23 / 08 / 2025 / BEDA / Lua E Estrela

“A Lua e a Estrela, anel de turquesa…” — Trem das Cores (Caetano Veloso). 

Sônia Braga interferiu no cancioneiro nacional através de duas composições: Tigresa e Trem das Cores. E, sabe-se lá, talvez muitas outras do mesmo autor. Fosse eu o compositor, certamente não deixaria de me inspirar em tamanha força da Natureza feito a atriz intensa e talentosa. Eu cheguei a escrever um conto chamado Tigresa em homenagem a ela. A Tânia não gostou dele porque achou o narrador um tanto capacho demais. Falo de um homem totalmente preso à sua irresistível paixão em que somente algumas migalhas de carinho bastavam para enternecê-lo. Libertária, a minha Tigresa passava como um trator por cima dos homens e assim como alguém já disse em uma conversa solta, “não passava vontade”. Enfim, uma mulher digna de inspirar o melhor dos homens a melhorar o mundo com poesia da maior qualidade.

Foto de Sônia Braga por Jean-Pagliuso-Photography-Inc

09 / 05 / 2025 / Rita Lee*

*Há dois anos, em 2023, Rita Lee, se encantou definitivamente. Deve estar lá, entre os seus amigos extraterrestres, brincando com as estrelas que brilham tanto quanto ela no firmamento da eternidade da qual somos feitos… Por ocasião de sua passagem para outro estado de ser, escrevi:

RITA LEE,
como é que você se sente em se tornar imortal?
Como é ser um ser total?
Não bastava ser a mais completa tradução de Sampa?
Ser a mulher que traduziu como ninguém uma mulher, em “Cor-De-Rosa-Choque“?
Não bastava reverenciar a vida de modo libertário, como em “Lança Perfume“?
Não bastava cantar o inconformismo e a inadequação de todos os adolescentes e muitos adultos –– homens, mulheres, mais que mulheres, mais que homens –– em “Ovelha Negra“?
E muito além, para quem não se adequa ao mundo?
Homenagear o amor em “Mania de Você” e em tantas outras composições?
De ser mutante, iconoclasta, vibrante, permitiu-se deprimir quando acontecia, expor as suas vísceras e surgir renascida.
Maior personagem de si mesma, entre tantas identidades que assumiu.
Não bastava ser maior que a Vida, você tinha que ser imortal, a partir do momento que nos deixa fisicamente.
Rainha, padroeira da liberdade, entre outras rainhas, uma mulher, principalmente.
Nosso amor imortal, vá reinar em outra dimensão!

Uma Só Asa*

Eu, até os meus quatorze ou quinze anos, escutava muito mais músicas brasileiras do que estrangeiras. Corria o início dos anos 70. Era bastante fascinado pelas letras, que em conjunto com as belas melodias, compunham o meu acervo poético, para quem não tinha tanto acesso à literatura em versos para além dos livros didáticos do ginásio.

Entre os compositores que apreciava, Chico Buarque era um dos meus favoritos. As suas composições, falando das mulheres como se fora uma mulher, me influenciou grandemente. Eu, que apenas queria entender aquele ser que se expressa fortemente através de uma parte do corpo que os homens nem sequer imaginam o poder — o útero — o usei como referência em muitos aspectos. Quando ouvia “Com Açúcar, Com Afeto”, “Cotidiano” e “Sem Açúcar”, por exemplo, sabia que era apenas um contraponto, já que a minha mãe, minha referência imediata, não se parecia com aquelas mulheres aparentemente submissas. Mais recentemente, ao pesquisar “Mulheres De Atenas”, soube se tratar de uma passagem da peça teatral de Augusto Boal, de 1976, versando sobre uma mulher libertária — Lisa, Mulher Libertadora — que critica a sociedade patriarcal, em pleno Regime Militar.

