). Qual homem, já moribundo, consegue ser o homem na vida de uma mulher? Luz de farol para os outros membros, influenciou as suas vidas quando vivo e, talvez, ainda mais, morto. Quando a sua luz se apagou, perdeu-se o lado belo da fealdade em se viver o idílio carioca. Ainda que autônomas, eram como se fossem cenas laterais e complementares  ̶  comentários da ação principal. Com efeito, o livro da Fernanda é vivaz o suficiente para ser dramatizado, talvez influência de seu universo de atuação primordial.

Quando fui chamado para a postagem da Scenarium, quis ler um livro inédito. Seria estranho ter que relembrar um que já tivesse lido e ter que objetivar porque não o leria nunca mais. Teria que folheá-lo, eventualmente relê-lo, voltar a fazer o que que disse que não faria. Preferi um que nem sei como apareceu em minhas mãos. Compro livros na esperança de enveredar por suas páginas e que, muitas vezes, ficam boiando nas prateleiras da biblioteca sem serem tocados. Enquanto outros são relidos como se fossem páginas da Bíblia em dias de culto. FIM, no entanto, é um desses livros que merecem releitura. Que venham outros. Com a unção do Padre Graça, pergunto: “O próximo?”. No mínimo, Fernanda Torres ser lida, além de assistida em peças de teatro, vista series de TV e admirada no cinema.

 

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Quem Sou Eu?

Quem sou eu 10 A
Sou água…

Reabasteço-me de minha porção…
Envolto em pele,
mergulho em meio translúcido
que sou eu – aquoso.
Dos antigos, elemento fluídico,
separado do tempo sem fim
onde me abrigo,
vou de um ponto ao outro,
através de mim…

Quem sou eu
Sou lunar…

Pode ser a última lua.
A última vez que atua.
Pode ser a sua última noite.
A derradeira hora do açoite.
O último abraço e o colo quente.
O último suspiro e o beijo ardente.
A última chance de perdoar.
A última oportunidade de amar…

 

Quem sou eu 3
Sou um trevo…

Nasci comum –
um trevo de três folhas.
Num caminho feito de escolhas –
concebi ser ínfimo,
verdejar plantinha em pedra dura,
viver da luz que sobrar
e, apesar de menor,
fazer sombra,
escurecer de vida o claro chão…

 

quem sou eu 9
Sou o mar…

Em tempos restritivos ao caminhar, paro.
Vagueio o meu olhar em direção ao oriente.
Testemunho vagas-ondas em direção à areia –
sucessivos abraços da água salgada.
Oceano de represados sentimentos
pisados-fixados no mar em movimento.
Salgo o doce e o bom,
a vida e o dom
de existir.

Quem sou eu 5
Sou pintor…

Corto a minha orelha, mas não deixo de ouvir
o silêncio penetrante que absorve meu ser só…
Como se fora a tela branca-nada,
ainda que pinte o horizonte
em cores e dores.
A ruminar sóis e girassóis,
campos e procelas,
paraliso a mão e músculos.
Amadureço,
em pinceladas,
a morte em crepúsculos.

 

QUEM SOU EU 2
Sou o humano de um cão…

Converso com o meu humano.
Sem saber falar a minha língua, ele sorri.
Ou pede que me cale.
Nunca sei quando o que digo
é importante ou inoportuno.
Eu o amo tanto!
Morro quando parte.
Revivo quando chega.
Saudade eterna
em plena presença.

Ale Helga — Darlene Regina — Mariana GouveiaLunna Guedes

BEDA / Carroceiro De Sonhos

Carroceiro

Ontem
O sol passou por aqui
Homens
Cães
Carros
Passaram por aqui
E eles passaram pela paisagem
Passaram tão rapidamente
Quanto a pressa de chegar queria
Tão devagar quanto a água do Tietê
Se movia
Ontem
A paisagem passou por mim
Em uma carroça
Dos tempos do sem fim…