Serial Ser

Serial Ser
Minha filha, Lívia, e eu… ou não…

Estou fazendo um curso sobre escrita em primeira pessoa. De início, talvez acreditasse que não houvesse tantas coisas a serem reveladas sobre um tipo de escrita ao qual recorro tantas vezes. Mas como foi um curso proposto pela Lunna Guedes, da Scenarium, não pensei duas vezes. Foi uma decisão acertada, já que pude perceber que o narrador sem o conhecimento consciente de que tem a mão várias ferramentas para vir a expressar sua história, perderá excelentes oportunidades para a construção de bons textos.  O que não impede que a escrita intuitiva possa ser mais interessante, mas dependerá de fatores contingenciais. Posicionar-se em primeira pessoa tanto pode ser baseado em testemunho pessoal ao se contar uma história, como podemos colocar personagens diferentes de nosso comportamento usual ou visão de mundo para isso. Na vida cotidiana comum, em muitas ocasiões ocorre não ser tão diferente…

No último encontro, a Lunna propôs aos participantes como exercício que revelássemos a primeira coisa que realmente vemos ao acordar. Parece ser algo simples, mas ao pensar um pouco mais sobre o tema, percebi que entre descer os pés no chão, caminhar para o banheiro, urinar, lavar as mãos e o rosto, o que me faz perceber que esteja plenamente desperto é me ver no espelho. O que nunca deixa de me surpreender. O meu rosto quase nunca é aquele que visualizo internamente. Frequentemente, apresento uma face totalmente diferente da que usei no último sonho recordado.

Outro dia, pensei em publicar uma foto que tirei com o meu celular. Nela, me apresento com uma postura agradável aos meus olhos. O olhar era um tanto sedutor (a meu ver) para uma ocasião que deveria ser menos posada, mais solta e mais lúdica. Afinal, estava com uma das minhas filhas, em momento de descontração. Fiquei pensando: “que mensagem quero passar com esse olhar? O que pareço transmitir com a minha linguagem corporal?” Aquele olhar costumo fazer eventualmente e nasceu sem pretensão de parecer chamativo. A minha postura treinei para ser a mais equilibrada possível. Algo bem diferente da revolução que desde sempre se opera internamente em mim. Já ouvi dizer de jovens que ficam no espelho treinando algumas expressões. Certa ocasião, Caetano Veloso disse que o cacoete de levantar o sobrecenho adveio da imitação do olhar de um ator canastrão, ícone do exagero e dos filmes bíblicos, como “Sansão e Dalila”  ̶  Victor Mature.

Decerto, muitos de nós tentam imitar posturas, olhares e poses de ídolos aos quais nos afeiçoamos como modelos. Há pessoas que dizem preferir fotografar apenas o lado do rosto que supõem ser o mais fotogênico. As fotos de identidade, por isso mesmo, costumam desagradar a muitos justamente porque adotam uma postura mais “limpa”, sem subterfúgios que contrarie uma fisionomia mais natural e que não transmita, idealmente, a “veracidade” do rosto. Treinar feições que defiram da maioria poderá acontecer, mas o mais fortemente observável é que se trabalhe em expressões faciais que se insiram no padrão e uniformizem o comportamento, como a denotar participação em determinada “tribo”, incluindo a utilização de roupas similares.

Ao mesmo tempo, com a facilitação de nos fotografarmos através dos modernos aparelhos de mídia, especialmente o celular, a busca pelas melhores imagens, aquelas que expressem beleza e alegria, demonstra que nos tornamos prisioneiros da ditadura da felicidade. Isso faz com que caiamos na tentação de nos oferecermos artificias no altar do apreço social banalizado. Nos apresentamos de tal maneira adulterados que é comum perdemos o sentido da realidade, ao patinarmos na superficialidade.

Como quase nada se apresenta da forma que é, a nossa interpretação sobre a autoimagem se caracteriza pela despersonalização e consequente autodepreciação. Muitos preferem não aprofundar suas relações interpessoais porque o processo de entrega e possível rejeição ao nos mostrarmos inteiros, é doloroso. Nos aceitarmos imperfeitos exige renúncia à confortável mentira. O autoconhecimento e o crescimento pessoal são penosos e causam sofrimento.

Quando garoto, objetivamente eu estava tentando encontrar um sentido para a vida, mas acabei desenvolvendo, sem querer, um “marketing” pessoal baseado na postura de “outsider”. O que quero dizer é que ao vivermos em sociedade, nada é tão simples. Muitas vezes uma coisa se confunde com a outra quando não estamos plenamente conscientes do que desejamos como seres sociais e/ou individuais. Ao tentarmos ser autênticos, corremos o risco de “vendermos” nossa autenticidade em troca de atenção. Pessoalmente, continuo na busca de mim mesmo e da autenticidade de ser mais do que ser. Porém é possível que me traia uma vez ou outra por não conseguir domar minha fragilidade. Porque sou frágil, porque somos. Humanos.

