BEDA / Scenarium / A Pizza E A Forma

Pizza

Em Quarentena, estando isolado na casa da praia, não tenho horários específicos para as refeições. Quase dez horas da noite, decido fazer pizza. Saio, compro os ingredientes necessários e, ao revirar o armário em busca da fôrma, encontro a máquina do tempo, ainda que incompleta, sem as presilhas. Nela, produzo uma boa pizza de atum e cebola com molho de tomate.

A minha mãe adorava novidades em apetrechos para o lar. Logo que foi lançada, Dona Madalena adquiriu uma fôrma que poderia assar pizzas utilizando as bocas do fogão. Economizava o uso do forno, em tempos de escassez, além ser mais prática e rápida. O segredo era saber dosar o volume do fogo para que não queimasse. E foi através daquele utensílio que voltei para mais de quarenta anos antes no tempo.

Vários instrumentos caseiros usados em décadas anteriores vieram para a casa da praia. Volta e meia, me deparo com pratos, xícaras, louças, copos e talheres antigos, além de vários outras coisas-mecanismos que me fazem voltar ao passado. Quase imediatamente, despontam visões da minha mãe a manipulá-los, como se fossem videoaulas de utilidades domésticas.

A pizza ficou boa. Sei fazê-las – as pizzas – assim como outras comidinhas, de maneira que minhas filhas voltam sempre a pedi-las. Nunca busquei aprender anotando ou medindo dosagens de ingredientes. Simplesmente comecei a reproduzi-las quase magicamente. Feijão, arroz, sopas, misturas variadas e outros componentes de refeições ou lanches se materializam concluídas e saborosas. O segredo – eu era ajudante de cozinha de minha mãe. Acho que, ainda que não estivesse atento, a repetição cotidiana foi apreendida de algum modo.

Talvez seja isso ou mamãe se apossa de minhas mãos e por elas revive o prazer de cozinhar para aqueles que ama. O ingrediente secreto, porém, é evidente – aquele que torna os alimentos mais simples em experiências tão saborosamente dolorosas, na verdade, uma junção rica de saudade e amor.

Beda Scenarium

Pecado Original*

PECADO ORIGINAL
Os originais de Pecado…

Como seria o diálogo entre Adão e Eva, diante do próprio assombro por terem descoberto o amor? De inocentes a pecadores em um átimo, os dois, tais quais quaisquer adolescentes, talvez até se revoltassem contra quem os criou…

Eva,
disseram que cometemos
um grande pecado…
Não vejo qual…
Não vejo onde…
Não vejo como…
Não vejo quando…
E, no entanto,
Nos acusam que nos foi dado a ver…

Adão,
pode ser que seja esse o nosso
grande pecado — que ao nos percebermos
tão expostos,
quiséssemos resguardar a nossa paixão
de olhares alheios,
assim como todos que encontram
algo precioso…

Eva,
se não for esse o pecado,
qual seria?…
O de nos conhecermos intimamente
a si mesmos e um ao outro?
Quem nos criou, nesse caso, talvez fosse o grande Pecador!
Pois todos percebem que fomos feitos
um para o outro!

Adão,
talvez o grande pecado
fosse tornar o nosso amor
tão original
a ponto de contrariar as regras
deste país edílico e passivo…
Mais do que isso, a minha intuição
me leva saber que cometemos
o pecado de amarmos
de modo diferente,
de modo mais completo,
amarmos além…

Eva,
ouvi dizer que nos colocarão
para fora de casa…
Por termos amado demais!…
Que nos farão sofrer…
Porque se conhecemos o prazer,
devemos conhecer a dor!
Que viveremos por nossa conta
e risco…que nos lançarão à vida!
Que, da inocência, deveremos
alcançar a maturidade…
Para um dia voltarmos,
finalmente, ao nosso lar…

Adão,
falam do nosso prazer
como se já o conhecêssemos…
Como se antes pudéssemos
diferenciá-lo da dor…
Desde que nos apaixonamos,
percebi que esse seria o nosso
caminho: saber o que é sofrer
para conhecermos o completo prazer!

*Pecado Original foi escrito há algum tempo. Há 35 anos ou mais… não sei ao certo. A Tânia estava fazendo uma limpeza e encontrou papéis com textos antigos, junto a outros mais recentes. Gostei do tema e, portanto, achei interessante expô-lo a público, naturalmente, editado, mas muito menos do que eu poderia imaginar.

