22 / 08 / 2025 / BEDA / O Outro*

A apresentação pública que faço de mim é a de alguém que se identifica com a defesa do Humanismo voltado para a transcendência, visando a proteção do ecossistema e o respeito aos outros seres que convivem conosco na Biosfera. Fora dessa perspectiva, quem defende ideias diferentes me ofende profundamente. Cheguei a me imaginar como um antípoda ao que preconizei acima como exercício de compreensão daquele que se me opõe. Em tese, conseguiria fazê-lo. Eu os encontro em meu círculo familiar, entre colegas de trabalho e nas minhas redes sociais.

Estabeleci como elemento de desordem o “outro”. Conquanto o meu ponto elementar de desequilíbrio seja eu mesmo, quis alcançar àquele que me desorganiza externamente. Dizer simplesmente que “o inferno são os outros” não seria suficiente. Eu me pus a identificar quais falas e atitudes do outro quebram a minha homeostase. Ainda que passeasse por zonas sombrias do meu ser, ao olhar para o abismo tenho certeza de que voltaria à minha posição inicial. Suposição incrível para alguém que refuta por entendê-las como indício de loucura.

Seria mais fácil criar uma personagem que se colocasse como porta-bandeira do obscurantismo, do desconhecimento, da misoginia, da homofobia e do racismo; que fosse elitista, antidemocrática e entendesse o poder econômico como hegemônico, colocando-o acima da necessidade de atendimento às demandas sociais. Mas na vida real essa personagem já existe. Na verdade, foi eleita como representante incondicional de pelo menos um terço da população — que se amolda ao que seja conveniente no momento ou que simplesmente acompanha a manada — do país onde nasci e vivo. Percebi que defender o indefensável seria impossível. Ir contra as diretrizes que considero o melhor para a maioria das pessoas e para mim, me paralisou.

Tenho frescas em meus ouvidos as últimas notícias do atual desgoverno — o fogo a se alastrar por grande parte do território brasileiro; a mortandade pela Covid19 de centena de milhar das pessoas menos protegidas pelo Estado; o desmonte da estrutura que manteve os índices sociais razoavelmente estáveis nos últimos anos, a exemplo do SUS e dos projetos de inclusão; o ataque direto à cultura, como o feito à Cinemateca Brasileira — onde todos os funcionários especializados na preservação do importante acervo audiovisual nacional foram demitidos. Como é que conseguiria me colocar no lugar de alguém que defende práticas tão perniciosas, de viés fascista; que promulga por decreto o genocídio do brasileiro comum e o etnocídio que solapa a identidade cultural indígena?

Quando surgiu o movimento de extrema direita que assumiu o comando administrativo do Brasil, eu me surpreendi com a quantidade de defensores dessa visão de mundo que se opunha brutalmente à minha. Artistas com os quais trabalhava (principalmente, músicos) não deveriam se colocar em sentido inverso ao que era propagado pelo candidato? Assumiriam a faceta que propunha retrocessos políticos e agitariam bandeiras retrógradas em termos sociais?

Ser esse outro não é apenas olhar para o abismo, mas mergulhar na lama primordial da qual foi gerada a vida — eu me tornaria uma ameba. Não teria de onde retornar, a não ser depois de milhões de anos de evolução. Prefiro morrer para esta vida a reviver por inteiro o drama de nosso desenvolvimento: voltar a ser um primata que lutará pela vida na floresta; até vir a encontrar o monólito que me tornará o primeiro ser humano; inventar os instrumentos de sobrevivência da espécie; participar da luta pelos espaços; instaurar grupos homogêneos como plataforma de expressão coletiva; desenvolver civilizações; guerrear contra os inimigos; trucidar oposições; formar países; escravizar povos e estabelecer ideologias hegemônicas como forma de dominação do outro…

Será que não podemos aprender com o que já vivemos em nossa História e deixarmos de praticar ações perniciosas contra nós mesmos e contra os outros seres com os quais coabitamos? Ou estamos condenados a reviver todos os dias mesmos dolorosos ciclos até o final dos tempos — um déjà vu em moto-contínuo?

