BEDA / A Coisa Sampiana*

Em minhas incursões por São Paulo, eu não deixo de buscar, como perscrutador de nossos escombros e edificações, a “coisa sampiana”. Tento encontrar satisfação na descoberta do concreto no movediço e substância no transitório, feição da nossa cidade, tal qual a série das nuvens clicadas sobre ela. Ou do achado da beleza inesperada nas intervenções dos “spray-muralistas”, ou do uso da cor desbragada em rebeldia à uniformização na composição acidentada-acinzentada de nossos prédios, ou do negativo do negativo, uma nova versão do avesso do avesso do avesso. Ou até das pessoas desta cidade, expressão que são “do isolamento, do anonimato, do individual, do desértico, e, sobretudo, do formigueiro onde ninguém se considera formiga”.

Bendigo intervenções sobre o concreto e vejo com satisfação artistas que desenvolvem obras que ganham autonomia e passam a pertencer ao olhar de muitos, sendo partilhado e compartilhado – dor ou prazer que só o tempo dará a devida proporção e viés. Quantas vezes bendizemos ou amaldiçoamos uma ação do passado que no momento em que foi praticada não pareceu guardar tantas expectativas assim?

Quando alguém registra uma imagem, espera ter capturado o que viu e apreender a essência do que quer mostrar. Mas eis que a interferência da luz ou da iluminação artificial, do ângulo e da angulação, da mão e da manipulação, dos olhos e do olhar intercedem para inventar alguma coisa para além (ou exagerar) e para aquém (ou precisar) do que queria. Mesmo quando tentamos controlar os parâmetros e o entorno de sua produção, a obra pode fugir ao controle e assumir uma personalidade estranha ao autor e acabar apresentando uma proposição inesperada – uma criação rebelde ao criador.

Já aludi a essa característica “frankesteiniana” de algumas de minhas fotos ou escritos, como poderá ser de qualquer arte-artifício. Digo expressamente que a “coisa“, quando ganha vida, feito o ser criado pelo Doutor Frankenstein ou “O Moderno Prometeu” (como no título original do livro de Mary Shelley) pode não ser compreendida, mas para quem conhece a sua essência, é amada. O fato é que algumas imagens me impressionam pelo ocasional acontecimento. Porém, como o Prometeu original, por vezes traz luz a um tema querido para mim, o amor pelo monstro que coletivamente criamos – a cidade de São Paulo.

Compulsoriamente, o fotógrafo rebate o olhar sobre muros, paredes, casas, edifícios inteiros ou arruinados, becos e demais escaninhos da vida, mesmo quando não vemos o homem atuando, em cena. No entanto, naquele lugar, ele já interferiu. E outro homem interferirá, registrando-o. E outras pessoas interferirão, ao observar o registro. E a “criatura” principiará a mover-se. E nos movemos com ela. Através do olhar, caminhamos para todo o canto desta cidade multifacetada, apreciando o feio, o bom e o mau de seu espírito de concreto.

A cada registro que faço, cresce o meu interesse por ver mais do que é produzido pelas ações humanas, configurando uma busca na tentativa de desvendar o meu próprio sentimento, a noção de como vivo e do lugar em que vivo. A cada postagem, irrompe o desejo de intervir na criação, implantando um pedaço de mim na cria. Logo, vejo surgir palavrinhas intrometidas, que autonomamente perfilavam-se umas atrás outras, a construir sentenças independentes as quais entrego para talvez nunca mais voltar a ler desvinculadas daquela imagem, abandonadas de mim. Contudo, nem sempre intervenho. Mesmo adicto, abstenho-me de comentar sempre e apenas registro o meu gostar, esperando que outras pessoas entrem com as suas apreciações.

Porventura, quando alguma imagem se oferece a mim clemente, sou instado a comê-la e a regurgitá-la comentada. E passo a me sentir alimentado, para apenas aguardar que seja ofertada a próxima refeição. Não é incongruente essa condição mutante da obra composta de pedaços de corpos redivivos que passe a ser uma ótima refeição d’alma. Faz parte de sua existência icônica, mas nunca lacônica, antes, repercussiva, em ondas concêntricas a partir do momento que é generosamente arremessada ao lago virtual. Não sei se essa interferência pública desmensura ou desvirtua o caminho que as pessoas percorrem. Porém, talvez nada disso tenha importância, assim como a brisa morna que passeia entre os edifícios climatizados.

