BEDA / Casado*

casamento mulher grávida 5 meses
eu branco ela rosa
separados pais unidos na cerimônia
espanha arrozal volta redonda
são paulo leste norte família
família meu norte
primeira filha estranha sorte
deixei trabalho cuidado constante
fiquei parado ano e meio meia-lua no sangue
da menina mais linda que já existiu
corridas repentinas hospital
queda hemoglobina intervenções cirurgias
muitas vezes vaso oclusão
quase para o coração
dor… dor… dor… dor…
dela minha nossa da mãe avós de quem ama
com dor conviver sobreviver viver
segunda filha alento
alegria gordinha sorriso banguela
espevitada indômita amada
vida que segue que siga consigo
melhorar melhor ar para respirar
muito trabalho pesado estressado
como previ ainda garoto nasce a terceira
menininha quero carninha nossa miquinha
brilhinho no olhar lindinha
estava bem mal feliz infeliz
sem saber o que quis o que diz 
corpo sofre frustração somatizado
separação coluna cervical
gastrite hemorragia intestino
minha filha em crise pareci
6 de hemoglobina quase pereço
não me importa destino
amargo ressentido anjo torto
revivo renasço outra vez luto
permanente luto
por alguns dos meus eus
engordo feito porco 105 quilos
tomo coca 2 litros
misturo achacolatado açúcar
me afogo docemente meu corpo desfigurado
em silêncio desejo partir inflado exacerbado
monstro nervoso insuportável transformado
a minha secura sedento de morte
hiperglicemia setecentos e um quarto
termino internado u.t.i. um quarto
renasço querendo transformação
antes da extrema-unção
busco melhorar emagrecido agradecido
revisitar minhas prioridades
ultrapassar minhas idades
morrer não é ruim
pior viver sem ter fim
e não saber nada de mim.

*Poema de 2021

Imagem: Foto do casal, Tânia e eu, em 2009, aos 21 anos de casamento, dois anos após a crise hiperglicêmica.

Participam: Danielle SV / Suzana Martins / Lucas Armelin / Mariana Gouveia / Roseli Peixoto / Lunna Guedes / Dose de Poesia / Claudia Leonardi / Alê Helga













O Vício E Eu

 

Não sou fumante, mas posso falar de cátedra sobre o vício de fumar, pois a minha mãe fumou até morrer. Ela começou tarde, por volta dos 36 anos, quando se encontrava exilada conosco, meus irmãos pequenos e eu, na Argentina. Sentia falta do marido, que havia voltado para o Brasil e do resto da família, muito apegada que era aos irmãos. Nunca mais parou. E, dessa forma, começou a minha saga como fumante passivo e “traficante”, já que era eu quem, no começo, comprava os maços de “Continental” sem filtro para ela. Em determinado dia, a revolução se deu. Ousadamente, para os meus doze anos, me recusei a ir comprar veneno para quem amava, resolução que mantive dali adiante. Isso não impediu que Dona Madalena continuasse com o vício.

 

Quando vieram as netas, pedi a ela que não fumasse diante das meninas e acho que cumpria a solicitação, não sem muito esforço, pois as amava muito. Por ocasião do aniversário de 1 ano da minha caçula, ela saiu da festa direto para o hospital, em decorrência de insuficiência respiratória. Depois desse susto, aparentemente, parou de fumar, pelo menos por algum tempo. O seu aspecto físico e mental melhorou a olhos vistos. No entanto, soubemos depois, voltou a fumar escondida de todos, com a conivência da auxiliar doméstica, sua cúmplice e parceira no fumo. Ao menos, parecia ter diminuído o consumo, já que não sentíamos tanto o típico odor de nicotina no seu vasto cabelo. Ela escondia os cigarros com tanta maestria que quase nunca os encontrávamos. Era danada a minha velha mãe…

 

Um dia suas condições gerais não puderam ser revertidas, principalmente porque os pulmões não suportaram suprir a demanda extra de oxigênio exigida. Nessa época, eu era bem mais condescendente com o seu vício, não por aceitá-lo, mas por compreendê-lo. Sabia que o apego ao cigarro, prioritariamente na mulher, é muito mais difícil de ser revertido, por sua própria constituição fisiológica. E também porque, três anos antes de seu passamento, eu mesmo quase morri por causa do meu próprio vício – por açúcar – o que me levou a desenvolver Diabetes, a ponto de chegar a um índice de 715 mg/dl de glicemia e consequente crise.

