A criança que eu fui sei que está aqui em algum lugar de minhas fibras corporais e frequências mentais. De vez eu quando, eu sonho a criança e, outras tantas vezes é a criança que sonha a mim. E ela me sonha um homem melhor… São os melhores sonhos que eu-ela-nós temos… No entanto, ainda que eu a deixe aflorar no adulto (eufemismo para um corpo velho) que sou, a tornar o meu olhar mais poético, quero preservá-la dos ataques da realidade insana que insiste se abater sobre nós. Tento recolhê-la a um canto de mim e peço a ela que se esconda. No máximo, observe. Mas como é curiosa e criativa, inventa(mos) versões fantasiosas sobre tudo o que nos rodeia. Tenho apreço e saudade dessas histórias. Porque mostra o que fui e sou de mais puro.
O menino contador de histórias era pobre, mas tão rico! Muito mais rico do que eu sou agora, ainda que consiga pagar todas as contas e possa comprar brinquedos de adultos como os que considerava impossível ter um dia. Porque para ele-eu-nós estava claro que viveríamos no limite dos gastos básicos, em nossa casa de piso de “vermelhão” e janelas de madeira, a puxar água de poço, a tomar banho de canequinha a base de sabão de côco, com água esquentada na laje pelo sol, a expulsar os cavalos que insistiam em comer a cerca de bucha, a cuidar de galinhas e patos.
O adulto tem consciência que deve manter a criança viva a qualquer custo! É uma luta inglória, pois se até o adulto mal consegue manter a sanidade diante de tantas solicitações… “Não seja infantil, Obdulio!” – é o que me dizem quando o adulto não sabe lidar com os assuntos “importantes”. Os assuntos que são grandes demais, segundo a avaliação de tantos, me causam estranheza. Cumpro as regras, obedeço ao ritual e, nesses momentos, me sinto falso, me traio… Mas são nesses momentos que o menino me salva… É quando vejo a criança surgir ligeira e suja de lama a correr pelos gramados-terrões recém-molhados-enlameados pela última chuva, a jogar bola, a empinar pipa, a sorrir contra o vento, a ouvir a voz de minha mãe – mais viva do que nunca! – a ralhar comigo… Nesses momentos, me torno um ser mais íntegro… Eu me sinto integral…
*Texto de Outubro de 2016, em crônica publicada pela Scenarium.
Hoje, eu encontrei a Filosofia na saída da academia. Ela vinha da aula de natação, trajava um vestidinho rosa e não devia ter mais do que três anos de idade. A moreninha, rápida e esperta, correu à frente de sua mãe, fazendo com que ela a advertisse: “Pare, Filosofia! Me espere!”. Como Filosofia não a obedecesse e rapidamente atravessasse a catraca por baixo, fazendo menção de ir à rua, sua mãe gritou: “Não corra, Filosofia!”. Eu, que estava um pouco adiante, já me preparava para segurá-la a fim de evitar que fosse para o asfalto. Acho que, assustada com a minha presença, parou repentinamente e me olhou com os seus olhos curiosos, a tempo da mãe alcançá-la e ralhar por seu comportamento.
Senti-me reconfortado com a possibilidade de ter salvado a Filosofia de sofrer algum acidente. Imediatamente, comecei a desejar o melhor futuro possível para aquela menina de nome tão pouco usual. No caminho de volta para casa, fiquei pensando que mesmo neste mundo tão prático, ainda podemos encontrar a Filosofia em qualquer lugar, como na academia de atividades físicas…
“Hoje, volto para São Paulo e me despeço deste meninão, Fred. Jovem, três ou quatro anos, já passou poucas e boas – atropelamento, tentativa de homicídio – mas segue em frente, com sua voracidade de viver. Saía à noite com ele para andar junto ao mar e para explorar as redondezas. Farejava cada recanto e marcava a sua passagem com seu cheiro (não sei de onde retira tanta urina). Não gosta de outros cães e muito menos de carros e motoqueiros, demonstrando seu ressentimento contra essas máquinas – lembranças de seu sofrimento. Porém, gosta de gente que encontra à pé, portanto, desarmada. Foge de casa sempre que pode, mas volta tempos depois de dar as suas voltas, às vezes machucado por brigas com outros cães. É um ser contraditório como todos nós, humanos. Como dois solitários que estávamos ou somos, passamos a nos compreender. Até a volta, meu amigo!”.