*Baseado em texto original de 2012

Participam do BEDA:

Mariana Gouveia / 

Lunna Guedes / 

Suzana Martins /

Darlene Regina /

Roseli Pedroso

Caminhando Pelo Passado Presente*

Caminhando II
Ontem, fui procurar um produto na tradicional Rua Florêncio de Abreu onde, há alguns anos, podíamos encontrar os mais diversos itens relativos a equipamentos e ferramentas das mais diversas ordens. Já sabia que não poderia mais contar com a Casa Thomaz, logo ali no número 20, que me encantava pela discrepância da fachada antiga, a conter os mais modernos aparelhos e utensílios para o campo e a cidade. A crise (no sentido do que “crise” significa originalmente – desenvolvimento para pior ou melhor), havia feito mais uma vítima. No entanto, ao caminhar em direção aos números mais altos da Florêncio, percebi que outras lojas do mesmo segmento haviam deixado a região, substituídas por galerias com produtos de uso imediato e descartáveis, tal qual as lojas da 25 de Março, próxima dali. Depois de fazer a minha pesquisa, sem encontrar o que pretendia, decidi retornar ao Largo de São Bento.
Caminhando III
Sendo uma rua antiga, já havia fotografado algumas das construções que resistiram ao tempo, dei preferências a alguns detalhes e logo o meu olhar foi atraído para uma delas, uma das mais antigas e mal preservadas. Na lateral, percebi que haviam aberto um estacionamento. Ao chegar mais perto, observei as janelas e a entrada da parte de baixo da casa. Suspeitei do que se tratava. Mesmo sem carro, entrei pelo portão. Um homem assomou à entrada e perguntou o que queria. Respondi que estava encantado com a construção e que gostaria, caso permitisse, fotografá-la externamente. Creio que o homem já estivesse acostumado com a visita de esquisitos a demostrarem emoção, talvez incompreensível para ele e me deixou a vontade. Para ele, era algo que não lhe estapeasse a cara de forma tão contundente.
Caminhando IV
Perguntei àquele senhor, de aparência rude, se sabia o ano de construção da propriedade. Ao contrário do que eu esperava, sabia e me informou ̶ 1864. Quase a gaguejar, apontei para o porão e perguntei: “Então, aqui era a…”. Sem me deixar completar a frase, disse: “Sim! A senzala!”… “Ela parece ter um pé direito mais alto do que as senzalas normais…”… “Era bem mais baixa! O nível do chão foi escavado.”… E completou: “Era de teto baixo para que o escravo andasse curvado. Servia para quebrar sua resistência.”… Emudeci, mesmo já conhecendo esse usual procedimento da escravatura. Tentei fazer que não percebesse a minha comoção. Perguntei se poderia entrar para fotografar o interior. Retorquiu: “Rapidinho, tá?”… Agradeci e adentrei…
Caminhando VI
Não fui um bom repórter fotográfico. Estava mais comovido do que esperava. Tem acontecido cada vez mais. No Facebook, para não colocar o rostinho de choro, tenho respondido com a do espanto às postagens dos amigos. Ou talvez o peso do teto de grossa madeira ou a submissão das pesadas colunas ou o ar desconsolado que pairava no ambiente (ou tudo isso) tivessem me afetado de tal maneira que fiquei quase paralisado. O meu peito se encheu de reverente respeito por todas as histórias vividas ali… Logo depois de sair, comecei a refletir sobre o sentido de tanto assombro. Chegado ao Largo do Mosteiro de São Bento, a menos de cem metros do casarão, vislumbrei a grandiosidade física de São Paulo e percebi a eterna contradição de nossas vidas, que vivemos sobre os escombros de antigas estruturas demolidas e vultos sem vida.
Caminhando VII
Da mesma maneira que muitos de seus participantes viveram a palavra de Cristo, a Igreja emaranhou-se na incoerência de crescer junto à opressão. Paralelamente à cidade, se desenvolveu com a ajuda do sangue derramado por seres escravizados, com a submissão de corpos de homens e mulheres, com o jugo humilhante das gentes. A bandeira paulista, no alto do edifício mais alto, tremula sobranceira, desde sempre indiferente a tanto horror. Enquanto, as estátuas passeiam impassíveis por nossas mentes, as pedras gritam tão eloquentemente quanto podem, mas passado nem tanto tempo assim, as suas vozes ficam cada vez mais inaudíveis para a maioria de nós…
Caminhando VIII
Texto de 2016*