Quase peço ao sol que antecipe em bilhões de anos a explosão que extinguirá os planetas ao seu redor, incluindo a nossa pequenina Terra. Porém, sei que é egoísmo da minha parte. Quem sabe as novas gerações modifiquem o nosso percurso atual e transformem Gaia em um planeta redentor?

*Texto escrito em Agosto de 2020, durante o segundo ano de desgoverno do Ignominioso Miliciano.

Jogo de Amarelinha

Há algum tempo, fiquei impressionado com uma experiência feita com porquinhos, vista pela televisão. Recém-nascidos, um grupo deles foi separado da mãe. Um outro, permaneceu com a genitora, alimentado e cuidado por ela. Os dois grupos, colocados em situações iguais, passavam por etapas semelhantes, como ultrapassar empecilhos, obtendo resultados bem diferentes. Os filhotes que ficaram com a mãe eram mais atilados, corajosos, venciam os obstáculos com coragem e perspicácia. Os apartados eram tímidos, indecisos ou até temerosos em enfrentar situações inusitadas.

Verificou-se que para estes porquinhos, seus desempenhos e desenvolvimentos individuais foram tolhidos pela separação e cuidado maternal. Entre chocado e triste, raciocinei que essa experiência não precisaria ser realizada com os pobres porquinhos. Eu via de perto a realidade a me estapear diariamente na Periferia (mas não apenas) que vivenciava o cotidiano com as famílias incompletas e dispersas. Eu, mesmo, ainda que tivesse uma mãe quase onipresente (o que nem sempre ajudava), tinha um pai, a maior parte do tempo, ausente. O sentimento que tinha por ele vivia no limite entre o temor e a admiração.

À época, acreditava que nada fosse tão determinista. Supunha que a parte racional do ser humano nos ajudaria a suplantar a falta de atenção e do cuidado na infância. Eu era bem novo, daqueles que acreditavam no País do Futuro, na raça miscigenada e superior que formaríamos, nós, cidadãos brasileiros ou quem aqui vivesse – bem-educados, evoluídos nas questões sociais – riqueza bem dividida, fome superada, assistência na saúde, oportunidades de trabalho. Ainda cria que o Capitalismo trazia dentro de si a semente que o destruiria. Que sobrevive, reproduzindo em série mentes amestradas que lutam pelo senhor invisível cultuado como se fosse o próprio Deus.

Viajando para o Futuro, ficava imaginando como passaríamos o tempo vago que teríamos. Boa parte, eu utilizaria para o lazer, para a prática esportiva e em atividades culturais. Imaginava que todos dividiríamos as funções profissionais, o que levaria ao pleno emprego, com salários e economia equilibrados. As tarefas repetitivas e perigosas. seriam realizadas por máquinas. Os romances que lia – de escritores russos, americanos, europeus e brasileiros – representariam o Passado, a nos mostrar como não repetirmos ações perniciosas que resultam em tantas mazelas em nossa Sociedade.  

Esse era o Céu na Terra que eu antecipava. Como no Jogo de Amarelinha, chegaríamos, de salto em salto ao objetivo final, por vezes nos equilibrando num só pé, se preciso fosse. Sonho de adolescente, com a experiência fui descobrindo que o mesmo cérebro humano que desenvolvia a ciência, perambulava pela inconsciência e o inconsciente. Que vários outros fatores (quase todos) eram inconsistentes e incontroláveis. nascidos no pântano da alma humana, interferindo na índole de tantos. Aparentemente, o ser humano vive a repetir comportamentos que lhe dão essa característica irrevogável de meio anjos, meio demônios. Viventes entre o Céu e o Inferno, enquanto bem-intencionados lutam para se libertarem desses sentimentos impuros tentam superar os invisíveis e pesados grilhões que seguram as passadas rumo a objetivos mais altos, outros se refestelam de ignomínias, em busca de um Presente tendo como modelos as piores ideologias passadistas – nacionalismo, fascismo, nazismo – além de autodenominados socialismos distorcidos que não passam de populismos requentados.

Numa calçada pelo qual passava, em frente a uma escola infantil, havia um Jogo de Amarelinha pintado. Diferente das antigas desenhadas no chão batido de ruas sem asfalto ou, mais tarde, com giz numa rua pavimentada, este ia da Terra ao Céu, mudando o nome do final do percurso. Talvez, por questões religiosas ou pela tendência do movimento do politicamente correto, do tradicional Inferno, o destino inicial se tornou a Terra. Como anjos caídos, voltaríamos ao Céu, saltando do meio mais material – a Terra – para o Paraíso. Filosoficamente, de certa maneira, quase se torna um tratado figurativo de nossa condição de porquinhos apartados que chafurdam na lama, sem pai nem mãe, com a Terra assumindo o papel de Inferno

BEDA / Scenarium / Independência Ou Morte*

Tiradentes
Há de se perder a cabeça para se tornar herói…

Neste feriado de 21 de Abril (não tem sido todos os dias, feriados?), alusivo à Inconfidência Mineira, comandada pelo traído Tiradentes, discorro sobre a Proclamação da Independência do Brasil. Esse texto está em REALidade*, meu primeiro livro, lançado pela Scenarium Plural – Livros Artesanais, em 2017. REALidade reúne crônicas que tratam sobre fatos “maiores e menores”, a discernir sobre uns e outros em sua real grandeza, a depender de pontos de vistas individuais.

“Todos os brasileiros que frequentaram a escola carregam gravado na memória o momento em que se deu a declaração da Independência do Brasil.

Desde a mesma tenra idade, nos é ensinada a História de como tudo aconteceu. Fizeram filmes e programas de televisão, escreveram livros e pintaram quadros em homenagem àquele ato decisivo, a mostrar D. Pedro – então Príncipe Regente do Brasil, ligado à Coroa Portuguesa — com a espada empunhada, a gritar às margens do Riacho do Ipiranga: ‘Independência ou Morte!’…

A Morte, no entanto, é a única possibilidade de Independência que podemos, de fato, vivenciar em um mundo cada vez mais atado a palavra do momento: globalização… que une mercados e informações, como se fôssemos vizinhos de muro. Um espirro dado na China é capaz de deixar o mundo todo gripado. Os Estados Unidos elegem um imbecil e as Bolsas de Valores enfrentam uma onda de desvalorização. O Estado Islâmico, — ilhado em um autodenominado Califado —, menor que a maioria dos Estados brasileiros, faz explodir homens-bomba no Oriente Médio… e corpos e ideologias se espalham em ondas pela crosta terrestre. Uma criança morre afogada nas águas da costa da Europa e todas as pessoas se compadecem como se seus pais fossem.

O tráfego de notícias é tão intenso que, se fôssemos nos ater detidamente a tudo o que acontece no planeta, ficaríamos presos em nossos casulos, a sofrer… encurralados pelas dores alheias e, em algum momento, nos esqueceríamos de nós mesmos. Recentemente, o assunto do momento girou em torno das ‘fatídicas’ eleições municipais. Eu — como tantos outros eleitores — fui obrigado a escolher um representante na seara de candidatos, que se dedicaram a apresentar suas ‘fórmulas mágicas’ ao longo da campanha.

Tarefa cumprida, acredito ter feito a minha parte e, se for imitar a maioria, posso me considerar livre para reclamar: do transporte, da saúde pública, educação… o cinza que cobre o grafite, a praça arrumada com ‘obras esquisitas’.

Acredito que, realmente, seja possível escapar das circunstâncias que restringem a liberdade… mas, para isso, é necessário um exercício diário de paciência… lutar contra os condicionamentos e conceitos — e não nos limitarmos ao lugar comum. Renovar-se e estar sempre pronto e disposto a questionar o novo, e também o velho. Estar receptivo aos processos…

Não é nada fácil dar o nosso grito de ‘independência ou morte’, afinal, quando chegamos à realidade, muita coisa já ‘estava pronta’. E nos acostumamos aos valores que nos são passados — impostos — sem questioná-los: somos ensinados a apenas repeti-los, até a Morte.”

Beda Scenarium