22 / 05 / 2025 / Santa Cecília*

Entro na velha igreja desgastada, que um dia já serviu de Matriz de São Paulo enquanto se construía a Catedral da Sé. É um oásis de silêncio e respeito em meio ao burburinho do Velho Centro. Ao passar o portal e o limite imaginário marcado no piso, vislumbra-se a grandiosidade do engenho humano impulsionado pela fé. Alguns mais sensíveis ainda podem ouvir milhões de palavras soltas em orações e pedidos de perdões e graças e ver os diáfanos fantasmas de pecados a escalar pelas paredes… Perdoados, mas nunca esquecidos…

*Texto de 2016

#Blogvember / Os Espinhos

Foto de A Mulher Do Padre, um filme dirigido por Dino Risi, com Sophia Loren e Marcello Mastroianni, de 1970.

“A carta foi escrita com os espinhos que ninguém plantou”, por Mariana Gouveia (As Estações

Não pude evitar me apaixonar por aquela bela mulher – mãe zelosa, ativa batalhadora de causas humanas, trabalhadora incansável que não deixava de oferecer o melhor para seus dois filhos – apesar da falta do marido que a deixou sem explicação alguma. Até que as amigas descobrissem que ele fugira com uma delas, vindo a morar em outra cidade. A ex-melhor amiga de LucindaAlexandra – já mantinha um caso com Carlos Alberto há alguns anos. O que o afastou definitivamente de Lucinda foi por considerar a mãe de seus filhos autossuficiente demais. Em conversa com Alexandra soube dessas reclamações de Carlos Alberto. “Comigo, ele se sente o homem da casa, mesmo porque fico apenas à disposição dele”. De fato, com Lucinda o tipo se sentia diminuído por ela bancar grande parte das contas da residência.

Lucinda conseguiu se diplomar em Administração de Empresas a duras penas. Mesmo grávida dos dois filhos durante o tempo do curso, conseguiu completá-lo com mérito. Com o canudo na mão, pôs em pé um plano que reunia pequenos negócios da região onde vivia, tendo mulheres à frente. A cooperativa foi um sucesso. Na época da Pandemia, implantou as vendas Online que a mantiveram em expansão. Apesar do declínio da Economia de maneira geral, as Filhas de Lilith se tornaram referência de qualidade e penetração mercadológica. No entanto, Lucinda nunca saiu do bairro que crescera. Católica, de frequentar as missas todos os domingos, não deixava de tomar a Eucaristia e confessar… comigo.

Eu me lembro de tê-la advertido quando me falou do nome que daria ao projeto da Cooperativa que era derivado de uma versão judaica da criação da mulher junto com o homem, não dela da costela dele, como na versão bíblica conhecida. Aliás, suas raízes fincavam em chão bem mais antigo. Ela me olhou através da tela vasada do confessionário com aqueles olhos que me abduziam e o sorriso que me fazia sorrir, explicando: “eu gosto de muita coisa do Cristianismo. Mas a força do mito de Lilith é o que mais se aproxima do que eu penso sobre a nossa existência neste planeta. Mas os motivos que eu tenho de frequentar a Igreja tem a ver com outros, além do sentido do congraçamento”.

Ao terminar de falar, Lucinda atravessou a tênue barreira que nos separava com a força de seu olhar e soube, naquele momento que ela me amava como eu a ela. Conversei com o meu confessor que me aconselhou a pedir transferência e deixar a Paróquia. Escrevi uma carta para Lucinda, falando de tudo o que sentia e que aquele sentimento era um impedimento para que continuasse o meu ministério sacerdotal. Completei que a carta fora “escrita com espinhos que ninguém plantou”, a não ser o Destino. Após escrevê-la, passei a noite acordado e por mais que tentasse encontrar em minha fé os motivos para continuar o sacerdócio, os olhos de Lucinda me iluminavam os pensamentos.