BEDA / Scenarium / Projeto Fotográfico 6 On 6 / Monocromático

É muito comum que eu olhe para o alto. As nuvens, as busco como se fosse um mago a prefigurar em suas formas agouros de desgraças ou presságios de boas novas. Mas não infiro nada. Apenas sou apaixonado pelas transições dos vapores d’água de elefantes para personagens históricos, baleias para dragões. Quando as nuvens escurecem – eventual prenúncio de tempestade – raios podem vir a riscar o firmamento-campo-de-batalha da Natureza. No entanto, a abóboda sob a qual caminhamos, também poderá surgir em monocromático azul celeste, de indecente nudez, como esta tela que registrei em um março ainda incrédulo da borrasca pela qual passaríamos adiante.

Beda 6 On 6 - A
Azul celeste

 

Além do céu, busco o chão. Caminhante da metrópole, o cinza impera nas vias ou leitos carroçáveis (termo advindo dos tempos das carroças) pelos quais passo. Sou pedestre e onde moro costumamos caminhar a pé pelas rotas dos automóveis. É uma tradição que conheço desde que surgiu o primeiro asfalto no bairro. O rio cinzento só não é totalmente monocromático porque buracos surgem recorrentemente. Poucos metros se afiguram tão perfeitos como o que mostro aqui.

Beda 6 On 6 - B
Cinza asfalto

 

Para quebrar um pouco a monotonia das portas metálicas, uma loja da Praia Grande, cidade onde fiquei isolado uma parte da Quarentena, decidiu chamar a atenção com um lilás chamativo que apenas foi vislumbrado tão fulgurante porque estava fechada. Era o início da restrição no funcionamento de pontos comerciais e empresas. Normalmente, o belo campo de lavandas metálico ficaria menos expressivo se estivesse recolhido à luz do dia.

Beda 6 On 6 - C
Lilás lavanda

 

No bairro de Cidade Ocian, a prefeitura da Praia Grande pavimentou as ruas centrais com tijolinhos vermelhos. Ao som de “GoodbyeYellow Brick Road” na cabeça, viajei na possibilidade de ver Dorothy, com Totó ao seu lado a caminhar junto ao Leão, o Homem de Lata e o Espantalho. Ela caminhava entoando “Over The Rainbow” a caminho do mar, em direção ao Netuno e seu tridente. Uma faixa de luz do sol, por um breve instante, atendeu à imaginação do garoto que retornou ao lugar em que foi mais feliz.

Beda 6 On 6 - D
Vermelho tijolinho

 

Ouvi várias vezes o termo “verde de raiva”. Para mim, se há verde, há esperança. Desejo firmemente que o verde um dia se espalhe por nossos solos a perder de vista. Quando a vingança do verde prevalecer, talvez tenhamos alguma chance de sobrevivermos a nós mesmos.

Beda 6 On 6 - E
Verde esperança

 

A ausência de cor, também é uma cor. Ao contrário do branco – síntese de todas as cores – sem o campo escuro que se estende sobre nós, à noite, não poderíamos distinguir as luzes das estrelas, a Lua ou outros planetas. A escuridão parece esconder segredos e nos impulsiona a criar seres fantásticos onde somente imperam nossos fantasmas. O preto é paz…

Beda 6 On 6 - F
Preto paz

 

Ale Helga — Darlene Regina — Lucas Buchinger
Mariana GouveiaLunna Guedes

Beda Scenarium

 

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Por Onde Andei…

“Por onde andei
Enquanto você me procurava?
E o que eu te dei?
Foi muito pouco ou quase nada…” (Nando Reis)

6O6-20-1

Ano viçoso, de novo que é, em seu sexto amanhecer – Dia de Reis – me fez querer falar por onde andei nestes últimos tempos. Lembro que era comum iniciarmos o ano letivo com redações a discorrer sobre o que havíamos feito durante as férias. Naqueles anos, restávamos rememorar eventuais idas às casas dos tios ou descidas à Praia Grande, onde minha avó paterna tinha uma casa. Nessas viagens rumo à praia, comecei a desenvolver um relacionamento íntimo com o mar. Mesmo que, por algumas horas, em intervalo de trabalho em Caraguatatuba, no último dia de 2019, tive um encontro com as águas salgadas do tempo. Mergulhei em mim…

6O6-20-2

Passei o Natal com os familiares da Tânia, em Arrozal, Distrito de Piraí-RJ. Desde que comecei a visitá-la, mudou bastante – ampliou o número de residências e moradores – mas não deixou de apresentar características de Interior – pessoas que se cumprimentam na rua, mesmo sem se conhecerem, casario antigo e movimento muito menor do que em qualquer bairro paulistano. No entanto está cada vez mais tornando-se uma extensão do Rio e seus problemas. Ainda resta quem adorne seus jardins de flores e luzes, observáveis através de muros baixos.