 

Fiquei internado por uma semana, e saí do hospital disposto a mudar radicalmente a conduta, entendendo melhor o quanto o vício desrespeita nosso conhecimento daquilo que nos faz mal. Ao contrário, fazemos o perigoso “jogo do auto”. Primeiro, a auto enganação, propagando que podemos parar quando quisermos. Depois, passamos a desculpar as nossas deficiências com a autoindulgência, encontrando sempre uma justificativa e jogando a responsabilidade nos outros ou nas circunstâncias. Logo, chega a fase da autocomiseração por nossa lamentável condição de viciados e, finalmente, revoltados com os inimigos que nos apontam o vício, chegamos à autossuficiência social. Não nos importamos mais com a opinião dos que nos cercam e atacamos quem “nos ataca” ou ataca o nosso motivo propulsor do  prazer. É muito comum um fumante se sentir extremamente ofendido quando se fala do malefício do cigarro. É como se estivessem falando mal da pessoa amada.

 

E, então, de uma hora para outra, somos colocados diante de nossa mortalidade. Alguns nem sentem tanto medo de morrer, mas percebem o amor que algumas pessoas lhe dedicam e, por elas, decidem: eu vou parar! Um pouco antes de eu chegar à fase mais aguda da doença que desenvolvi e motivou a minha internação, no final de outubro de 2007, morreu Paulo Autran, no dia 12. Eu ficara, então, impressionado com o relato de Karin Rodrigues, então esposa do grandíssimo ator, quando disse que o último pedido dele foi fumar um cigarro, o mesmo que ocasionou o desenvolvimento do câncer que o vitimou. Pensei comigo mesmo que, como ele, eu deveria parar de tomar refrigerantes, comer doces, de acrescentar açúcar ao achocolatados que consumia, entre outros atentados ao meu pâncreas. Talvez já estivesse sentindo o que poderia ocorrer, caso continuasse agindo da maneira que agia, quase como se quisesse me matar. Rapidamente, os sintomas da hiperglicemia se fizeram presentes – diminuição da acuidade visual, a boca extremamente seca, o cansaço, a micção constante e a extrema irritabilidade, entre outros sintomas.

 

Minha esposa chegou a me dizer, posteriormente, que não estava mais aguentando ficar ao meu lado. Pior, anunciou para minha mãe que se separaria de mim caso eu continuasse a agir da maneira que estava agindo, já que aquele comportamento parecia revelar um permanente traço de personalidade. Na verdade, estava passando por um processo chamado de Cetoacidose Diabética, que proporciona tal desequilíbrio metabólico, cuja a exacerbada irritabilidade é uma das funestas consequências. Aliás, a participação da Tânia nesse momento foi decisiva pois ela percebeu que os sintomas se enquadravam no quadro de Diabetes, a tempo de me levar para o hospital e salvar a minha vida.

 

Anos depois, ao trabalhar num festejo de “bodas de vinho” (70 anos de casamento), encontrei uma pessoa com o sobrenome Autran. Perguntei se era parente do grande ator, que ela confirmou. Durante a conversa tomei coragem de perguntar sobre a circunstância incrível relacionada à sua morte que ainda reverberava em mim devido à sincronicidade dos fatos. Ela abertamente relatou que o câncer em Paulo Autran estava tão avançado que o diagnóstico estava fechado. Não havia mais o que fazer. Ele sabia que iria morrer a qualquer momento e o seu último desejo foi o de morrer unido ao seu companheiro mais íntimo – o cigarro…

BEDA| Penélope

Penélope

Há dois meses, por volta das 5 horas da manhã, fui acordado pela Tânia. Disse que a Penélope estava respirando com dificuldade e sequer relutou aceitar o uso da bombinha que detestava. Acordei sem saber direito o que ela falava e respondi algo incompreensível até para mim. Mais desperto, veio à mente os compromissos que teria no decorrer do dia.