Fui falar com ela no escritório d’As Filhas de Lilith, do lado de sua casa. Ela me recebeu com aquele sorriso abrasador. A minha intenção inicial era o de entregar a carta, dizendo que só a lesse quando eu não estivesse mais presente. Mas diante dela, achei que merecesse um diálogo mais franco, sendo Lucinda um exemplo de coragem. Quando comecei a falar, ela ficou com os olhos marejados, enquanto mordiscava a sua boca sedutora. Quando disse que estava apaixonado por ela, estendeu as suas mãos e tocou as minhas devagar e invasora até espalmá-las.

Padre… não, sem padre… Sérgio, eu também o amo! Sempre quis ser a mulher do padre! – rindo seu sorriso mais lindo.

Lucinda, sou casado com a Igreja e você, com o Carlos Alberto, apesar de ele estar com a Alexandra… e…

Ela me interrompeu. Disse que o Carlão, como o chamava, tinha vindo com um papo de pensão, já que a Cooperativa estava fazendo sucesso. Nós nos separamos e assinamos um acordo em que ele concordou em receber um salário-mínimo por mês.

É o pai dos meus filhos. Não poderia deixá-lo desamparado. Mas é jovem, pode muito bem trabalhar. Depois, eu me apaixonei por você desde que percebi seu entusiasmo pelos trabalhos devocionais. Meus filhos falam mais de você do que do pai. Eles o admiram e gostam de frequentar os cursos de música que a Paróquia dá junto com os profissionalizantes e alfabetização.

– E eu me apaixonei por você por sua entrega, coragem e alegria no auxílio às pessoas carentes.  Você é uma mulher maravilhosa, Lucinda! Eu queria…

– … me beijar?

Nesse instante, fui ao seu encontro atrás da mesa e a beijei… minha primeira vez entre todas as vezes que passei a beijá-la o mesmo beijo apaixonado. Perguntei:

– Quer ser mesmo a mulher do padre?

– Desde menina…

Participam: Lunna Guedes / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia / Suzana Martins

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Mas (Não) É Carnaval

Carnaval tem suas raízes na Antiguidade, entre o Egito e a Grécia. Eram festas dedicadas aos deuses que congregava a população em torno da comemoração do fim do Inverno e a chegada da Primavera, em que se verificava certa transgressão à ordem social. Com a chegava do Cristianismo ao Império Romano, não sendo possível impedir que acontecessem, foi imposto regramento a esses festejos profanos. Foi instituído pela Igreja um período de três dias de celebração, que termina na Quarta-Feira de Cinzas, às vésperas da Quaresma. Este período dura quarenta dias até a Semana Santa, e representa para os fiéis cristãos o preparo espiritual para a Páscoa, a Paixão de Jesus Cristo e a sua ressurreição três dias depois de ter sido crucificado e morto.

Apesar de ser traduzida como “festa da carne”, de fato o termo Carnaval vem do latim carnem levare, que significa “abster-se, afastar-se da carne”. Apesar de cidades como Veneza (Itália), Nice (França), Nova Orleans (EUA), Ilhas Canárias (Espanha), Oruro (Bolívia) e Barranquilla (Colômbia), apresentarem estilos de carnavais bastante atrativos, foi no Brasil que ganhou importância e substância de identidade nacional. Trazido pelos colonizadores portugueses, os historiadores afirmam que a festividade se estabeleceu no país entre os séculos XVI e XVII e teve como primeira prática o entrudo brincadeira que se fixou primeiramente no Rio de Janeiro — porém, com o tempo, cada região do País estabeleceu configurações diferentes, entrelaçadas às características peculiares de cada lugar, propiciando uma riqueza cultural inigualável.