6O6-20-3

Fiz uma caminhada por Arrozal, a revisitar pontos que não via há três anos. Busquei novos ângulos, tentando encontrar referências perdidas na memória do lugar, como se buscasse seu espírito antigo. A cada lugar, me ausentava do presente e tateava as paredes desbotadas para ouvir histórias que me contavam. Passei frente ao portal da Igreja de São João Baptista e, respeitosamente não entrei com os sapatos sujos de meus preconceitos e descrença. Apenas apontei a câmera do celular para registrar a simplicidade do altar. Quando fui postar a foto, divisei a presença de uma fiel, nos bancos à esquerda. A nave, aparentemente vazia, estava plena da verdadeira comunhão de quem crê e ora…

6O6-20-4

No segundo dia de caminhada, logo cedo, tive a companhia de um jovem cachorro que se juntou a mim quando passei pela praça central. Não era por minha causa, mas pela Bethânia. Vim a descobrir que, mesmo castrada, ela ainda pode liberar o odor que atrai os machos da sua espécie para o acasalamento. Ela estava irritada com o assédio. E o tipo não ousava se aproximar tanto, não apenas por mim, mas também pela rejeição da donzela. Em uma das ruas, me detive uns dez minutos. Observei um belo cavalo que se alimentava do capim do terreno baldio. Ao me aproximar do gradil, Pi (o chamei assim devido ao símbolo que carregava no corpo) também se aproximou de mim. Não demonstrou medo e aceitou meus afagos em sua majestosa cabeça. Em tempo, eu não monto. Certa ocasião, tirei uma foto em cima de um cavalo manso, no qual as crianças subiam como se fosse o meu antigo cavalo de vassoura dos tempos pueris de cowboy. Depois do registro, logo que pude, desapeei. Terminada a troca de olhares e palavras mudas com Pi, voltei à praça, na tentativa de me livrar do acompanhante indesejado. Deu certo. Ao perceber que estava em um lugar com cheiros familiares, ficou a observar por um tempo nos afastarmos, como a decidir se deveria correr atrás de seu amor de verão ou não. Voltou o dorso e se foi.

6O6-20-5

No último domingo de 2019, fomos, Tânia, Romy, Niff (um amigo) e eu, ao Bar Estadão, típico ponto culinário da cidade. Aberto 24 horas por dia, serve ao povo paulistano desde 1968, com movimento assíduo de boêmios, músicos e trabalhadores da noite e do dia – de empresários a empregados, em ambiente democrático. Estacionamos o carro em uma rua próxima e caminhamos através de uma feira livre em pleno Centrão. Estava no final do expediente. A turma da xepa se fazia presente, assim como os que estavam simplesmente atrasados. A aparente discrepância entre as tradicionais barracas de frutas e legumes e o fundo recortado por espigões, apenas acrescentava charme à esta cidade que amo. Mais tarde, subi à Paulista, fechada ao trânsito de carros. As pessoas, fora de seus veículos, carregavam os mesmos erros de bom comportamento na fluidez dos seres. Muitos desconhecem o Princípio da Impenetrabilidade, amparada na chamada Lei de Newton, que ensina que “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo”.

6O6-20-6

Em minhas idas e vindas por estradas e caminhos, meu olhar passeia pelos cenários de forma mais rápida que os meus sentimentos possam objetivar. Porém, em suma, percebo crescer em mim um êxtase quase religioso pela Natureza. De horizontes a perder de vista a flores que me perfumam a imaginação; dos pássaros que voam livres na matas e montanhas, aos seres que pisam e rastejam na terra úmida ou dos que evoluem em rios e mares – tudo e todos merecem a minha reverência de coadjuvante que sou em uma jornada na qual estamos todos imersos. Que em 2020, possamos fazer crescer a consciência de unicidade e respeito à vida em todos os seus níveis. Sentimento crescente, principalmente quando parece que há grande interesse em crestar o chão e poluir as águas do planeta.