https://despenhadeiro.wordpress.com/2020/05/28/homo-artificialis/

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Bonapetito

Nos primórdios de sua existência, os grupamentos humanos colhedores, pescadores e caçadores – encontraram, com a ajuda do fogo e temperos descobertos aqui e ali, maneiras de dar sabor aos seus alimentos. Com o desenvolvimento das civilizações, impérios surgiram e desapareceram baixo os mecanismos da oferta alimentar através da produção ou o controle de territórios que a produziam. A espécie humana cruzou oceanos em busca de especiarias e terras para a agricultura de grãos, legumes e frutas, inaugurando a globalização. Além de sustentar o indivíduo,  o alimento carrega vários outros significados. Em torno dele, as famílias se congregam. Agradecer a comida sobre a mesa tem caído cada vez mais em desuso, porém reverenciar o alimento que nos sustenta pode ser feito sem alarde – uma homenagem a quem trabalha para fornecê-lo e até ao próprio alimento, de origem animal ou vegetal.

Bonapetito (6)

Minha mãe, em época de restrições, complementava minhas mamadeiras de leite com café. Até os seis ou sete anos, usei mamadeira de manhã. Continuaria usando mais tempo, se o querido objeto não tivesse sumido. Ficou o gosto-vício pelo café. Não prescindo de tomá-lo, ainda que acorde tarde, quase na hora do almoço. O que ocorre frequentemente devido às minhas atividades profissionais. Hoje, tomar café virou motivo para encontros sinônimo de prazer dividido por amantes da bebida, como eu. ‘Bora tomar café?

Bonapetito (7)

Às terças, faço a feira da semana com muito prazer. Gosto de apreciar as cores, os cheiros dos legumes, temperos, grãos e frutas. Gosto de ouvir os pregões, sempre criativos, entre outros tantos reprisados, mas sempre engraçados. A festa dos sentidos sempre termina com o tradicional pastel de feira. Um caldo de cana é um complemento doce-ideal desse tradicional petisco. Difícil de dispensar, não deve se considerar um paulistano típico quem não passou por esse rito de passagem.

Bonapetito (4)

Quando a falta de tempo nos impede de prepararmos um almoço ou jantar mais completo, um sanduíche vem sempre a calhar. A depender dos ingredientes, a qualidade alimentar, além da rapidez são fatores que compensam sua feitura. Neste, de pão de forma integral, com atum, alface, filetes de cenoura, beterraba e maionese, além de bonito, estava bastante saboroso.

Bonapetito

Não há como dispensar um tradicional arroz e feijão, mesmo quando estou fora de casa. É o meu prato favorito. Nesta imagem, como acompanhamento, além de farinha de mandioca, banana nanica à milanesa, abadejo, mandioca frita e legumes com maionese. Como sobremesa, sagu feito com vinho, romeu e julieta (queijo e goiabada) doce de banana e pudim de coco diets.

Bonapetito (8)

As minhas filhas me apresentaram a comida japonesa há alguns anos. Por puro preconceito, a evitei por outros tantos. Foi paixão à primeira palitada! Comecei a empunhar os hashis com habilidade insuspeita. Ainda não sei, como elas, os diversos tipos dos sashis, sashimis, as variedades de temakis, guiosas e lámens. Além das variações encontradas em cada casa de comida japonesa. Esta semana, mesmo, pedimos para o jantar.

Bonapetito (3)

Não só de alimentos que colocamos garganta adentro nos carrega de energia. Vistas, sensações físicas proporcionadas pela brisa vinda do oceano ou a água do mar na pele. Os pés na areia, o barulho das ondas a quebrar na praia, o horizonte infinito, a luz do sol a transpassar por barcos, banhistas e pássaros compõem um prato delicioso. Água de coco para refrescar…

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Alê Helga— Darlene Regina — Lunna Guedes
Isabelle Brum — Mariana Gouveia

Amor Barato

AMOR BARATO
O amor não custa caro…

Nesta época do ano, em que se fala muito do amor universal, talvez não se perceba que a carência humana nos assalta em todos os sentidos, incluindo os sentidos físicos. Esta parede em ruínas fez parte de um conjunto de pequenos prédios que foram demolidos para dar lugar a um projeto cultural, na região da Avenida Duque de Caxias, perto da Sala São Paulo, no Centrão. Com o tempo e as mudanças na administração municipal, o que seria um centro de arte, transformou-se em conjunto residencial.

Datada de 2014, fico a imaginar o ambiente da qual essa construção fazia parte, imerso à meia-luz, em que homens buscavam o amor material oferecido de forma tão direta. Gosto muito da pintura, apesar de tosca, em que o braço da moça, de fisionomia tristonha, cabelos longos-encaracolados e peito pequeno, indica o caminho para a satisfação dos desejos mundanos.

Descortinada à luz do dia, desprotegida aos olhos dos passantes, afigura-se ainda mais frágil a se considerar as tenebrosas condições às quais ela e suas colegas ficavam expostas. Eu me lembro que relutei em fotografar-capturar sua imagem antes que se tornasse pó, como se invadisse sua intimidade. Agora, permanece viva em minha imaginação e a ela rendo minhas homenagens.

BEDA / Que Mal Há Em Mauá?

