BEDA / Dama De Cinzas

Vem um dos homens e lhe ofende a natureza feminina
Silenciosamente rouba-lhe a inocência de menina
Determinado e consciente impõem-lhe a boca calada
Que quando balbucia a verdade é de pronto velada
Sofre a exclusão familiar e ainda a pecha que espezinha
De ser além de uma pequena mulher, uma mulherzinha
O decreto que apequena a moça a conduz ao descaminho
Tenta encontrar na química a sua recompensa, o carinho
Nos corpos alheios busca confirmar a dúbia fama
E passa a acreditar nos créditos de cinzenta dama
Mas como um anjo caído, sabe que pode alçar voo maior
Acima do rés do chão, além do horizonte de novo alvor
Subjuga o ódio que poderia sentir pelos machos da espécie
E ainda consegue amá-los e achar graça além da efígie
Prova-se emancipada em carne, osso, mente e espírito
Escreve a cada momento a sua história rumo ao infinito
Une-se a nós e expande o seu ser de boa influência
Confessa-se imperfeita, ainda que seja uma dama de excelência.

Foto por Jill Wellington em Pexels.com

Participam do BEDA: Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Suzana Martins / Darlene Regina / Roseli Pedroso

Projeto 52 Missivas / São Dias De Olhar Pelo Buraco Da Fechadura…

E o que vejo pelo buraco neste primeiro quarto… de século, Gaia?

Próximo a mudança das estações, mais uma invasão. Homens, tanques, mísseis, blindados, irmãos matando irmãos. Passado o primeiro mês da guerra, não há solução na linha do horizonte…

Enquanto neste quadrante, a invasão de biomas inteiros aumentam dia-a-dia desde há muitas estações com motosserras, fogo e tratores, reduzindo a cinzas no solo empobrecido ou arrancando nossas irmãs árvores de seus lugares de origem para servirem aos que se intitulam senhores de seu corpo. Mais um efeito do Patriarcado, não importando a ideologia?

O clima tem se modificado, como sabe, por nossas interferências indevidas no fluxo natural da vida. Os ciclos não se cumprem, a não ser o de guerras de tempos em tempos para lembrarmos o quanto é fátuo matar e morrer por causas delirantes e ilusórias. Enquanto isso, a ferimos inoculando veneno em suas veias-rios, agredindo os seus úteros-mares, os entulhando de lixo.

Armamos armadilhas improvisadas as quais chamamos de casas em encostas de zonas degradadas que certamente virão a ruir mais cedo ou mais tarde. Ou próximos de nascentes e mananciais de água, as degradando. Sempre achei corajosa a opção de pessoas virem a viver em zonas com possibilidade de terremotos, como os residentes da cidade de São Francisco, localizada sobre a Falha de San Andrés. No Brasil, não é opção, mas falta de…

O buraco da fechadura tem se alargado e o que era para ser reservado e preservado, é escancarado e arrancado como se fosse infindável. Sei que nosso estilo de vida causa a morte de nossos companheiros de jornada. E que esse cortejo de seres extintos nos levará à nossa própria extinção.

O que eu especulo é se conseguiremos sobrepujar nossa atração pelo abismo e pararemos para voltarmos a nos conectar na mesma vibração que seu corpo emana, quando nos sentiremos como células-filhas acolhidas em seu corpo luminoso de azul.

Gaia, até onde deixará que iremos antes que faça o que for preciso para sobreviver?…

Participam: Mariana Gouveia / Lunna Guedes

Kairós*

Em minhas caminhadas matutinas, tenho circulado pelas ruas, avenidas e vilas da minha região. Ao subir por uma das inúmeras ladeiras da típica topografia acidentada da Zona Norte de Sampa, encontrei uma loja de cabelereiros. Como era cedo, talvez abrisse mais tarde. Talvez não abrisse. Estamos em fase de restrição devido à Pandemia. O que me chamou a atenção foi o lindo nome da loja  – Kairós  – e seu significado.

Na estrutura linguística, simbólica e temporal da civilização moderna, geralmente emprega-se uma só palavra para designar a noção de Tempo. Já os gregos antigos, tinham duas palavras para o fenômeno da sua passagem: Khronos e Kairós. Enquanto o primeiro refere-se ao tempo cronológico ou sequencial (o que se mede, de natureza quantitativa), o segundo possui natureza qualitativa, o instante indeterminado no Tempo em que algo especial acontece: a experiência do momento oportuno. O termo é usado também em Teologia para determinar o “tempo de Deus” (a Eternidade)  – enquanto Khronos representaria o “tempo dos Homens“. Referência: Wikipédia.

Que se use Kairóz como nome de um “Salão de Beleza” ou Barbearia/Cabelereira é instigante quanto às possíveis interpretações. Afinal, ali se pratica uma ação que se circunscreve a algo de efeito imediato, porém efêmero. Porém, como a intenção é que alguém se apresente mais bela/belo com consequente aumento da autoestima e melhor estado de espírito  – o que poderia ser considerado tão efetivo quanto uma oração  – torna-se “divino”. Dessa forma, atende-se a experiência do momento oportuno, o Tempo de Deus, ainda que se decorra no tempo dos Homens.

O fato é que ainda que tenha sido de maneira inesperada, foi oportuno eu ter feito essa rota escolhida a esmo para lembrar que o Tempo só tem valor se o vivermos intensamente, não em quantidade improdutiva.

*Texto de Março de 2021, revisto.

Dependência*

Confesso que sou dependente… de mulher. E o sou, em muitos sentidos, incluindo, aquele associado à dependência química, mas principalmente psicológica. Sou viciado em mulher. Não me vejo sem poder ao menos vê-la em algum momento do meu dia. Obviamente, é um vício controlado, que tento restringir ao meu meio, para não despertar desarmonia.

Quando digo “ver” é na significação de observar detidamente a sua performance, o que ela mostra ou o que ela nos dá a mostrar. Essa ressalva a transforma em um ser dissimulado? Não creio. Eventualmente, “azinimigas” dirão que aquela que se exibe é uma “metida”. Mas quem de vocês, mulheres, não faz a sua apresentação diante do público sem um pingo sequer de preparação? Sempre haverá exceções à regra, mas isso também é motivador de atenção e, muitas vezes, mais profunda.

Convivo de perto com quatro mulheres que, no recesso do lar, se desarmam e exibem um lado menos precavido. No entanto, isso não as deixa menos fascinantes. A cada dia, passeio o meu aturdimento na (vã) tentativa de decifrá-las. Percebi que esse fascínio de algo a se revelar está indissociavelmente ligado ao charme (algo indistinguível) que carregam.

Sempre fui um sujeito encantado pelas mulheres, mas durante quase metade da minha vida detinha uma timidez mórbida, que me impedia de me colocar diante delas sem passar por certo descontrole. Na superfície, porém, não deixava transparecer esse medo. Relato eventualmente, em rodas de amigos, essa história. Adindo que cheguei a imaginar que fosse homossexual.

Foi uma época de prospecção interna muito elucidativa. Observava os homens e me perguntava se eu me sentia atraído por eles. Definitivamente, percebi que não. Essa busca por esclarecer minha identidade sexual apenas provou que sou um heterossexual com todas as suas deficiências. O que não impede que, de forma salutar, me permita achar alguns homens interessantes e/ou bonitos, mas nunca da maneira especial que as mulheres ou homens de personalidade feminina “percebem”. Tenho gostos que, em muitos aspectos, são parecidos com o dos Gays (palavra sensacional!). Mas a minha atração pelas mulheres é indubitavelmente feérica.

Um homem que achava bonito, com um porte que gostaria de imitar, era Rock Hudson, por exemplo. Não perdia um filme dele na Sessão da Tarde ou em outras “sessões” que passavam em outros horários. Fiquei surpreso, quando ele desenvolveu AIDS juntamente com o anúncio de que era homossexual. Nesse momento, me tornei um admirador maior ainda de sua figura. Fiquei a imaginar de onde ele teria buscado forças para continuar atuando, sem deixar revelar totalmente para o grande público a sua natureza. Em uma comédia romântica Pillow Talk, de 1959 com a sua eterna parceira nas telas, Doris “Calamity Jane” Day (a quem amava), e participação pequena e especialíssima de Nina Simone, há um jogo interessante de aparências que só alguém com muita desenvoltura mental conseguiria levar adiante sem parecer denunciador de sua identidade pessoal.

Falo dos Gays masculinos em relação às mulheres porque talvez não existam maiores admiradores de seus atributos do que eles, em que muitos imitam trejeitos ou mimetizam a aparência feminina, afora aqueles com identidades de gênero feminino levado ao extremo da transposição total. Isso, para mim, é uma vantagem desproporcional na compreensão desses seres amados.

Em resumo, pela mulher fui parido, por mulheres sou apaixonado e ficaria feliz de, um dia, morrer por elas…

*Texto de 2015

Foto por Kammeran Gonzalez-Keola em Pexels.com

Qual O Preço Do Amor?*

Nesta época do ano, em que se fala muito do amor universal, talvez seja o momento em que o desejo de estar junto a alguém nos assalta em todos os sentidos, incluindo os sentidos físicos. Carentes por um carinho, o procuramos de diversas maneiras. Esta parede fazia parte de um conjunto de pequenos prédios com cortiços, casas de prostituição e pequenos comércios que foram demolidos para dar lugar a um projeto cultural, na região da Avenida Duque de Caxias, perto da Sala São Paulo. Mais tarde descartado, atualmente a área é ocupada por um conjunto habitacional — uma ilha cercada por adictos da Cracolândia por todos os lados.

Fico a imaginar o ambiente da qual essa construção fazia parte, imerso à meia-luz, em que homens buscavam o amor oferecido de forma tão direta. Apesar de tosca (ou por isso mesmo), gosto muito da pintura. O braço da moça, de fisionomia tristonha, de cabelos longos encaracolados e peito pequeno, indica o caminho para a satisfação dos desejos mundanos de quem necessitasse de um simulacro de amor, ainda que pago…

*Texto de 2014, atualizado em 2021, à respeito de uma foto de 2011.