BEDA / A Melancia Curiosa

Era uma vez uma melancia muito curiosa que decidiu deixar a fruteira onde estava para visitar o lugar a sua volta. Ela já havia viajado bastante, desde o lugar onde nascera e isso estimulou sua natural ainda que insuspeita sede de conhecimento.

O primeiro lugar pelo qual passou foi a cadeira a sua frente. Queria a mesma sensação dos humanos que sempre estacionavam o seu corpo naquele objeto, quando diminuíam de tamanho. Acabou por fazer amigos, os mesmos que cercavam os seus usuais ocupantes quando se alimentavam.

Depois de passar pela sala de jantar, onde viu a imagem dum quadro* que a atraiu bastante, subiu as escadas rumo à parte de cima da casa…

Como era uma jovem melancia, ela se identificou com o quarto descolado das meninas. Ficou especialmente fascinada pela penteadeira com o seu lindo espelho. Percebeu que era bastante vaidosa e admirou a sua forma arredondada com as faixas rajadas brancas em seu corpo verde.

Ao descer, a Melancia Curiosa experimentou voltar a ser uma flor. Lembrou-se de quando foi uma, em sua primeira infância, quando era apenas a promessa de ser uma grande e suculenta fruta.

Gostou de ficar no sofá macio, ideal para o seu formato esférico. Quase adormeceu quando aproveitou para assistir TV.

O que a Melancia Curiosa tinha visto até então, a estimulou conhecer mais do mundo fora da segurança da casa. Ela havia chegado na parte detrás daquele veículo de um lugar onde foi retirada de junto de suas companheiras e achou que pudesse usá-lo para buscar por novos caminhos.

Como não tinha carteira de motorista, o humano a impediu de sair. Mas depois de ver todas as peripécias que experimentou, decidiu não esquartejar a vivaz melancia. Ela ficaria a observar a vida acontecendo em torno de si enquanto tivesse consciência.

Ela explicou que preferia ser comida. Que nasceu para propagar as suas sementes. Espalhar a vida. Tornar-se parte de outros seres, alimentá-los. Ter o seu gosto provado, reverenciado, gerar amor. Viajar por aí através de outros corpos. Cumprir a sua natureza. A curiosa melancia era naturalmente sábia…

*Imagem vista pela Melancia Curiosa ao passar pela sala…

O BEDA é uma aventura compartilhada por: Lunna Guedes / Darlene Regina / Mariana Guedes / Cláudia Leonardi

Transformação

A metamorfose se deu, de início,
pelo olhar…
O movimento dela o paralisou.
Como se fotografasse cada gesto,
aprisionou dentro de si a evolução
do casulo à borboleta –
da flor ao céu –
asas da imaginação…

Quis recuar quando suas vozes
ocuparam o mesmo ambiente –
palco de suas atuações…
Percebeu que fluíam sonoras
conversas de palavras
entrecortadas,
caladas…

As lacunas preenchidas de desejos
perfeitos em suas incompletudes.
Quebradas as barreiras –
distâncias de centímetros-quilômetros –
peles sem proteção,
mentes despertas,
liberta de atavismos
e consequências,
o imediato transformado em eterno,
se reconheceram outros,
os mesmos…

Ele,
transmutado
de Jekyll em Hyde,
de homem em lobo,
de mortal em vampiro,
de Clark em Superman
todos e ninguém,
vivia ausente de si…
Passou a respirar o vácuo
se não aspirasse o hálito da paixão…

Transformação
irremediável,
perigosa,
instável,
liberdade de viajante
encarcerado,
não trocaria o permanente desconforto
do atual caos da criação do mundo
pela antiga estabilidade da morte
em vida…

BEDA / A Decaída

Flor solta de um ramalhete,
cortada de sua origem,
a trouxe para casa
e a pus em um pequeno vaso
com água…

Ainda que fosse por alguns dias,
a bela decaída passeou
ressurgida
o seu poder sedutor
por meus recintos…

Antes de juntar os seus átomos
decompostos
aos outros que pairam no ar,
a pus para ver o sol decair.

Pode perceber que tudo ao nosso redor
nasce, vive, se transforma
e completa o seu ciclo…

A flor,
sem ressentimentos,
cumpriu o seu destino:
a de inspirar e morrer…

Alê Helga / Roseli Pedroso / Claudia Leonardi / Lunna Guedes
/ Adriana Aneli / Mariana Gouveia

Voo

Não sou flor,
mas uma borboleta me procurou…
Talvez sentisse
que eu fosse um porto seguro,
uma parada estável durante o seu voo
aparentemente sem rumo.
Sabia que ela vivia
os seus últimos momentos.
Passou a maior parte de sua existência
a esperar a liberdade.
A sensação de ser livre carrega a morte anunciada
em sua própria gênese.
Se todos nós morremos um dia,
que seja dessa maneira: um voo
lindo
para outra possibilidade de ser…

BEDA / Scenarium / Projeto Fotográfico 6 On 6 / À…gosto

Agosto de 2020 — Pandemia de Covid-19 grassando no País com a média de mais de 1.000 mortes por dia — por volta de 100.000 mortos oficialmente registrados, amplamente subnotificados. A direção da companhia indicou que poderíamos postar seis imagens à gosto. Escolhi algumas imagens que remetem ao passado. O presente indicado acima está um tanto estéril e o futuro não parece ser muito diferente, com tendência para ser um tanto enigmático, feito um jogo de azar.