BEDA / É Pau, É Pedra

PAU
Tronco de meu limoeiro-rosa, que morreu depois de 30 anos

Por vezes, eu me sinto como uma pedra, que colhida da terra, moldada pelo fogo, é arremessada em direção à água pela mão do Destino. No arco que descrevo no ar, sinto contra mim o vento que acaricia o meu contorno áspero e, assim, sinto o prazer fátuo de ser livre para cair. Quando finalmente encontro a água, produzo círculos concêntricos, que serão a minha obra suprema na vida, tanto quanto efêmera. Aos poucos, as linhas cada vez mais tênues que se ampliam e desaparecem, o suficiente para ser testemunhadas por poucos. Logo, a pedra que sou, repousará no fundo do lodo, esperando o momento que será resgatada de volta ao lar estável, para ser novamente lançada ao ar ou realizar outra tarefa. Talvez, nobremente, construir uma casa. Como o pau, que serve de arrimo. Antes, foi planta. Morta, torna-se pau – alavanca ou lenha. Ao final de tudo, tudo o que aprendi é que tudo e todos cumprem os seus ciclos sob a abóboda celestial, sendo uma pedra ou um tronco que se desenraizou.

Prazo de Validade

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Sarah está para entrar em seus quarenta anos de idade ainda cheia de planos, talvez até mais do que quando casou, aos vinte. Na época, apesar de vir de uma família de mulheres atuantes profissionalmente, decidiu ser dona de casa em tempo integral. Mãe e cuidadora dos filhos – Filipe e Mirian – cria que administrar um lar a completasse fielmente. Durante os primeiros cinco primeiros anos de união com Bento, se sentiu realizada nessa atuação. Mais ou menos por esse tempo, o companheiro começou a se ausentar da vida familiar. De início, apesar de perceber a mudança, acreditou na alegação de que o crescimento profissional o ocupava por tempo demais.

Dois anos depois, as coisas voltaram à rotina anterior. O entusiasmo de Felipe com o futebol, o mesmo que Bento sempre carregou, fez com que se esforçasse ao máximo para estar nas ocasiões de convívio doméstico. Levava e trazia Felipe na escolinha de futebol ou assistia aos torneios do qual o menino participava. No entanto, a atenção dispensada à caçula não era igualitária. Certa vez, deixou de ir à uma apresentação do balé na escola. Gradativamente, cresceu seu alheamento quanto à menina.

Quando Sarah advertiu Bento sobre a sua atitude insensível, ele a olhou de uma maneira que nunca vira antes, quase com desprezo. Aquilo a magoou profundamente. Sentiu-se como que estapeada no rosto. Dali por diante, mesmo se percebendo cada vez menos ligada à Bento, Sarah preferiu sustentar o casamento. Aos familiares, que nunca entenderam sua postura sem protagonismo, dizia que o fazia pelos filhos.

As desavenças entre os dois cresceram em volume e rispidez. Por volta dos dezoito anos de matrimônio, decidiram se separar judicialmente. O fato de Sarah ter decidido iniciar um curso de Educação Física, teria precipitado a separação. Bento repisava que a faculdade a deixaria exposta, já que a grande maioria dos alunos era composta por jovens na flor da idade. Aquilo, para ele, era uma ofensa pessoal. Convenientemente, não mencionava os seguidos casos extraconjugais que viveu, principalmente o penúltimo, com uma amiga próxima, que foi revelado com estardalhaço em uma festa de família, para a humilhação de Sarah.

Filipe, que já há muito tempo percebia que o pai não agia corretamente com a mãe, a apoiou, enquanto Mirian, foi contra. Ela se sentia traída, justamente no momento que seu pai passou a demonstrar maior atenção e a presenteá-la com mimos. Quanto a Bento, secretamente parecia concordar com a possível separação na esperança de demover Sarah aos poucos de frequentar a faculdade. Ele dificilmente encontraria uma mulher tão prestimosa e manipulável quanto Sarah, ao mesmo tempo que poderia manter a coleção de casos em série, em competição informal com os seus colegas de trabalho.

Quanto a Sarah fazia força para acreditar que os primeiros anos de matrimônio tenham sido felizes o suficiente para lhe garantir a certeza meio dúbia de que nem tudo teria sido em vão. Apenas não saberia se teria coragem de voltar a se entregar a mais alguém. Ela, quando percebeu que o seu projeto de mulher caseira falira, decidiu voltar suas energias para algo que sempre gostou desde menina. Na verdade, as longas caminhadas e a frequência na academia a mantiveram estável durante todo o processo de desgaste de seu relacionamento. Nos exercícios, expurgava, junto com o suor, a mágoa que crescia progressivamente.

A assiduidade ao curso a afastou um tanto da rotina doméstica. Não sem o protesto velado dos que sempre se sentiram totalmente atendidos nos anos anteriores. Sabia que a separação iminente a deixaria como uma laranja chupada e sem sustentação. O seu sonho teria se mostrado quase um pesadelo se não fosse a presença dos filhos, pessoas boas e sensíveis. Compreendia perfeitamente a atitude de Mirian, que se deixava levar por uma estratégia torpe de Bento para atingi-la.