Mauá

Caminhar por certas partes de São Paulo é como excursionar por eras através de uma máquina do tempo. Prédios do passado e do futuro interferem na vida das pessoas do presente. É comum vermos jóias arquitetônicas mal conservadas, prensadas em cantos e dobras de esquinas, expostas à sanha das intempéries. Mesmo assim, conservam um quê de beleza antiga, feito aquelas senhoras que mantêm o charme sedutor, mesmo sendo avós.

Na Rua Mauá, apesar de observarmos edificações caindo aos pedaços, podemos perceber o quanto esta cidade pode surpreender por suas facetas inusitadas. Essa via já viveu tempos de intenso movimento, pois fica em frente à Estação da Luz. No começo do século passado, abrigava vários negócios e hotéis de estadia rápida para os que chegavam de todas as paragens. Até poucos anos antes, apesar de parecer mais um mercado persa-guarani, a quantidade de pessoas que por lá passavam era absurda.

Mauá (2)
Porém, com as modificações implementadas para tornar a região mais organizada, o movimento decresceu bastante. O que se encontra atualmente são muitas lojas fechadas, pessoas encostadas nas paredes da Estação aguardando o tempo passar e muitos pedintes em situação de precariedade que fazem, da rua, a sua morada. Os hotéis continuam a ser de estadia rápida-rapidíssima, pagos a preços minutados, por vezes.

Resta viajarmos pelo presente-passado, a imaginar que o futuro poderia ser mais interessante se houvesse o aproveitamento dessa bela área que apresenta plena potencialidade de uso comercial, com lojas  e restaurantes de boa qualidade, a atrair turistas e cidadãos que queiram aproveitar logradouros incríveis, tão perto, mas, neste momento, tão longe de nosso alcance. Tivesse os atuais “brasileiros de esteio” a mesma verve do homem que deu origem ao nome da rua – Visconde de Mauá – nosso País teria um destino mais grandioso ou, para atualizarmos nossas possibilidades, menos degradante.

BEDA / A Lagartixa

LAGARTIXA

Entardecia e refletia sobre cenas do dia que se sucediam como flashes em minha mente. Uma após outra, pareciam criar um mosaico de coisas aparentemente desconexas, a não ser pelo fato de pertencerem ao contexto do mesmo plano – a Terra… ou melhor, o Universo conhecido.

De manhã, no início da feira, o dono da barraca de plantas parecia conversar com elas. Quase ouvi telepaticamente as palavras ecoarem em direção a um grupo delas – de flores ornamentais – que o olhavam com certa altivez de belas espécimes que eram, enquanto o cenho melancólico do velho questionava se uma delas não o ajudaria a pagar a conta de luz que estava para vencer.

Na barraca de frutas, comprei bananas do amigo do Neymar. Perguntei como estava o “Ney”. “Está bem! Me disse que voltará a jogar logo.”. “Que bom!”… Pedi uma dúzia e meia, ganhei um “choro”. Passei por uma viela que moradores fazem de depósito de lixo e fiquei penalizado do guarda-chuva jogado sobre o entulho. O antigo protetor das intempéries deixou de cumprir sua função. Agora inutilizado, me solidarizei com seu destino de coisa morta para o mundo.  

Comprei pastéis. Costumava me divertir com a ideia de ser um caçador dos primeiros grupamentos humanos a buscar o alimento para matar a fome da família – atum, carne, camarão e palmito. Caldo de cana – meio litro. Enquanto caminhava de volta para asa, pensei em Katie Bouman, que liderou o desenvolvimento do algoritmo que possibilitou reconstruir o registro fotográfico de um buraco negro a milhões de anos-luz do pontinho donde estamos. Visão de nosso passado e nosso futuro. Início e fim. E o sorriso tímido da jovem cientista.

Em casa, enquanto as meninas latiam para os passantes na rua, por pura diversão,  li e vi repercussões do incêndio na Catedral de Notre Dame e imaginei o Corcunda saltando de gárgula em gárgula até ser finalmente alcançado e subjugado pelas chamas que se erguiam até os céus de Paris – a cidade-luz a queimar. Tristeza demonstrada por tanta gente, menos pelo músico Rosa, dias antes despetalado 80 vezes.

Ao atravessar o quintal, uma lagartixa caiu à minha frente. Olhei para o alto e especulei de onde teria vindo – se da varanda ou da mexeriqueira. Eu a peguei delicadamente e estranhei que não relutasse. Parecia estar com o corpo íntegro, mas a queda fora grande. Lembrei-me de Dostoiévski e Nietzsche. Sobre qual queda se enquadraria aquele caso – se fora atraída ou tornara-se o próprio abismo quando o avistou.

De qualquer forma, sob a regência das leis físicas, somos sempre atraídos para o chão ou o fundo. Caminhamos na beira do precipício, a nos equilibrarmos entre o desejo de perdermos o equilíbrio ou continuarmos a percorrê-lo. Deixei o pequeno sáurio dentro de um pequeno vaso. Esqueci de voltar a vê-lo. Seu destino físico imediato me é desconhecido. No entanto, sua imagem, assim como a do buraco negro, estará eternizada enquanto a eternidade existir…