São mais de vinte e cinco anos a compartilhar momentos bons e ruins. Pela maneira que tento encarar a vida, mesmo os momentos supostamente ruins, foram importantes para o nosso crescimento como pessoas. Nesta foto, em que estamos juntos, preferi os tons de cinza, como se fora um registro antigo, porque o que temos é velho como o amor na Terra. Nossas linhas do rosto se confundem, quase formando um só ser.
Como você sabe, Tânia, busco viver um dia de cada vez, um momento após o outro. Tento vivenciar cada momento que vivo como se fora o último, porque assim é. Desmontar mentalmente a perspectiva de viver de esperança ou de lembrança, sem degustar o instante que passa não é fácil, mas quando conseguimos, cada minuto é um minuto novo, de novas possibilidades e de renovação de forças. Por isso, nunca acho que nada não possa se tornar melhor, se assim buscarmos empreender, ainda que igualmente tudo possa desmoronar, aparentemente.
Viver consigo a aventura de uma união, em resumo, tem tido os seus percalços, como todos as alianças em que se colocam dois seres diferentes, de vivências diferentes, de qualidades diferentes, no mesmo tempo e lugar. Saber lidar com as nossas capacidades e, principalmente, nossas incapacidades, é a melhor prova de que o ser humano, quando quer, pode alcançar as plenas possibilidades de amar.
A roupa macia-suave ao toque de minhas mãos, transformou-se em uma lembrança-cor. Não sei que nome se dá a ela, hoje – rosa choque, pink ou alguma outra derivação. Para mim, desde que eu era novinho e gostava de desenhar, a conhecia “como cor de maravilha”.
Eu a usava apenas para dar um toque diferenciado a uma cena, como as recorrentes tardes de outono ensolaradas a se porem entre as montanhas que desenhava… bem parecidas às fotos que os crepúsculos produzem atualmente de onde os observo. Na época, subia na laje para isso. Parece que mantenho alguns vícios juvenis dos quais não me livrei.
A minha mãe, com muito esforço, por achar que tivesse aptidão para o desenho, comprou uma caixa de lápis de 24 cores da Faber Castell. Era uma caixa dobrável, em que as cores eram numeradas e nomeadas. Um requinte. Eu a mantinha como um tesouro. O lápis cor de maravilha era a que menos usava. Preciosa e rara.
Quando escrever se tornou muito mais importante do que desenhar, por volta dos 12 anos, deixei a caixa de lado, para decepção da Dona Madalena. Como lembrança, eu a mantive guardada intacta até minhas filhas começarem a brincar de desenhar. Achei que deveria dar a caixa a elas como se fosse um rito de passagem. Talvez as cores tenham durado alguns meses todas juntas. Sabe-se que, rebeldes, muitos delas preferem ganhar o mundo e voltarem a colorir as cenas do nosso passado. Volta e meia, ressurgem em todo o seu fresco esplendor…
Comecei a fazer terapia bioenergética*. Inclui, além da utilização de massagens, conversar. Ter alguém com quem conversar é uma das terapias mais antigas do mundo. Antes do surgimento das teorias psicoterapêuticas, os mais velhos da família, anciões, padres ou chefes religiosos, arcavam com o ônus da ausculta dos segredos e conflitos dos componentes das comunidades. Nesse caso, desenvolver uma estrutura apreendida em experiências pessoais e coletivas, ou religiosos-filosóficos para lidar com os conflitos das pessoas que vivem em sociedade serviam como base para resolver imbróglios que poderiam terminar em crises com sérias consequências íntimas ou externas.
Mais tarde, pressupostos disciplinares científicos foram desenvolvidos para realizar essa função. Virou profissão o que antes era gracioso. Ou nem tanto, já que carregar tamanho peso deve ser difícil para quem ouve. Na Análise Psicanalítica, por mais que controle que tenha sobre suas demandas particulares, o analista também deve ser analisado. Na Igreja, o padre confessor também confessa.
Uma das solicitações do meu terapeuta é que eu deveria escrever em um papel sobre todas as minhas contradições, lembranças, ideias e desejos inconfessáveis, sentimentos conflituosos e emoções chãs. E, depois, amassar o texto e… jogá-lo fora. Pedir para um escritor tal coisa é como ordenar para que alguém mate seu filho. Como Miguel, apesar do nome de anjo, não é Deus e eu não sou Abraão, argumentei com ele que seria cabalmente impossível que isso ocorresse. Mesmo que malfeito, nunca rejeitaria um filho. Além disso, é no processo confessional que assento grande parte da construção do meu texto, mesmo que não claramente, já que parte de meus personagens assumem a autoria dos meus crimes.
No entanto, também sabia que ainda que dissesse quase tudo, havia coisas que nem às paredes, aos papéis e às telas de computador confessava. Sempre há como ir mais fundo quando chegamos ao fundo do poço. Dessa maneira, decidi escavar os meus preconceitos, minhas frases escatológicas ditas em tom de brincadeira, minhas pequenas maledicências – venenos endógenos. Nada como a confissão feita ao padre da Primeira Comunhão, quando revelei que não obedecia sempre à minha mãe, algo tão grave que foi recebido com sorrisos pelo pároco.
Criei um projeto chamado “Rejeito”. Nessa lixeira, decidi colocar frases, passagens, situações e ideias que considerasse pecaminosos demais para expor de cara limpa com o meu nome à frente. Talvez, com passar do tempo, tanto quanto o padre confessional, eu sorria ao perceber que não se tratava de algo tão grave. Nada que dois Pais Nossos e duas Aves Marias não resolvam e acalmem minh’alma. Ou talvez, seja um repositório que venha a me desconstruir de tal forma como personagem de mim mesmo que eu prefira morrer.
* A análise bioenergética, também conhecida como psicoterapia bioenergética, terapia bioenergética e bioenergética, é uma terapia criada em 1955 por Alexander Lowen (1910-2008) e John Pierrakos (1921-2011) a partir das pesquisas de Wilhelm Reich (1897-1957). Fundamenta-se na integração entre mente e corpo. Sua função é resgatar o contato consigo mesmo, com as percepções corporais e emocionais. O foco é o olhar para o cliente como um todo, integrando corpo, mente, emoções e racionalidade. (Wikipédia)