Nos versos a seguir, que fiz para um projeto musical apenas iniciado, mas nunca levado adiante, tento me colocar no lugar de uma mulher. Espero que as minhas amigas sintam pelo menos um pouco representadas por eles. Se não, perdoe a intromissão nesse universo que tento compreender até sempre!


Uma Só Asa

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?

Um anjo caiu em meu quintal e foi assim
Uma luz, um estrondo… e um rapaz se ergueu
Entre a garagem coberta e o canteiro do jardim
De seus ombros largos, apenas uma asa, a outra se perdeu…

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?

Vestia uma roupa muito branca, quase transparente
Deixava entrever as formas de um corpo esguio
Jeito de menino-homem, com a sua asa pendente
Caminhando decidido, veio direto para mim, bravio

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?

Não tive medo, não pensei neste tempo doentio
Parece até que o esperava, o buscava em meu sonho
Não aguardava que fosse um anjo vindo do vazio
Mas senti que ele seria aquele ser que chegara risonho…

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?

Ao se aproximar, pegou em minha mão, que tremia
Beijou a minha testa e baixou os lábios até a minha boca
Apenas entreabriu a sua e soprou que me queria
Que já há algum tempo me observava e que chegara a nossa época…

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?

Perguntei sobre a asa que não trazia, a que havia sumido
Respondeu que começou a pensar apenas em mim e que caíra em casa
Já amputado, porém feliz, pois fora atendido em seu pedido
E dessa maneira, ganhei o meu homem, um anjo de uma só asa…

Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor?
Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?”

Imagem: Foto por Francesco Ungaro em Pexels.com

*Texto de 2015

Projeto Fotográfico 6 On 6 / As Minas E As Manas Da Família

Não deveria ser necessário um dia especial para comemorar a existência da mulher. Por ser um homem que as ama, eu as valorizo todos os dias. Alguma mulher poderia perguntar que tipo de mulher eu amaria. Com toda a razão, aliás. Há homens que “preferem” amar mulheres que se atenham a se apresentarem como objetos sexuais ou que se restrinjam a tarefas específicas, normalmente ligadas a funções de menor alcance social, ainda que fundamentais.

Eles não admitem contestação ou qualquer sinal de maior capacidade mental e, muito menos, física – espaço em que tenta mostrar maior predomínio – como se merecesse distinção por ser o caçador dos primeiros grupamentos humanos. De fato, quando encontra uma possível companheira que alia atrativos físicos a identificação aos papéis designados pelo Patriarcado, sacramenta a união.

Eu sou fascinado pelas mulheres em toda a complexidade e atributos. Torço por aquelas que ainda não descobriram o poder que carregam. Admiro àquelas que buscam alcançar a plenitude propalada pelo movimento feminista. Mesmo as que originalmente tenham nascido no gênero masculino e se sentem femininas. Acredito que possam encontrar as suas identidades como mulheres, para além de efeitos hormonais.

Ainda garoto, buscava respeitar as meninas e as irmãs. As minas e as manas – as próximas e as distantes – eram, acima de tudo, motivo de admiração e fascínio. Com a minha irmã parental, tinha altercações motivadas por nossas personalidades impositivas. Típicas entre irmãos que competem entre si por atenção ou espaço. Mas nunca deixei de reconhecer a sua força e importância. Atualmente, temos uma relação estável em que o convívio é mais harmonioso, dentro do que seja possível entre um libriano e uma capricorniana.

Depois de me abster da vida social até quase os vinte e cinco anos, para além do estudantil e profissional, comecei a pensar que pudesse enfim me envolver romanticamente com a contraparte da espécie. Foi um processo penoso, já que não é nada confortável estar diante de pessoa uma autônoma, de vivência díspar, vontade e desejos divergentes e, ainda assim encontrar mais similaridades do que incongruências, para seguir no caminho da construção de uma família.

