
Comecei a fazer terapia bioenergética*. Inclui, além da utilização de massagens, conversar. Ter alguém com quem conversar é uma das terapias mais antigas do mundo. Antes do surgimento das teorias psicoterapêuticas, os mais velhos da família, anciões, padres ou chefes religiosos, arcavam com o ônus da ausculta dos segredos e conflitos dos componentes das comunidades. Nesse caso, desenvolver uma estrutura apreendida em experiências pessoais e coletivas, ou religiosos-filosóficos para lidar com os conflitos das pessoas que vivem em sociedade serviam como base para resolver imbróglios que poderiam terminar em crises com sérias consequências íntimas ou externas.
Mais tarde, pressupostos disciplinares científicos foram desenvolvidos para realizar essa função. Virou profissão o que antes era gracioso. Ou nem tanto, já que carregar tamanho peso deve ser difícil para quem ouve. Na Análise Psicanalítica, por mais que controle que tenha sobre suas demandas particulares, o analista também deve ser analisado. Na Igreja, o padre confessor também confessa.
Uma das solicitações do meu terapeuta é que eu deveria escrever em um papel sobre todas as minhas contradições, lembranças, ideias e desejos inconfessáveis, sentimentos conflituosos e emoções chãs. E, depois, amassar o texto e… jogá-lo fora. Pedir para um escritor tal coisa é como ordenar para que alguém mate seu filho. Como Miguel, apesar do nome de anjo, não é Deus e eu não sou Abraão, argumentei com ele que seria cabalmente impossível que isso ocorresse. Mesmo que malfeito, nunca rejeitaria um filho. Além disso, é no processo confessional que assento grande parte da construção do meu texto, mesmo que não claramente, já que parte de meus personagens assumem a autoria dos meus crimes.
No entanto, também sabia que ainda que dissesse quase tudo, havia coisas que nem às paredes, aos papéis e às telas de computador confessava. Sempre há como ir mais fundo quando chegamos ao fundo do poço. Dessa maneira, decidi escavar os meus preconceitos, minhas frases escatológicas ditas em tom de brincadeira, minhas pequenas maledicências – venenos endógenos. Nada como a confissão feita ao padre da Primeira Comunhão, quando revelei que não obedecia sempre à minha mãe, algo tão grave que foi recebido com sorrisos pelo pároco.
Criei um projeto chamado “Rejeito”. Nessa lixeira, decidi colocar frases, passagens, situações e ideias que considerasse pecaminosos demais para expor de cara limpa com o meu nome à frente. Talvez, com passar do tempo, tanto quanto o padre confessional, eu sorria ao perceber que não se tratava de algo tão grave. Nada que dois Pais Nossos e duas Aves Marias não resolvam e acalmem minh’alma. Ou talvez, seja um repositório que venha a me desconstruir de tal forma como personagem de mim mesmo que eu prefira morrer.
* A análise bioenergética, também conhecida como psicoterapia bioenergética, terapia bioenergética e bioenergética, é uma terapia criada em 1955 por Alexander Lowen (1910-2008) e John Pierrakos (1921-2011) a partir das pesquisas de Wilhelm Reich (1897-1957). Fundamenta-se na integração entre mente e corpo. Sua função é resgatar o contato consigo mesmo, com as percepções corporais e emocionais. O foco é o olhar para o cliente como um todo, integrando corpo, mente, emoções e racionalidade. (Wikipédia)
Eu já joguei muito escrito fora. No começo, eu guardava tudo. Absolutamente tudo. Rascunhos que mesmo não utilizados, estavam lá a ocupar espaço. Compreendi depois de algum tempo, algumas coisas são apenas exercícios. A mente precisa compreender o ritmo da ‘desova. Claro que nada disso acontece num estalar dedos. Mas aconteceu e isso é o que importa para mim. Para cada pessoa – escritor um ritmo, estilo, mania e manhas. Conversar, no entanto, foi algo que aprendi a fazer desde cedo, mas não com qualquer pessoa. Tenho minhas restrições. RS
Eu ainda não desenvolvi esse despeço, Lunna. Quanto a conversar, creio que eu seja tão restritivo quanto. Uma das pessoas com as quais troco palavras mais íntimas é, justamente, você. Mesmo porque, você me desnuda, me desconstrói e me reposiciona, por editar os meus textos – escritos ou discursados.