 

Também andaram por aí…

Darlene Regina — Isabelle Brum — Lucas Buchinger
Mariana Gouveia — Lunna Guedes

BEDA / Projeto Fotográfico 6 On 6 / É Noite, Tudo Se Sabe

É Noite

Durante alguns anos, dos 8 ou 9 até os 13 ou 14, eu tive um radinho de pilha japonês, com o qual ouvia programas logo de manhã e antes de dormir. Durante todos aqueles anos era um garoto auto recluso, que preferia músicas nem tão populares de Nat King Cole, Ray Charles, Frank Sinatra, Soul Music dos grupos negros americanos, além de MPB. A minha emissora favorita era a Rádio Panamericana AM, de São Paulo. Na maviosa voz de Ana Maria Penteado, a partir das 22h, tendo ao fundo o tema de ”Summer Of 42”, de Michel Legrand, era anunciado: “É noite, tudo se sabe” – frase que reverbera até hoje em minha mente. A sentença consegue dizer tanto sem revelar nada, porque não precisa. Se não sabemos, intuímos, o que é, muitas vezes, mais poderoso do que propriamente sabermos.

 

É Noite, Tudo Se Sabe (4)Muito do que se intui da noite é suscitado pelo luar. É quase sonho de leite a boiar na negritude do café adoçado de estrelas. Hora se mostra, hora se esconde por entre ramos e nuvens, vãos e desvãos de nosso lugar de observação. Há certas ocasiões que não somos nós a observá-la, mas ela a nos encontrar apartados de nós e de outros em imenso espaço vazio. Quando parece crescer, é para se fazer presente e mais próxima por piedade de nossa solidão.

 

É Noite, Tudo Se Sabe (10)

A noite é o tempo preferido para amar. A escuridão, que a muitos assusta, serve de cobertura para os amantes. Os encontros se dão após um dia inteiro de labuta, mas nada impede que ocorra na hora do almoço ou happy hour. Eu trabalho quase sempre em eventos festivos noturnos, se bem que a preparação se dê ao longo do império solar. O registro acima foi feito em São José dos Campos, onde estava a trabalho, com a visão do vale em movimento incessante de carros pela Dutra e vias vicinais. Em sugestivo lilás, um grande motel se destaca ao centro. No Brasil, motéis ganharam a conotação de lugar para encontros sexuais. Em um país de progressiva mentalidade repressora, imagino o dia em que templos como esse serão combatidos pelos defensores de templos concorrentes, aqueles que alegam professar outro tipo de amor, naturalmente a soldo. É o mercado das almas…

É Noite, Tudo Se Sabe (9)

Minha filha canina, Betânia, gosta de vigiar a vizinhança, tanto de dia quanto de noite. Seus latidos emitidos em função de quaisquer coisas que se movam ou produzam algum tipo de som, continuam ainda que a admoeste. Equilibrada em beira de laje ou na mureta, ela olha para mim, percebe que fico no mesmo lugar e volta a latir pelo puro prazer de se expressar contra a natureza do invisível. O que me resta é registrar a imagem, como faria um pai babão com as artes e artimanhas de sua criatura.

 

É noite, estrada

O negrume pelo caminho é riscado por luzes em formas variadas. Ainda que saibamos se tratar de automóveis – carros de passeio, vans e caminhões – seriam perfeitamente reconhecidos como objetos voadores-movediços não identificados, pela ilusão que causam ao passarem por nós, em qualquer sentido. O som contínuo do motor parece o de uma máquina de perpetuum mobile, monocórdico e entediante. O cansaço e o sono ajudam a produzir a sensação onírica de viagem astral. É noite, tudo se sente…

 

É Noite, Tudo Se Sabe (8)
Prédio Caetano de Campos, na Praça da República

Vivo em São Paulo. Quase não passo por algum ponto que não esteja minimamente iluminado. A luz artificial se faz de tão modo presente que sua ausência é razão de desconforto, como se faltasse algo a nos completar. Precisamos desses sóis particulares para nos identificarmos como seres. Não bastaria sabermos disso, temos que confirmar nossa condição de habitantes da pólis banhada em claridade. A noite nos pertence como tema, atrativo e contraponto – somos entes da luz emprestada e da sombra permanente. Sei disso, porque vivemos em noite eterna…