Jogo de Amarelinha

Há algum tempo, fiquei impressionado com uma experiência feita com porquinhos, vista pela televisão. Recém-nascidos, um grupo deles foi separado da mãe. Um outro, permaneceu com a genitora, alimentado e cuidado por ela. Os dois grupos, colocados em situações iguais, passavam por etapas semelhantes, como ultrapassar empecilhos, obtendo resultados bem diferentes. Os filhotes que ficaram com a mãe eram mais atilados, corajosos, venciam os obstáculos com coragem e perspicácia. Os apartados eram tímidos, indecisos ou até temerosos em enfrentar situações inusitadas.

Verificou-se que para estes porquinhos, seus desempenhos e desenvolvimentos individuais foram tolhidos pela separação e cuidado maternal. Entre chocado e triste, raciocinei que essa experiência não precisaria ser realizada com os pobres porquinhos. Eu via de perto a realidade a me estapear diariamente na Periferia (mas não apenas) que vivenciava o cotidiano com as famílias incompletas e dispersas. Eu, mesmo, ainda que tivesse uma mãe quase onipresente (o que nem sempre ajudava), tinha um pai, a maior parte do tempo, ausente. O sentimento que tinha por ele vivia no limite entre o temor e a admiração.

À época, acreditava que nada fosse tão determinista. Supunha que a parte racional do ser humano nos ajudaria a suplantar a falta de atenção e do cuidado na infância. Eu era bem novo, daqueles que acreditavam no País do Futuro, na raça miscigenada e superior que formaríamos, nós, cidadãos brasileiros ou quem aqui vivesse – bem-educados, evoluídos nas questões sociais – riqueza bem dividida, fome superada, assistência na saúde, oportunidades de trabalho. Ainda cria que o Capitalismo trazia dentro de si a semente que o destruiria. Que sobrevive, reproduzindo em série mentes amestradas que lutam pelo senhor invisível cultuado como se fosse o próprio Deus.

Viajando para o Futuro, ficava imaginando como passaríamos o tempo vago que teríamos. Boa parte, eu utilizaria para o lazer, para a prática esportiva e em atividades culturais. Imaginava que todos dividiríamos as funções profissionais, o que levaria ao pleno emprego, com salários e economia equilibrados. As tarefas repetitivas e perigosas. seriam realizadas por máquinas. Os romances que lia – de escritores russos, americanos, europeus e brasileiros – representariam o Passado, a nos mostrar como não repetirmos ações perniciosas que resultam em tantas mazelas em nossa Sociedade.  

Esse era o Céu na Terra que eu antecipava. Como no Jogo de Amarelinha, chegaríamos, de salto em salto ao objetivo final, por vezes nos equilibrando num só pé, se preciso fosse. Sonho de adolescente, com a experiência fui descobrindo que o mesmo cérebro humano que desenvolvia a ciência, perambulava pela inconsciência e o inconsciente. Que vários outros fatores (quase todos) eram inconsistentes e incontroláveis. nascidos no pântano da alma humana, interferindo na índole de tantos. Aparentemente, o ser humano vive a repetir comportamentos que lhe dão essa característica irrevogável de meio anjos, meio demônios. Viventes entre o Céu e o Inferno, enquanto bem-intencionados lutam para se libertarem desses sentimentos impuros tentam superar os invisíveis e pesados grilhões que seguram as passadas rumo a objetivos mais altos, outros se refestelam de ignomínias, em busca de um Presente tendo como modelos as piores ideologias passadistas – nacionalismo, fascismo, nazismo – além de autodenominados socialismos distorcidos que não passam de populismos requentados.

Numa calçada pelo qual passava, em frente a uma escola infantil, havia um Jogo de Amarelinha pintado. Diferente das antigas desenhadas no chão batido de ruas sem asfalto ou, mais tarde, com giz numa rua pavimentada, este ia da Terra ao Céu, mudando o nome do final do percurso. Talvez, por questões religiosas ou pela tendência do movimento do politicamente correto, do tradicional Inferno, o destino inicial se tornou a Terra. Como anjos caídos, voltaríamos ao Céu, saltando do meio mais material – a Terra – para o Paraíso. Filosoficamente, de certa maneira, quase se torna um tratado figurativo de nossa condição de porquinhos apartados que chafurdam na lama, sem pai nem mãe, com a Terra assumindo o papel de Inferno

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