BEDA / Violento

A minha amiga Tatiana e eu nos tempos da caderneta de entrada e saída do colégio.

Quando eu era garoto e o meu apelido era “Nanico“, pois era menor que os outros meninos, as agressões para impor a sua presença, percebi que para me defender se eu tomava a iniciativa e dava o primeiro soco, garantia que eu vencesse a briga, porque eu surpreendia o oponente pela iniciativa e agressividade. Com o tempo, mais notadamente a partir dos 12 anos, fui mudando essa forma de agir. Percebi que aquilo me machucava mais do que machucava aos outros.

De extrovertido, caminhei para o caminho inverso. Fui avançando cada vez mais para dentro de mim e me tornei um sujeito muito tímido. Tinha abertura o suficiente apenas para interagir com os outros garotos para jogar futebol. Como companheiros mais assíduos, só tipos esquisitos como eu. Mas amava as meninas de tal forma que as mantinha distanciadas para que não percebessem o quanto era difícil de lhe dar. O que demonstra um tanto de vaidade nessa atitude, algo que tento vencer ainda… e talvez sempre.

Avesso a registros fotográficos, a imagem que é mostrada acima foi “roubada”. Nessa época, eu estava tentando desesperadamente me libertar das amarras que havia tecido pouco a pouco, desde que decidi conscientemente mudar a minha postura agressiva diante do mundo imediato que me cercava. Inviscerado de tal forma, nem me embebedando conseguia me soltar. Essas bebedeiras serviram apenas para me afastar da bebida. Por dois anos, eu não podia sentir cheiro de álcool que já ficava enjoado.

No momento que vi a imagem acima, de dezembro de 1980, quando recém havia completado 19 anos, vejo um garoto que mal parecia ter chegado aos 15. As suas ações pareciam ser a de um adolescente. A sua timidez, de avassaladora altivez. O seu olhar baixo, de alguém que não se sentia à vontade para enfrentar o seu entorno. Em uma outra, dessa mesma época, apareço abraçado a livros do lado de professores. Dos livros, eu obtinha a sustentação das muralhas que construí para me proteger. Eu lembro que o meu mundo interior era bem rico, pleno de imaginação. Talvez até tivesse zelo em protegê-lo da invasão de outras pessoas. Apenas oito anos depois, abri os portões para alguém entrar…

Texto participante do BEDA: Blog Every Day August

Denise Gals Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Bob F / Suzana Martins Cláudia Leonardi

 

 

BEDA / Labaredas

não há uma labareda igual a outra…
serpentes dançantes que queimam
a imaginação de quem é água
fulgurantes figuras que se imiscuem
umas às outras em ardência
seus corpos fluidos em travessuras
se devorando em envolvente quentura
são amores flamejantes sem mágoa
que alimentam o seu fogo
com crepitantes achas de lenha
enquanto o oxigênio silenciosamente
entrega a sua alma à extinção
os acordes de estalidos e pausas
marcam a canção da última dança
antes que tudo termine em cinzas
mas qual destino melhor
do que morrer consumidas de amor?

Poema participante do BEDA: Blog Every Day August

Denise Gals Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Bob F / Suzana Martins Cláudia Leonardi

“A” O Pipa

Uma pipa ficou pendurada na beira do telhado da varanda da minha casa. Estava inteira, mas com o tempo, rasgou aqui e ali com o movimento do vento ocasional. Vê-la presa, qual um pássaro que se debatia amarrado a uma armadilha, fez com me apiedasse e a retirasse de onde estava. Não era um artefato de beleza especial e decidi destruí-lo. Cometi o erro de virá-lo e perceber os detalhes de sua confecção – as varetas bem-posicionadas, as linhas de costura as alinhando devidamente, o papel de seda delicadamente colado a elas. Quem fez a pipa, além da habilidade, supus que tenha juntado sua energia às forças antigravitacionais da imaginação que antecipou vê-la singrar o mar dos céus – uma obra feita para voar.

Isso me inspirou um poema que colocaria mais ou menos nesses termos, mas o voo da pipa mudou a sua trajetória quando publiquei a foto.  Uma amiga me questionou se sabia dos últimos acontecimentos referentes a acidentes graves provocados por pipas. Na verdade, não são as pipas que devam ser condenadas, mas quem as utilizam com linhas besuntadas de cerol – uma mistura cortante de pó de vidro e cola de madeira – para colocá-las ao alto.

A intenção de quem faz isso é, supostamente, se defender de outras pipas igualmente preparadas para cortar as linhas adversárias.  De diversão inocente, a atividade inventada pelos chineses há milênios de anos se transformou em luta aérea. São empinados pipas como se fossem aviões da Segunda Guerra em movimentos ousados – mergulhos, rasantes, embicadas – para defender os seus territórios sobre os Oceanos de ruas.

Tudo bem, se essas pipas não descessem ao nível da terra dos mortais e provocassem acidentes fatais ao cortar pescoços de motociclistas, ciclistas e pedestres. Nos “menos” graves, há casos de mutilação de dedos. Além de haver relatos de acidentes com aeronaves e paraquedistas. Tudo é muito triste, se considerarmos que o espírito de competição engendrado pelo Sistema sob o qual vivemos não estimulasse aos homenzinhos “ganharem” o espaço azul como únicos soberanos.

