Tereza Da Praia – Uma Libertária

Tereza

Eu era novo ainda quando ouvi “Tereza da Praia” pela primeira vez. O gosto do garoto da Periferia diferia da média dos meus vizinhos, assim como dos todos os outros, à época. Eu apreciava naturalmente a música brasileira mais antiga. Tinha à minha disposição uma discoteca incompatível para alguém de padrão empobrecido, herdado de minha vó paterna. Ouvia os acetatos de 48 rotações de Maísa a Mário Zan. A minha conexão com os temas de pelo menos vinte anos antes, cantados e ouvidos quase em sequência obsessiva, era de alguém que se identificava como se fossem atuais. O que não impediu de receber com entusiasmo a chegada dos novos Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Tom Zé, Jards Macalé que, ao mesmo tempo que homenageavam os artistas tradicionais, traziam novos ares, que alguém acabou por cunhar de MPB – Música Popular Brasileira.

As canções apresentavam uma durabilidade quase irrestrita. Eram executadas por anos em programas de rádio que, sem preconceito, divulgavam o panorama musical de todas as origens e estilos: francês, português, espanhol, italiano, alemão, latino-americano – tangos, boleros, mambos, rumbas – além da hegemonia dos de língua inglesa. Os Beatles eram um capítulo à parte – um amor cego. Quando se separaram, sofri como se fosse morte em família, que a paixão por Elis substituiu gradativamente. Em meu leque de preferências incluía Elton John, David Bowie, Michael Jackson, entre outros – para acompanhar os sempre cativos Frank Sinatra, Nat King Cole, Ray Charles e Elvis Presley. Hoje, mortos quase todos, tornaram-se eternos.

Mas, voltando ao tema desta crônica, “Tereza da Praia”, com letra de Billy Blanco e música do magnífico Tom Jobim, foi composta em 1954 na formação da Bossa Nova, que eclodiria com força total no final dos Anos 50, com João Gilberto e a divina Elizeth Cardoso – “um banquinho e um violão”, voz pequena, melodias ricas com características jazzísticas e temas que versavam, desde sambas de uma nota só a vozes desafinadas. Para o menino criado na cultura machista desde cedo, estranhei a liberdade com que os dois homens se referiam ao objeto de afeição ao qual ambos concordavam em dividir.

Parecia natural a mim que realçassem o “corpo bonito”, a “pele morena”, o “nariz levantado”, “os olhos verdinhos”, o “cabelo castanho, uma pinta do lado” – características físicas externas atraentes desde sempre para qualquer homem, inclusive para este imberbe sem experiência no contato feminino, a não ser em sonhos e figuras imagéticas da TV e Cinema. Minha profundidade rasa impedia que vislumbrasse algo mais por baixo dos sorrisos bonitos e trejeitos sedutores. Aliás, são poucos os homens que ultrapassam o superficial, mesmo depois de adultos. A atitude liberal dos contendores pela atenção da amada Tereza era algo totalmente inédito na cultura machista do brasileiro.

“É a minha Tereza da praia
Se é tua, é minha também
O verão passou todo comigo
O inverno pergunta com quem…”

Os namorados concluem que a namorada não deveria “pertencer” nem a um, nem a outro. Decidem deixá-la “aos beijos do Sol e abraços do Mar”, que “Tereza é da praia, não é de ninguém”. Uma figura livre e independente. A canção de 65 anos antes, foi regravada recentemente por Roberto Carlos – outra grande influência minha – e Caetano Veloso, de forma mais leve e casual. O lançamento original fez grande sucesso e trazia alguns detalhes que apimentavam sua composição: havia certa rivalidade entre Dick Farney, maravilhoso pianista e cantor e Lúcio Alves, de voz de veludo, dos quais era fã; o nome Tereza era o mesmo da esposa de Tom Jobim, referência que pareceu uma homenagem ousada. Além dela, especulava-se quem poderia ser Tereza, entre as muitas frequentadoras das praias do Leblon, onde se passava a história. Mais tarde, Billy Blanco chegou a fazer outra canção com o mesmo nome, mas segundo relatou, não se tratava dessa mesma, adindo que aquela não fora baseada em ninguém, especialmente.

Contudo especial Tereza se tornava ao representar uma mulher irreprimível, que apenas por seu desejo ficaria com alguém. Não se compromissava em destinar sua atenção somente para um dono-destinatário. Quem quisesse “tê-la”, que se conformasse com parte do tempo apenas. Anunciava a mulher libertária – ainda que se unisse oficialmente a um homem – isso não daria a ele a chancela de transformá-la em objeto de pertencimento, física e mentalmente, a não ser que quisesse. Seria o prenúncio de um mundo novo, novas diretivas, uma nova tendência, se atualmente não víssemos o tempo retroceder para muito antes de nascermos.

2 thoughts on “Tereza Da Praia – Uma Libertária

  1. Não conhecia a música… e achei curioso mencionar a separação dos Beatles. Soube bem depois, por razões obvias, mas ao ler a respeito, não me surpreendeu… sempre fui fá do Paul e o considerava muito mais musical que o outro. Nunca fui fã do outro Beatle, nem da senhora com quem se casou. Já a dama Elis Regina me seduziu ainda na infância. Ouvi redescobrir e embora não fosse capaz de compreender a letra, me encantou pelo ritmo-voz e pedi ajuda para compreender “vai o bicho homem, fruto da semente (memória) ver nascer da própria força, própria luz e fé (memória) entender que tudo é nosso, sempre esteve em nós (história) somos a semente, ato, mente e voz (magia)”… só soube que a letra não era dela anos depois, já em Sampa, quando também soube de sua morte e me senti estranha, o mesmo se deu quando soube da morte de Hilda Hilst em 2004, dias depois de eu sabê-la poeta, senhora de versos que me falavam alto.
    Enfim, a vida tem essas sentimentalidades alinhavadas por pequenos detalhes curiosos.

    bacio

  2. Ah, Elis! A canção de Gonzaguinha, que citou, e outras tantas que ela “criou”, ao interpretar de maneira que qualquer outra versão tornou-se apenas homenagem, mostra o quanto Elis foi importante para o desenvolvimento da música brasileira. Após o seu passamento, nosso cenário musical ficou mais pobre porque ela tinha o poder de lançar novos compositores e valorizar novos movimentos.

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