E assim, no encontro com a Tânia, surgiu o meu grupo mais íntimo, formado por nós dois e as três meninas. Antes, apenas filhas, essas minas são também manas, já que adultas, passamos a conversar de igual para igual sobre os assuntos mais prementes da Sociedade – da eleição do Ignominioso Miliciano à Guerra da Ucrânia, dos refugiados da cotidiana guerra invisível em nosso próprio País à afirmação libertária da mulher diante do Patriarcado.

A base da qual eu venho é de uma relação abusiva de minha mãe por meu pai. Ausente muitas vezes, quando voltava para casa, a saudade e o respeito terminavam gradativamente feridos, sendo substituídos pelo medo. Eu o tenho como um exemplo a não ser seguido. Todo o desprezo que tentou incutir em mim pelas mulheres (assim, no coletivo, para despersonalizá-las), foi barrado pela energia descomunal de minha mãe, Dona Madalena, que nos criou praticamente só, realizando todos os tipos de trabalhos para nos manter saudáveis e aptos, pelo estudo, a nos tornarmos cidadãos plenos. Nela, encontrei o resumo de tudo o que uma mulher consegue realizar, apesar da pobreza material, habitantes da Periferia paulistana. Nós nos tornamos – seus três filhos – pessoas de bem.

A Família Ortega, do pai ausente, no Natal de 2002, de mesa farta como gostava, Dona Madalena e seus três filhos: Humberto, eu e Marisol.
A primogênita, Romy. De personalidade esfuziante, apesar de todas as tribulações que vive pela saúde instável, resta dizer que é de Leão, ou seja, o Sol nasce quando ela chega. Trabalha numa área de atuação semelhante à minha. Por mais que eu objetasse, nunca interferi nos projetos das minhas filhas, principalmente se as fizessem felizes.
A moça da foto, Ingrid, nasceu sob os eflúvios de Aquário. Dizia, quando era criança, que seria advogada. Hoje, a mulher pequena no tamanho, desenvolve um grandioso projeto de auxílio à pessoas desprovidas de recursos para se defenderem da injustiça institucional por raça ou classe social.
Lívia, a mais nova, administradora, de personalidade forte e aguerrida como as outras, a escorpiana de mão cheia, ainda está tentando encontrar o equilíbrio que os números pretendem representar. Com o tempo, perceberá que a vida sempre apresentará saldos positivos, apesar do quadro das entradas e saídas apresentarem déficits financeiros.
Tenho certeza que é pelo amor que a sagitariana Tânia tem espalhado pelo mundo ao cuidar, como Enfermeira, daqueles que sofrem, curando ou minimamente aliviando suas dores, que terá o seu nome reconhecido. Pelo amor dos nossos amigos cachorros que receberam abrigo, alimento e carinho em sua casa. Alguns que depois foram para outros lares e os que estão conosco, dos quais receberá lambidas eternas em seu coração. Pelas plantas que produzem flores, frutos, visitantes alados e perfume. Pelo amor que devotou a quem está próximo, tão próximos que já não sabem viver sem ela em suas vidas.

Participam: Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Roseli Pedroso / Isabelle Brum

Tereza Da Praia – Uma Libertária

Tereza

Eu era novo ainda quando ouvi “Tereza da Praia” pela primeira vez. O gosto do garoto da Periferia diferia da média dos meus vizinhos, assim como dos todos os outros, à época. Eu apreciava naturalmente a música brasileira mais antiga. Tinha à minha disposição uma discoteca incompatível para alguém de padrão empobrecido, herdado de minha vó paterna. Ouvia os acetatos de 48 rotações de Maísa a Mário Zan. A minha conexão com os temas de pelo menos vinte anos antes, cantados e ouvidos quase em sequência obsessiva, era de alguém que se identificava como se fossem atuais. O que não impediu de receber com entusiasmo a chegada dos novos Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Tom Zé, Jards Macalé que, ao mesmo tempo que homenageavam os artistas tradicionais, traziam novos ares, que alguém acabou por cunhar de MPB – Música Popular Brasileira.