Sempre ouvira dizer que a paixão, o amor, as afinidades sentimentais tinham um prazo de validade variável, a depender de quem os compartilhasse. Apenas não sabia que poderiam tão facilmente puírem com o tempo ou até se transformarem em outra coisa e que a sua dedicação viesse a inspirar desprezo por quem foi objeto dela. Quais leis regeriam as emoções?

No curso, percebeu que um rapaz, quinze anos mais novo, lhe dedicava uma atenção maior. Nos momentos mais intensos de sua crise conjugal, quando sentia quase ceder à depressão, magicamente ele surgia com uma frase engraçada, uma palavra agradável, uma ação de solidariedade, como quando a ajudou em um trabalho importante. Começou a se sentir atraída por seu sorriso aberto. Sua presença física que parecia lhe proporcionar uma sombra refrescante em dias quentes de verão.

Defensivamente, começou a se evadir de situações ou lugares que os colocasse juntos. O que era quase impossível. Completado dois anos de curso, quando finalmente assinou as papeladas do divórcio, insistiu em ir a aula. Teve uma crise de choro em plena classe. Saiu correndo, sem perceber que ele fora atrás. Todos os mais próximos sabiam que ele a amava, o que havia despertado o ressentimento de algumas moças que não entendiam o que ele vira naquela “velha”. Quando parou de correr e se posicionou no muro junto a uma árvore, ouviu a voz de Satriani a lhe chamar suavemente: Sarah!… Não sabia se aquilo aconteceria, mas queria que ele a tivesse a seguido. Quando se voltou, o abraçou e o beijou como se fosse o último gole de água na terra ressequida.

Dali por diante, ficaram juntos sempre que puderam. Eram alunos esforçados e não queriam que o aprendizado fosse prejudicado. Esse apoio fez com que melhorassem as notas, mutuamente. Quase sem querer, faziam planos para o futuro. Para ele, aconteceu de maneira natural. Para ela, foi uma surpresa se envolver tão rápida e profundamente com outra pessoa.

O fato dele ser mais jovem não trouxeram dúvidas quanto ao seu sentimento. Ela o percebia ponderado e seguro como nunca sentira que Bento fosse. Enquanto este vazava vaidade por todos os poros, aquele, muito bonito, sequer parecia saber o efeito que causava em mulheres e homens. E dentre todos, ele preferiu deferi-la com a sua atenção. Isso a fez sentir o quanto era prazeroso não apenas ofertar, mas igualmente receber dedicação.

Seus pais, pessoas de posturas libertárias, cuidavam para que o filho observasse a liberdade com responsabilidade. Por isso, ao se apaixonar pela bela mulher de rosto maduro, mas com um quê de inocência, não quis invadir a sua vida com a sua paixão instantânea. Quando soube, por comentários laterais de colegas em comum, que o casamento de Sarah estava por um fio, não deixou escapar a oportunidade de se fazer presente e solidário. Sabia que enfrentaria objeções de amigos, como sabia que a barra não seria mais leve para Sarah. Contudo, com o apoio dos pais, cientes de suas decisões sãs, se sentiu confiante em viver aquele amor.

Sarah, finalmente revelou o que estava a acontecer para sua mãe, irmãs, primas e tias, que aplaudiram alegremente a incrível comunicação. Queria se aconselhar antes com a “facção” feminina da família quando e como deveria fazer o anúncio da novidade para os filhos. Disseram a ela deveria ser direta, sem muito esperar. Inevitavelmente, lhe perguntaram o que estava realmente a sentir. Sarah respondeu que, ao ficar tantos anos preservada do contato com a vida fora do lar, causou certo retardamento em sua maturidade emocional. Assumia que fora responsável por se abster de vivenciar certas emoções que a congelaram no tempo.

Sarah havia gostado de Satriani desde que o conhecera, porém nunca quis aprofundar o contato. A atração mútua só explodiu em carinhos, beijos, abraços e sexo do bom apenas após o seu divórcio. Quanto à diferença de idades, ela simplesmente respondeu, convicta, que o casamento durou apenas cinco anos e se arrastou por mais quinze. Quanto ao novo amor, qualquer tempo que se entregasse a ele –  o que a fazia muito feliz – seria com os olhos bem abertos, sentimentos reais e sem falsas expectativas. Com a intensidade redobrada de quem se sentia viva, o prazo de validade era indeterminado – um, dois, vinte anos – cada momento seria para sempre…