o médico intrigado diante da imagem da ressonância dá ares de magnética importância quem sabe estudo científico? revela que surgira uma flor na superfície do meu coração entre ventrículo e átrio esquerdos perguntei um tumor? não era mesmo uma flor margarida lírio rosa ou jasmim uma orquídea ou maria-sem-vergonha talvez? uma vitória-régia a boiar no rio da minha caixa torácica? não sou especialista em pétalas abertas em órgãos vitais vamos retirá-la decretou por que? perguntei retorquiu meu caro pode ser a primeira de muitas logo o seu coração ficará florido seu peito tomado de perfume e cor um verdadeiro jardim chegariam vespas abelhas beija-flores outros pássaros quero vê-lo curado respondi doutor deixe florir não tenho tremor febre ou dor sei o que aconteceu sol a raiar dia que nascia daqueles clichês para se apaixonar eu a vi pela janela de minh’alma pela primeira vez senti meu coração bater em fulgor natural que medrasse em flor antes isso do que ódio rancor carregado de medo temor de vingança revanche vazio de sangue e paixão entre viver gris prefiro morrer feliz escolho fertilizar amor e regar e amar…
Desde o ano passado, tinha um sapo enterrado no meu jardim. Havia sido um trabalho tão bem feito que não conseguia encontrá-lo. Um ebó involuntário à Oxumaré*. Ele deveria estar junto à jabuticabeira, mas nem sinal do batráquio quando o busquei. O autor do trabalho fora eu mesmo. Sem querer. Coloquei terra no quadrilátero e esqueci da pequena escultura de barro. Ao tentar desenterrá-lo, a enxada usada com cuidado sequer tocou em algo parecido. Enfim, o sapo ficaria como objeto de boa sorte do jardim quando vicejasse plantas tão verdes quanto ele.
Porém, a Tânia voltou a encontrá-lo ao começar a fazer uma horta. Logo que pode, reassumiu o lugar ao lado de seu amigo que estava, desde o seu sumiço, triste e só. Não mais estarão juntos a hortaliças, pimenteiras, alho, hortelã, cebolinha… Deslocados para o jardim da frente — Yellow Brick Road Garden — ficarão estacionados no gramado no qual poderão “viver” camuflados e seguros…
Os amigos, reunidos novamente…
*Orixá mediador entre o céu e a terra, do qual o arco-íris é uma das epifanias; dado em alguns relatos mitológicos como escravo de Xangô, que o usa para transportar água ao seu palácio celeste. Corresponde de certa forma ao vodumDã, a força que põe a vida em movimento, cuja representação é uma serpente que morde a própria cauda.
Moro na Avenida São João. Vivo perto de tudo. Tenho árvores em meu jardim, de frente para a minha sala de jantar, de estar, de meu quarto, de meu lugar. Que muda de lugar. O mundo é meu. Pelas amplas janelas do meu olhar, observo o movimento das pessoas a passarem por mim. Elas não se importam comigo. Espero que não se importem por eu não me incomodar com elas…
O Reizinho imperava sobre tudo ao seu redor. Mesmo não sendo dono de tudo — na verdade quase nada lhe pertencia — dispensava a todos aquele olhar de que o espaço que dividia com as outras pessoas era de sua posse. Isso era irrefutável para qualquer um que o conhecesse. Os homens, o admiravam, as mulheres, o amavam. O que insinuasse desejar, lhe era oferecido. O que se inclinasse a pedir lhe era dado. No entanto, em verdade, o Reizinho vivia a deriva de si mesmo. Não se sentia senhor de seu corpo e muito menos de seu destino. O estranho é que o olhar que intimidava provinha de seu sentido de deslocamento. O Reizinho era um estrangeiro dentro de sua casa, quando normalmente saia em viagem em busca de seu coração, em longas sessões de circunspecção sobre o nada. Fora dela, caminhava como um posseiro de mentes, seduzindo inconsequentemente a qualquer um que se aproximasse demais de sua forte presença.