 

6 on 6 agosto 4

Esta imagem foi colhida outro dia. Um fusca 1969 estacionado quase em frente à minha casa. 1969, assim como esse ratão, também foi o ano da mudança definitiva para a casa recém levantada no terreno 22 do loteamento realizado na antiga fazenda de fumo, na região da Vila Nova Cachoeirinha. Durante muitos anos, os pés de fumo nasceram a esmo em cada canto livre do quintal. O que ajudou bastante no controle dos piolhinhos que infestavam as galinhas que começamos a criar para completar o orçamento familiar. Tirávamos água do poço, tomávamos banho de canequinha, expulsávamos os cavalos que comiam a cerca feita de bucha (a planta), festejávamos a colheita de bananas, goiabas, abóboras e abacates, nos irritávamos com as picadas dos marimbondos. Eu adorava jogar futebol — balizas improvisadas com tijolos — bola improvisada com pano, recheio de papel e cordinha na rua de terra. Em dias de chuva, andávamos de chinelo, calças arriadas, até o asfalto, distante quase 2 Km para só então colocarmos os sapatos levados em sacolas. Tempos difíceis. Eu era feliz.

 

6 on 6 agosto 6

Essa imagem remete ao sincretismo religioso de minha mãe. São resíduos físicos de um tempo em que eu não compreendia como uma pessoa abarcava todas crenças possíveis em seu cotidiano. Além de acender velas aos “espíritos”, não via contradição em apresentar imagens díspares na prateleira. Um Buda gordo, inadmissível num asceta que jejuava frequentemente, se referia a símbolo de prosperidade. Assim como o elefante de costas. O Cristo em pedra sabão, apontava para a sua criação cristã, de primeira comunhão — a qual também fiz — crisma, missas dominicais e adoração aos santos. No entanto, seu nome — Maria Magdalena — já apontava para a tendência em ultrapassar os cânones e se ater ao teor herético da religião. Ela adorava ter o nome da 13ª Apóstola e, para alguns, mulher de Jesus.

 

6 on 6 agosto 7

Essas conchas estão há muito tempo conosco na casa de praia, onde estou. Porém é bem provável que os moluscos que as ocuparam possam ter vividos mais de um século, antes dos 40 conosco. Há moluscos que, devido ao metabolismo muito lento, chegam a mais de 500 anos, a depender da espécie. São prodígios do passado. Mensagens de eternidade em tempos de rápida deterioração do mundo que nos rodeia, em todas as suas formulações. A arquitetura dessas habitações é esplêndida. Construída pouco a pouco, enquanto cresce, sua natureza é de deixar, após a sua partida, um monumento a beleza e a transcendência, para quem conseguir-quiser ver. São templos dignos de oração.

 

6 on 6 agosto 3

Ao vir para cá, recebi essas toalhas embaladas em plástico. Segundo a Tânia, eu as recebi de presente em meu aniversário de meio século de vida. Nem ela, nem eu nos lembramos quem me presenteou. Eu não sou ligado a regalos. Talvez uma postura de defesa de alguém que dificilmente ganhava presentes quando garoto. Quando acontecia, geralmente eram roupas. Sei que essa impassibilidade é mal recebida, mas não consigo evitar. O meu aniversário de 50 anos foi um acontecimento inesperado para mim. Minha família disse que haveria uma festa a qual deveríamos ir. Era um domingo e eu queria ficar em casa, assistir a um futebolzinho ou um a filme. Fiquei de mal humor. Disseram que não demoraria. O Buffet ficava perto de casa e vi ali a oportunidade de me mandar a pé assim que fosse possível. Ao subir as escadas, pelo menos 50 pessoas me esperavam. Revistas, as fotos com a minha expressão de surpresa dizem tudo. Pessoas que não via há muito tempo, compareceram ao evento e me senti um tanto estranho ao perceber que fosse alguém que merecesse ser homenageado. Os presentes, alguns guardo como marcas, como a camisa do São Paulo F.C. com meu nome e número 50. Outros, pertencem ao passado. O da imagem, tem sido útil para enxugar o meu corpo a caminho dos 60 anos…

 

6 on 6 agosto 5

Da parte inferior do cacho da banana ainda imaturo, sai um pendão e, em seu extremo, destaca-se um cone de coloração e consistência diferenciadas (avermelhado-roxo), que é a flor da bananeira. É conhecida como buzina, umbigo, flor, coração ou mangará da banana. Costumo chamar preferencialmente de coração. Dois dos cachos produzidos, cortamos os corações. Deles, podem ser feitas excelentes saladas. Analogamente ao umbigo, quando cortamos o cordão, os filhotes-bananas se desenvolvem mais rapidamente. Deixados sobre a mureta, sem a seiva que os alimentava, murcharam pouco a pouco, até fenecerem. Umbigos ou corações — quedaram amargurados.

 

6 on 6 agosto 2A

A foto mais prosaica deixei para o final. Nela, apareço com a face taciturna, amplificada pela heterocromia dos meus olhos. Quase uma marca registrada da minha condição mental diante do que vivemos, a natureza cromática dos tempos atuais — verso, reverso, controverso — ganham melhor definição em foto em preto, branco e tons de cinza, amálgama-palheta da composição de cores da maldição em ser brasileiro.

B.E.D.A. — Blog Every Day August

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Lunna Guedes