Em 2020, a Covid-19 surgia no horizonte, mas o Carnaval ocorreu e as consequências todos sabemos. Apesar de criticarem a sua realização, a oposição às medidas sanitárias só começou a arrefecer com o crescimento dos números, meses depois. Transformada em batalha ideológica, o cancelamento do Carnaval em 2021 foi considerado inevitável pela maior parte da população. Fato inusitado em 2022 e que contraria a história do próprio Carnaval, se a variedade Ômicron permitir, ele será realizado na sua versão oficial em desfiles em São Paulo e no Rio de Janeiro depois do fim da Quaresma. Ou seja, o pecado virá depois da penitência. Mas isso já estamos acostumados a fazer…

Imagem do colorido Carnaval de 2020. O público presente só queria se divertir. Tempos sombrios se aproximavam…

Uma primeira viagem ao Passado. Aqui, estou à frente da mesa iluminação que utilizávamos em 1995 pela Ortega Luz & Som. No caso, esse dispositivo foi montado com madeira, interruptores e tomadas comuns. Na época, não tínhamos recursos para comprar um equipamento mais profissional, mas esta nos serviu bem e por um bom tempo.

Banda Life Show, no Carnaval de 2019, que realizou as matinês do Carnaval do Círculo Militar de São Paulo, com a nossa participação na sonorização e iluminação.

Outra viagem, esta para o Carnaval de 1996 do Clube Guapira. Naquela época, o contrato era para a realização de nove eventos — um pré-Carnaval, um sábado antes, quatro noites, três matinês e um pós, no Sábado de Aleluia. Ao lado do meu irmão e sócio na Ortega Luz & Som, Humberto, está o Carlão, cantor da Banda Nova Geração e veterano de vários carnavais que tinha técnica vocal para realizar a maratona sem perder a voz, algo comum depois de tanto esforço. É um amigo que morreu de amor. Com o passamento de sua esposa, três meses depois, ele também se foi…

Minhas meninas — Ingrid, Romy e Ingrid — no Carnaval de Rua de 2020, outra expressão importante que apresentou sua maior versão justamente antes do advento da Pandemia de Covid-19.
Quarta-Feira de Cinzas de 2020. A Quaresma forçada está completando dois anos…

Participam:

Mariana Gouveia / Lunna GuedesRoseli Pedroso / Isabelle Brum / Darlene Regina

B.E.D.A. / A Ama De Leite

Monumento À Mãe Preta, junto à Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no Largo do Paiçandu.

A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, localizada no Largo do Paiçandu ou Paissandu, na região central da cidade de São Paulo, foi construída gratuitamente por trabalhadores pretos no início do século XX. Originalmente, estava localizada na Praça Antônio Prado, onde foi construída entre os anos de 1721 e 1722. Era um espaço de reunião de pretos livres e escravos, que celebravam ritos católicos misturados às crenças de origem Banto. Com o processo de urbanização iniciado pelo prefeito Antônio Prado, a antiga igreja foi demolida em 1903, depois reconstruída onde se encontra atualmente. A nova igreja foi consagrada em 1906 quando, em grande procissão, com cantos e fanfarra, trasladou as imagens do antigo templo para o atual.

Em frente à ela, encontra-se o Monumento À Mãe Preta — o sempre impactante e contraditório monumento à figura da ama-de-leite compulsória dos filhos de classes abastadas, seus senhores e donos, à época do regime escravocrata. mesmo depois de terminada, o expediente da utilização de ama-de-leite se espraiou pelos anos à fora até hoje, principalmente nos “muitos interiores” pelo Brasil. Senão a ama-de-leite, o uso de babás que vêm a substituí-las no papel de mãe de quem pode pagar por isso e que não tem outra coisa a fazer a não ser desfilar por shoppings, clubes e festas.

Eu a conheço (a estátua) desde garoto. Nunca deixou de me causar uma forte impressão. As formas opulentas da personagem criada por Júlio Guerra, inaugurada em 1955, seria uma homenagem à participação da raça negra na História do Brasil. Rendo todas as minhas honras à todas essas pessoas que doaram os seus corpos para que hoje vivêssemos as nossas atuais contradições. Não o faço àqueles que, um dia, exploraram seres humanos como objetos, tanto quanto nos dias atuais.

O que impediria que a estátua venha a ser tomada como um monumento ao sistema escravocrata, o abençoando é que, por carregar um forte valor imagético relacionado à mãe, a estátua é cultuada por uma parcela da população, sendo comum a deposição de flores e velas junto ao pedestal de granito da estátua. Um gradil foi colocado recentemente em volta do pedestal para preservar a imagem do escurecimento causado pela fumaça de velas. A imagem acima é de 2015, de meus arquivos.

Como eu disse acima, vivemos em constante contradição. Vejo com crescente estranheza o cotidiano brasileiro. A sociedade é plural, assim como é plural as suas visões de mundo. Somos filhos do escravismo. Ele não assolou apenas os pretos, mas como devasta as relações humanas até hoje. O Brasil, um país miscigenado — muitas vezes à força — escancara a incoerência de ser brasileiro, nos colocando em posições cada vez mais discrepantes entre ideia e ação. Graças a isso, estamos vivenciando situações que não ultrapassam os ciclos passados, fazendo eclodir as possibilidades de nossas piores dores.

Cada dia é um dia…

Participam do B.E.D.A.:
Adriana Aneli / Mariana Gouveia / Cláudia Leonardi /
Darlene Regina / Roseli Pedroso / Lunna Guedes

Histórias de 17 de Julho*

Arrozal, em 2011

“A minha irmã acompanha o programa Sr. Brasil, com Rolando Boldrin, mais uma forma de homenagem à minha mãe, que adorava assisti-lo nas manhãs de domingo. Em certa passagem, o grande Boldrin conta sobre um padre que vê um caboclo adentrar à sua igreja à luz do dia. O padre pergunta ao tal: ‘Veio confessar?’ Ao que o sujeito responde: ‘Não! esperando juntar…’. Agora, eu pergunto: quantos pecados devemos juntar até nos redimirmos, afinal?”

Logo à frente, nesse caminho, se encontra um retiro da Igreja Católica, ao qual eventualmente comparecem grupos de jovens e seminaristas. Eu mesmo, quase ingressei na Igreja como seminarista franciscano. A minha intenção era utilizar a sua máquina para cumprir a missão ao qual havia me proposto ajudar ao próximo e buscar a trilha da humildade e da renúncia. Estudante de História, não desconhecia os desmandos da instituição, onde a Inquisição foi apenas um dos aspectos mais marcantes e cruéis.

Ainda continuo franciscano, mas casado, com três filhas, não participo de agremiações religiosas e faço de minha profissão de fé uma barafunda de ensinamentos de todas as vertentes e cantos do Mundo. A Luz tem muitas perspectivas.

Frida e eu, em 2017

“Não sou Diego Rivera, mas Frida me ama… Neste estranho mês de julho, tenho pensado muito em minha mãe, que nasceu neste mesmo mês, há 85 anos. Ela está conosco apenas em espírito desde 2010. Por uma dessas ‘coincidências’, chama-se Madalena, o mesmo nome de Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón, que nasceu na mesma data de 6 de julho, 25 anos antes que a menina Nuñes Blanco. Frida, a minha, tem uma personalidade a ser desvendada por nós, que convivemos com esse ser com ‘olhinhos de avelã’, como dizemos. Todas as ‘nossas cãs’ tem nomes fortes Penépole (de Ulisses), Domitila (de Castro), Maria Bethânia (cantora) e Lolla (Corra) Lolla. São coisas do surrealismo que é viver…”.

Na legenda acima, fiquei pensando no que quis dizer exatamente com a correlação entre os nomes inspirados em artistas e o Surrealismo. Está certo que o movimento se caracterizava pela expressão livre do pensamento, regrada somente pelos impulsos do subconsciente, aparentemente desregrado. Eu me lembro do tempo em que os nomes dos nossos companheiros peludos se restringiam à características físicas que apresentavam ou referências normalmente episódicas. Creio que a crescente sensibilização quanto aos bichos de estimação nos trouxeram para mais perto da naturalização de nossas relações. Ou, segundo eu creio, para a nossa natureza animal ou anímica. Surreal?