Em determinada época, o Reizinho começou a gostar de jardinagem, talvez a ocupação mais próxima de uma sensação de completude que já experimentara algum dia. Dera de passar grande parte do dia a remexer na terra, a podar galhos, a plantar sementes de flores diversas e plantas próprias para a infusão — hortelã, erva cidreira, erva doce, melissa, camomila… flores
Em uma parte afastada do canteiro, viu surgir uma haste portando um botão roseado, o que achou extraordinário, visto que não lembrava de que tivesse plantado uma roseira. Ela apareceu assim, do nada, impondo a sua força leonina de dona do jardim. O Reizinho, de dominador, passou a dominado pela Rosinha. Percebera, então, que encontrara um propósito para a sua vida. Dali por diante, sua função seria a de protegê-la e adorá-la. De vê-la banhar-se à chuva que a vestia com gotículas de diamantes com a qual dançava ao som do vento vespertino e à luz do sol matutino. Dali por diante, o Reizinho e a Rosinha permaneceriam unidos — o seu primeiro olhar pertenceria a ela; o perfume que evolasse se dirigiria apenas a ele, infinitamente… Mesmo que ambos soubessem que tudo era finito.
Dulce — doce, em espanhol — era realmente uma presença doce. Pequena, com as patinhas defeituosas, o peito e a barriguinha peladinha, ela não sobreviveria se vivesse livre. Sendo uma calopsita, de origem australiana, não encontraria espaço e clima ideais para viver por aqui. Nós a recebemos novinha e ficou com conosco por pelo menos 13 ou 14 anos.
Discreta, nos últimos anos estava sozinha, sem o companheiro, Horácio, que faleceu inesperadamente. A relação entre eles não era muito harmoniosa ou, pelo menos não era interativa. A gaiola onde ficava, nós a colocávamos para fora de manhã e a recolhíamos à tarde. Quando a temperatura estava mais alta, ficava até mais tarde e, às vezes, até passava a noite fora.
Acredito que ela gostasse de ficar no quintal, já que reclamava quando não a púnhamos em contato com os outros pássaros, as árvores e plantas do quintal, principalmente quando percebia movimento na casa. Ao encontrá-la, ela esticava uma das patinhas e uma das asas, que eu soube se tratar de um ato de satisfação. Normalmente, colocava comidinha no seu potinho, mas quando esquecia, também se fazia ouvir, reclamando.
De vez em quando, a soltávamos dentro de casa. Mas ela não gostava de que a pegássemos, dando picadinhas delicadas, como se protestasse. Vez ou outra, conversava com ela através de assovios, porém nunca consegui me comunicar convenientemente. Era comum, a Bethânia correr em direção à sua gaiola para assustá-la, por pura diversão. Quando a gaiola se esvaziou de sua presença, ela correu, mas parou assim que percebeu a sua ausência. Assim como ao passar no corredor que ela ficava, também a senti.
Ela compunha a nossa paisagem emocional e visual. Tentava me aproximar dela e entender o que ela estaria “pensando”, “sentindo”. Será que a sua solidão seria igual à nossa? Será que sabia estar presa a um espaço restrito ou aquele mundo era suficiente para sua expressão? Já que sempre viveu assim, institivamente sequer “imaginaria” que seus irmãos voassem livres, buscassem o seu próprio alimento, namorassem, procriassem e estavam à mercê de predadores, principalmente os seres humanos? Era feliz ou felicidade é uma quimera tipicamente humana?
Ontem, a Tânia fez um memorial com a gaiola da Dulce. Ela a preencheu com plantas. Acho que é uma linda homenagem à vida. A nossa promessa é que nunca mais teremos pássaros presos em nossa casa, mesmo porque tudo começou em atendimento a um desejo das meninas quando mais novas, que receberam calopsitas de presente. Em nosso jardim, temos pássaros constantemente a nos presentear com seus cantos e voos. Prendê-los para mim é um ato de pura inveja pelas asas que possuem.