#Blogvember / Homem De Lata

Coração transplantado procurando resquícios do que já foi humano (Lua Souza)

Escultura de Paulo Da Luz (Paizdalu)

Comecei a ficar cansado por qualquer esforço que fazia. Frequentemente, o ar me faltava. Com os irmãos fora do País, separado da Sônia há alguns meses, meus filhos longe de mim, já casados, não tinha ninguém com quem me queixar – meu passatempo favorito. Devido ao meu típico mal humor, nem meus amigos de copo me aguentavam mais.

Já aposentado, eu me restringia a torcer por meu time em jogos na TV. Antes, uma das minhas poucas diversões era ir ao estádio para xingar Deus e o mundo – do juiz aos jogadores, passando pelo técnico. No meu antigo trabalho, no escritório da transportadora, era conhecido pelo meu rigor no trato dos caminhoneiros, que eu julgava complacentes e indisciplinados. Para faltarem à lida, era sempre algum problema familiar, um filho doente, a mãe que morria, uma esposa que arranjava outro pelas seguidas ausências do marido…

Sônia, nesse aspecto, teve bastante paciência.  Aguentou o quando pode a minha animosidade. Quando me aposentei, ela disse que não suportaria conviver cotidianamente comigo em casa. Decidiu voltar para a casa da mãe, que estava doente, para cuidar dela. Aproveitou para pedir separação. Agora esse cansaço, dores nas costas, respiração ofegante. Criei coragem, pedi um transporte e me dirigi ao hospital do bairro.

Fragilizado, mal tinha forças para reclamar do atendimento, mesmo porque fui bem atendido. Os enfermeiros, atentos, ouviram as minhas queixas. Apesar de relutar, fui colocado numa cadeira de rodas e levado para ser atendido por um médico. Solicitado um eletrocardiograma, além da anamnese médica, verificou-se que eu estava prestes a ter um infarto. Mais tarde, com exames mais apurados, me foi revelado que o velho coração não duraria muito mais tempo funcionando. Para sobreviver, teria que fazer um transplante.

Ainda que não quisesse, avisei à Sônia do meu estado. A minha ex-esposa prontamente chamou a sua irmã para substituí-la no cuidado da mãe e voltou para São Paulo. Foi ao hospital e me encontrou alquebrado de tal maneira que quase chorou. Quando chegou, me abraçou, me chamando de “meu turrão”.

Pedi desculpas por tê-la feito deixar a mãe doente. E por demonstrar tanta aspereza no nosso casamento. Que busquei ser um pai sempre presente e um marido que trabalhou duro para trazer conforto à família. Que tinha sorte por tê-la conhecido e dela ter me aceitado como companheiro.

— Para de falar, como se fosse morrer hoje. Antes de entrar, conversei com o Dr. Ângelo. Você ainda vai me perturbar bastante antes de partir desta para melhor… Vai precisar se cuidar para manter o seu coração batendo enquanto espera um coração novo. Vou ficar de olho!

Eu estava com saudade dessa maneira dela falar comigo. Sincera e direta. Quando começamos a namorar, disse que eu não era um homem bonito, mas também não era feio. Que beijava bem. Mas era um sujeito turrão. Eu respondi que tive que assumir a casa bem novo, depois da morte do meu pai. Que havia começado a trabalhar cedo. Sem chance para me sensibilizar.

Como começamos a namorar adolescentes, a Sônia me acompanhou no auxílio à minha mãe. Deixei de estudar, mas estimulei os meus irmãos a se formarem na faculdade. Hoje, são homens de sucesso. Assim como os nossos filhos. Talvez tenha custado uma convivência mais prazerosa com a família. É bem possível que a minha atitude tenha sobrecarregado o meu coração, que acabou por retesar as suas fibras.

Com o coração transplantado, procurarei buscar resquícios do que já foi mais humano em mim… Tentar reencontrar o menino que chegou a ser feliz antes de papai se ir pelas próprias mãos. Quem sabe tenha a chance de uma nova vida? A oportunidade em que eu não seja mais chamado de Homem de Lata.

Participam: Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Suzana Martins

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