Não foi por outro motivo que nas oportunidades que surgiram de empinar pipas com as minhas filhas, evitei. Imaginava que como não me defenderia usando “cortante”, a cada uma que colocasse no alto, ocorreria uma perda para a distância, lenta e decepcionante. Outra coisa sobre o qual Farfalla me chamou a atenção, é que chamava o objeto em discussão pelo artigo masculino – “o” pipa.  Conjecturei que talvez fosse uma imposição inconsciente do Patriarcado recebida na meninice sobre algo de tamanho poder – voar para além do corpo.

#Blogvember / Voo Cego

“Aprendi com as palavras o que eu não consegui com as asas: voar!”, por Suzana Martins, em (In)Versus

Quando adolescente, fã de séries de viagens espaciais, ficava intrigado com as que eram realizadas num átimo como em Jornadas Nas Estrelas, através das “dobras espaciais”. O veículo através da qual a comunidade múltipla-humana viajava o Espaço – a fronteira final – era a nave estelar Enterprise, “em sua missão para explorar novos mundos”. O contato com seres humanoides, de formas físicas diferenciadas dos Homo sapiens, com adaptações adequadas aos seus ambientes originais, propunha uma interação possível entre as várias raças e conformações.

Um mandamento que foi colocado de forma clara era o de não intervenção direta no desenvolvimento das civilizações originais dos planetas visitados. Mas, como não iria deixar de acontecer, o Capitão Kirk, o comandante da missão, era um humano que infringia as normas frequentemente, tendo em contraponto Mister Spock, cujo planeta carrega a racionalidade como característica principal, se opunha quase sempre às aventureiras opiniões de seu capitão, sendo ele o segundo em comando. O interessante é que o homem de Vulcano trabalhava a razão num contexto em que tudo inspirava a imaginação. Diante de muitas novas descobertas, o sábio ser desferia a expressão: “fascinante!”.

Para mim, o planeta ao qual me foi dado a explorar é este no qual vivemos. Por ter um olhar de estranhamento quanto a praticamente tudo que me cerca, me pego acordado a sonhar. Ou a sonhar acordado. Quando pequeno, voava sobre as casas do meu bairro, fazendo rasantes junto aos morros em que a vegetação verde ainda imperava. Lembro que percorria ruas que não conhecia ainda, a frente ou abaixo da qual morava. Confirmando depois seus caminhos. Deem o desconto de que a minha memória não é confiável. Mas quando menino cria que fosse assim. Ainda assim, percebi que a forma mais rápida de viajar era o pensamento.

As minhas asas eram invisíveis (para os outros) ou eu as mantinha escondidas para não parecer mais estranho ainda aos olhos dos outros. Através das palavras as materializava. Quando me perguntavam de onde surgiam tantas ideias para escrever não poderia dizer que armava as minhas asas para visitar as diversas realidades. Para parafinar minhas penas, lia bastante. Tudo me interessava. Nunca se sabia onde encontraria os melhores temas para desenvolver novas histórias. Essas construções buscavam reproduzir mundos ideais. A maldade humana era sempre suplantada. O Bem, poderoso, ao final vencia o Mal.

Enquanto isso, lá fora, onde eu não voava; onde os homens conseguiam vencer trapaceando; onde as mulheres choravam por seus filhos mortos; onde as botas pisavam sobre as cabeças dos subjugados; onde a Polícia matava pela ação dos esquadrões da morte (motivo de temor constante na Periferia); onde meu pai se ausentava; onde eu apanhava da Turma do Louquinho; onde a minha única alegria era jogar bola, apesar da miopia que crescia – eu me sentia Ícaro, em voo cego rumo ao abismo.

Participam: Mariana Gouveia / Suzana Martins / Lunna Guedes / Roseli Peixoto

#Blogvember / Imaginação Boêmia

é tanta loucura que anda na bohemia
da minha imaginação…
cantou La Castañeda
leio me leio nessa linha
me levanto retomo a consciência
de viver estar no presente
curvo as minhas costas para trás
apoiando as minhas mãos
após vomitar sobre a tela mais palavras
repetidas em locuções conhecidas
como se fossem códeas de pão
de quem se perdeu pelo caminho
após passar noites bebendo indignidades
ouço um samba desses passados passadiços
rezados em dois por quatro na cadência
de meu coração sincopado
agradeço às influências d’áfrica
enquanto choro a dor do desterro
de povos inteiros arrastados em correntes
rumo a cais do outro lado do atlântico
aldeias árvores rios amigos família pais filhos criações culturas
futuros perdidos identidades esfaceladas
guerras terras novas gerações replantadas
em terreno inóspito fértil
regadas à sangue do qual eu bebo
com sabor de alegria e dor
atravesso a cidadela
enquanto desejo voltar a jogar
o meu corpo contra a procela
navegador
que rema rumo ao rir chorar salivar
sobre a pele nua dela
preso aos seus cabelos cor de noite clara
de lua quarto minguante.

Participam: Suzana Martins / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes