A Flor

o médico intrigado
diante da imagem da ressonância
dá ares de magnética importância
quem sabe estudo científico?
revela que surgira uma flor
na superfície do meu coração
entre ventrículo e átrio esquerdos
perguntei um tumor?
não
era mesmo uma flor
margarida lírio rosa ou jasmim
uma orquídea
ou maria-sem-vergonha talvez?
uma vitória-régia a boiar
no rio da minha caixa torácica?
não sou especialista
em pétalas abertas em órgãos vitais
vamos retirá-la decretou
por  que? perguntei
retorquiu
meu caro
pode ser a primeira de muitas
logo o seu coração ficará florido
seu peito tomado
de perfume e cor
um verdadeiro jardim
chegariam vespas abelhas
beija-flores outros pássaros
quero vê-lo curado
respondi doutor deixe florir
não tenho tremor
febre ou dor
sei o que aconteceu 
sol a raiar dia que nascia
daqueles clichês para se apaixonar
eu a vi pela janela de minh’alma
pela primeira vez
senti meu coração bater em fulgor
natural que medrasse em flor
antes isso do que ódio rancor
carregado de medo temor
de vingança revanche vazio
de sangue e paixão
entre viver gris
prefiro morrer feliz
escolho fertilizar amor 
e regar
e amar…

Foto por Asmau2019u Yusuf em Pexels.com

O Sapo

Trabalho bem feito…

Desde o ano passado, tinha um sapo enterrado no meu jardim. Havia sido um trabalho tão bem feito que não conseguia encontrá-lo. Um ebó involuntário à Oxumaré*. Ele deveria estar junto à jabuticabeira, mas nem sinal do batráquio quando o busquei. O autor do trabalho fora eu mesmo. Sem querer. Coloquei terra no quadrilátero e esqueci da pequena escultura de barro. Ao tentar desenterrá-lo, a enxada usada com cuidado sequer tocou em algo parecido. Enfim, o sapo ficaria como objeto de boa sorte do jardim quando vicejasse plantas tão verdes quanto ele.

Porém, a Tânia voltou a encontrá-lo ao começar a fazer uma horta. Logo que pode, reassumiu o lugar ao lado de seu amigo que estava, desde o seu sumiço, triste e só. Não mais estarão juntos a hortaliças, pimenteiras, alho, hortelã, cebolinha… Deslocados para o jardim da frente — Yellow Brick Road Garden — ficarão estacionados no gramado no qual poderão “viver” camuflados e seguros…

Os amigos, reunidos novamente…

*Orixá mediador entre o céu e a terra, do qual o arco-íris é uma das epifanias; dado em alguns relatos mitológicos como escravo de Xangô, que o usa para transportar água ao seu palácio celeste. Corresponde de certa forma ao vodum , a força que põe a vida em movimento, cuja representação é uma serpente que morde a própria cauda.

Sem Importância

Moro na Avenida São João.
Vivo perto de tudo.
Tenho árvores em meu jardim,
de frente para a minha sala de jantar,
de estar,
de meu quarto,
de meu lugar.
Que muda de lugar.
O mundo é meu.
Pelas amplas janelas do meu olhar,
observo o movimento das pessoas
a passarem por mim.
Elas não se importam
comigo.
Espero que não se importem
por eu não me incomodar
com elas…

B.E.D.A. / O Reizinho E A Rosinha

O Reizinho imperava sobre tudo ao seu redor. Mesmo não sendo dono de tudo — na verdade quase nada lhe pertencia — dispensava a todos aquele olhar de que o espaço que dividia com as outras pessoas era de sua posse. Isso era irrefutável para qualquer um que o conhecesse. Os homens, o admiravam, as mulheres, o amavam. O que insinuasse desejar, lhe era oferecido. O que se inclinasse a pedir lhe era dado. No entanto, em verdade, o Reizinho vivia a deriva de si mesmo. Não se sentia senhor de seu corpo e muito menos de seu destino. O estranho é que o olhar que intimidava provinha de seu sentido de deslocamento. O Reizinho era um estrangeiro dentro de sua casa, quando normalmente saia em viagem em busca de seu coração, em longas sessões de circunspecção sobre o nada. Fora dela, caminhava como um posseiro de mentes, seduzindo inconsequentemente a qualquer um que se aproximasse demais de sua forte presença.

Em determinada época, o Reizinho começou a gostar de jardinagem, talvez a ocupação mais próxima de uma sensação de completude que já experimentara algum dia. Dera de passar grande parte do dia a remexer na terra, a podar galhos, a plantar sementes de flores diversas e plantas próprias para a infusão — hortelã, erva cidreira, erva doce, melissa, camomila… flores

Em uma parte afastada do canteiro, viu surgir uma haste portando um botão roseado, o que achou extraordinário, visto que não lembrava de que tivesse plantado uma roseira. Ela apareceu assim, do nada, impondo a sua força leonina de dona do jardim. O Reizinho, de dominador, passou a dominado pela Rosinha. Percebera, então, que encontrara um propósito para a sua vida. Dali por diante, sua função seria a de protegê-la e adorá-la. De vê-la banhar-se à chuva que a vestia com gotículas de diamantes com a qual dançava ao som do vento vespertino e à luz do sol matutino. Dali por diante, o Reizinho e a Rosinha permaneceriam unidos — o seu primeiro olhar pertenceria a ela; o perfume que evolasse se dirigiria apenas a ele, infinitamente… Mesmo que ambos soubessem que tudo era finito.

Participam do B.E.D.A.:
Lunna Guedes
Roseli Pedroso
Darlene Regina
Mariana Gouveia
Adriana Aneli
Cláudia Leonardi

Dulce

Dulce — doce, em espanhol — era realmente uma presença doce. Pequena, com as patinhas defeituosas, o peito e a barriguinha peladinha, ela não sobreviveria se vivesse livre. Sendo uma calopsita, de origem australiana, não encontraria espaço e clima ideais para viver por aqui. Nós a recebemos novinha e ficou com conosco por pelo menos 13 ou 14 anos.

Discreta, nos últimos anos estava sozinha, sem o companheiro, Horácio, que faleceu inesperadamente. A relação entre eles não era muito harmoniosa ou, pelo menos não era interativa. A gaiola onde ficava, nós a colocávamos para fora de manhã e a recolhíamos à tarde. Quando a temperatura estava mais alta, ficava até mais tarde e, às vezes, até passava a noite fora.

Acredito que ela gostasse de ficar no quintal, já que reclamava quando não a púnhamos em contato com os outros pássaros, as árvores e plantas do quintal, principalmente quando percebia movimento na casa. Ao encontrá-la, ela esticava uma das patinhas e uma das asas, que eu soube se tratar de um ato de satisfação. Normalmente, colocava comidinha no seu potinho, mas quando esquecia, também se fazia ouvir, reclamando.

De vez em quando, a soltávamos dentro de casa. Mas ela não gostava de que a pegássemos, dando picadinhas delicadas, como se protestasse. Vez ou outra, conversava com ela através de assovios, porém nunca consegui me comunicar convenientemente. Era comum, a Bethânia correr em direção à sua gaiola para assustá-la, por pura diversão. Quando a gaiola se esvaziou de sua presença, ela correu, mas parou assim que percebeu a sua ausência. Assim como ao passar no corredor que ela ficava, também a senti.

Ela compunha a nossa paisagem emocional e visual. Tentava me aproximar dela e entender o que ela estaria “pensando”, “sentindo”. Será que a sua solidão seria igual à nossa? Será que sabia estar presa a um espaço restrito ou aquele mundo era suficiente para sua expressão? Já que sempre viveu assim, institivamente sequer “imaginaria” que seus irmãos voassem livres, buscassem o seu próprio alimento, namorassem, procriassem e estavam à mercê de predadores, principalmente os seres humanos? Era feliz ou felicidade é uma quimera tipicamente humana?

Ontem, a Tânia fez um memorial com a gaiola da Dulce. Ela a preencheu com plantas. Acho que é uma linda homenagem à vida. A nossa promessa é que nunca mais teremos pássaros presos em nossa casa, mesmo porque tudo começou em atendimento a um desejo das meninas quando mais novas, que receberam calopsitas de presente. Em nosso jardim, temos pássaros constantemente a nos presentear com seus cantos e voos. Prendê-los para mim é um ato de pura inveja pelas asas que possuem.