Meio contrariado por aquele imprevisto-previsto – aguardado para qualquer momento – senti-me mal pela resolução em não tornar prioridade obter a habilitação de motorista. Como a Tânia teria plantão no hospital, chamei o meu irmão para nos levar ao veterinário. Acostumados a dormir tarde, é penoso para nós levantarmos àquele horário. Principalmente, para o Humberto.

Paciente, ele veio ao nosso encontro e nos levou até Santana. Chegamos às 7 horas e a recepção do hospital veterinário já estava lotada. Pessoas, cães e gatos de todas as raças (não percebi outras espécies), ocupavam os quadrantes lado a lado, a maior parte com os olhares assustados – animais e humanos. Falei com o rapaz da recepção e citei o caso da Penélope, o declarando como emergência.

A dificuldade respiratória era audível para todos e logo ela foi encaminhada para uma o corredor interno, antes das salas de procedimentos. Eu a coloquei na maca. Foi trazido um tanque de oxigênio, com uma cânula na ponta. Eu deveria ficar segurando o apetrecho em direção ao focinho da amiga até sermos atendidos.

Enquanto isso, pude acompanhar o vai e vem de enfermeiros, médicos veterinários e humanos com os seus bichos, bichões e bichinhos – de chihuahuas a São Bernardos, de siameses à angorás.  Todos, independentemente dos seus tamanhos, ofereciam toda atenção amorosa possível que alguém pode oferecer a “alguém”. Naquela circunstância e momento, muito mais frágeis e entregues que o normal. Se pudesse adivinhar, diria que muitos dos bichos apenas “queriam” permanecer vivos por pena de seus cuidadores. Seus olhares eram de quem gostariam de dormir-esquecer a dor… para sempre. Inesperadamente, eu me senti melhor do que normalmente em fazer parte da espécie humana.

Sonolento, passadas quase quatro horas, finalmente perguntei quando seríamos atendidos. “Ela está na esteira…”. Imaginei que “esteira” seria fila. “Ela vem da retirada de um tumor no útero. Não seria interessante realizar ao menos uma radiografia?”… “Não! O aparelho atende animais até 15Kg, apenas. Devo ter arregalado os olhos e perguntei porque não haviam me avisado antes. A Penélope, uma labradora de 35Kg, estava acima do limite. Perguntei qual seria a previsão de atendimento. Disseram que não sabiam.

Decidi retirá-la da “esteira”. Avisei que sairia. Senti que ela estava incomodada, a respiração havia melhorado com o ar que dirigia ao seu nariz. Queria levá-la para outro lugar. Logo que saí, a Penélope esvaziou a bexiga no meio-fio da rua, antes de entrar no carro. Liguei para as clínicas que poderiam fazer a radiografia. Antes, deveria passar por triagem com um clínico, com previsão incerta de atendimento. Com a pequena melhora, voltei para casa. Quando voltasse ao hospital no dia seguinte, queria levar a radiografia feita, chegando uma ou duas horas mais cedo.

No dia seguinte, a Tânia teve a ideia de chamar uma veterinária que atende à domicílio, já conhecida. Diante dos resultados dos exames feitos, verificou-se que ela estava bem, de modo geral. Era estranho que ela estivesse respirando tão mal. Talvez fosse ansiedade. Não deixei de me surpreender por essa condição tão humana. Prescritas as medicações, progressivamente o estado geral dela melhorou. Afora a dificuldade da senhora de 14 anos em andar, ela está bem. Não admite ficar sozinha de nenhuma maneira. Começa a latir quando estamos em um cômodo distante dela. Desloca-se dolorosamente o caminho quase cego em nossa direção.

Seu apetite para comer e para viver é incrível. Sabe lidar com as suas limitações e tentamos lhe oferecer o máximo de conforto possível. Se eu gosto um pouco mais de gente, é porque ela gosta de gente. Sempre é afetuosa, indistintamente do caráter de quem dela se aproxima. Sinto que tem muito mais a me ensinar do que eu possa retribuir em atenção e amor. A cada dia, que poderá ser o último, ganha maior valor e significado a sua permanência. Até que se torne saudade – eterna presença na ausência.

Participam do BEDA:  Claudia — Fernanda — Hanna — Lunna — Mari