As canções apresentavam uma durabilidade quase irrestrita. Eram executadas por anos em programas de rádio que, sem preconceito, divulgavam o panorama musical de todas as origens e estilos: francês, português, espanhol, italiano, alemão, latino-americano – tangos, boleros, mambos, rumbas – além da hegemonia dos de língua inglesa. Os Beatles eram um capítulo à parte – um amor cego. Quando se separaram, sofri como se fosse morte em família, que a paixão por Elis substituiu gradativamente. Em meu leque de preferências incluía Elton John, David Bowie, Michael Jackson, entre outros – para acompanhar os sempre cativos Frank Sinatra, Nat King Cole, Ray Charles e Elvis Presley. Hoje, mortos quase todos, tornaram-se eternos.

Mas, voltando ao tema desta crônica, “Tereza da Praia”, com letra de Billy Blanco e música do magnífico Tom Jobim, foi composta em 1954 na formação da Bossa Nova, que eclodiria com força total no final dos Anos 50, com João Gilberto e a divina Elizeth Cardoso – “um banquinho e um violão”, voz pequena, melodias ricas com características jazzísticas e temas que versavam, desde sambas de uma nota só a vozes desafinadas. Para o menino criado na cultura machista desde cedo, estranhei a liberdade com que os dois homens se referiam ao objeto de afeição ao qual ambos concordavam em dividir.

Parecia natural a mim que realçassem o “corpo bonito”, a “pele morena”, o “nariz levantado”, “os olhos verdinhos”, o “cabelo castanho, uma pinta do lado” – características físicas externas atraentes desde sempre para qualquer homem, inclusive para este imberbe sem experiência no contato feminino, a não ser em sonhos e figuras imagéticas da TV e Cinema. Minha profundidade rasa impedia que vislumbrasse algo mais por baixo dos sorrisos bonitos e trejeitos sedutores. Aliás, são poucos os homens que ultrapassam o superficial, mesmo depois de adultos. A atitude liberal dos contendores pela atenção da amada Tereza era algo totalmente inédito na cultura machista do brasileiro.

“É a minha Tereza da praia
Se é tua, é minha também
O verão passou todo comigo
O inverno pergunta com quem…”

Os namorados concluem que a namorada não deveria “pertencer” nem a um, nem a outro. Decidem deixá-la “aos beijos do Sol e abraços do Mar”, que “Tereza é da praia, não é de ninguém”. Uma figura livre e independente. A canção de 65 anos antes, foi regravada recentemente por Roberto Carlos – outra grande influência minha – e Caetano Veloso, de forma mais leve e casual. O lançamento original fez grande sucesso e trazia alguns detalhes que apimentavam sua composição: havia certa rivalidade entre Dick Farney, maravilhoso pianista e cantor e Lúcio Alves, de voz de veludo, dos quais era fã; o nome Tereza era o mesmo da esposa de Tom Jobim, referência que pareceu uma homenagem ousada. Além dela, especulava-se quem poderia ser Tereza, entre as muitas frequentadoras das praias do Leblon, onde se passava a história. Mais tarde, Billy Blanco chegou a fazer outra canção com o mesmo nome, mas segundo relatou, não se tratava dessa mesma, adindo que aquela não fora baseada em ninguém, especialmente.

Contudo especial Tereza se tornava ao representar uma mulher irreprimível, que apenas por seu desejo ficaria com alguém. Não se compromissava em destinar sua atenção somente para um dono-destinatário. Quem quisesse “tê-la”, que se conformasse com parte do tempo apenas. Anunciava a mulher libertária – ainda que se unisse oficialmente a um homem – isso não daria a ele a chancela de transformá-la em objeto de pertencimento, física e mentalmente, a não ser que quisesse. Seria o prenúncio de um mundo novo, novas diretivas, uma nova tendência, se atualmente não víssemos o tempo retroceder para muito antes de nascermos.

https://youtu.be/gC-7RAAOQbI