Atualmente, Fred é meu vizinho em São Paulo. Mora na casa ao lado, com a minha irmã, Marisol. Tanto ele, quanto Marley, que se juntou a ele no ano seguinte, foram trazidos-resgatados da casa que estavam – nossa própria casa – ocupada por invasores. A propriedade da Praia Grande contém duas casas. Nós ficávamos na casa de trás. A da frente estava sendo ocupada por um pessoal que não admitia sair depois que solicitamos a sua devolução. Deixaram um sujeito dormindo no local para demonstrar que alguém do grupo residia ali. Como o caso foi parar na Justiça, não a deixariam até que fosse assim decretado.
Eu voltava sempre que podia, uma tradição pessoal que se repetia nos três primeiros meses do ano, desde a minha adolescência. Minha mãe, a deixou equipada da maneira que sempre quis para receber a família no verão. Ver aquele espaço profanado com desdém pelos invasores era não apenas difícil, mas bastante ofensivo. Porém, com a Pandemia e as resolução que impedia o despejo de imóveis nesse período, tínhamos que esperar que tudo passasse.
Em meados de Março de 2020, quando cumpria mais uma suposta pequena temporada na Praia Grande, desta vez durante a vacância causada pelo que supúnhamos ser um momentâneo intervalo no cronograma de nos nossos eventos pela Ortega Luz & Som, foi decretado o controle de idas e vindas de pessoas e veículos entre as cidades. Acabei ficando mais tempo do esperava, o que acabou sendo bom para o Fred e o Marley. Voltei em outras oportunidades nas quais aproveitei para andar bastante de bicicleta, fazer caminhadas, escrever e cuidar dos dois. Nesses períodos, eu alimentava os “meninos” e eles dormiam comigo dentro de casa. Eram momentos de escape da rotina interminável de serviços caseiros entre acordar e dormir. Mas o entrechoque com os invasores foi aumentando e ir para a PG foi se tornando mais motivo de estresse do que relaxamento.
Para tentar controlar a situação para quando meus irmãos e eu não estávamos, foram instaladas câmeras que registravam a frequente ausência do sujeito. Apenas graças à benevolência de vizinhos, que colocavam comida através de aberturas no portão, os “meninos” foram alimentados. Instalamos bebedouro e comedouro para que não ficassem sem água e alimento. Mas uma gravação mostrava o sujeito retirar comida do comedouro para levar para o cachorro da casa onde estavam as outras pessoas do grupo. Para piorar, outra gravação mostrava o sujeito os espancando com fio elétrico. Antes mesmo que nos fosse devolvida a casa, em certa oportunidade, aproveitando a ausência do sujeito, retiramos o Fred e o Marley do local. Nossa suposição é que eles eram usados como uma espécie de prova de ocupação.
Apenas ao final do primeiro trimestre de 2021, a situação foi resolvida. A justiça nos restituiu o imóvel. Voltamos a nos assenhorar de uma casa depredada, com muitas reformas a serem realizadas. Mas o melhor foi ver renovado o sentimento de “volta para casa” da mãe.
A Tânia me avisou que estaria para chegar uma entrega. Um presente mim. Disse que não precisava. Ela retrucou que já seria o presente de Natal. Essa informação me fez lembrar da proximidade da data, enquanto tentava realizar as tarefas comezinhas do cotidiano — varrer, passar pano no chão, lavar a louça, recolher a roupa no varal. Por ter que ficar atento às chamadas no portão, com a campainha quebrada, as peludas me ajudariam no alarme com os seus latidos. Quando o entregador chegou, estava resolvendo questões de trabalho ao telefone. Recebi o pacote, ao qual achei muito leve, o deixei sobre a mesa da sala de jantar e voltei minha atenção para o que eu estava fazendo. Mais tarde, a própria presenteadora abriu a embalagem e começou a montar o artefato. Bem, pensei, é um presente para mim e para a casa. Naquele momento, me senti como a dona-de-casa de antigamente em que o marido diz que lhe fará um regalo. Enquanto esperava que fosse uma bolsa ou vestido, recebia uma panela de pressão. Quando mencionei o fato, rindo, ela disse que o meu presente chegaria outro dia. Mas não deixou de relatar o episódio para as meninas e é óbvio que virei motivo de brincadeiras na família. Entres risos francos, disseram que aquilo seria uma espécie de pequeno reparo histórico contra a dominação do sistema patriarcal imposto às mulheres.
Finalmente chegou o presente da Tânia. De fato, presentes — três lindos pares de calçados. Eu tenho mais sapatos do que costumo usar por dois motivos. O primeiro, porque elejo favoritos e costumo passar temporadas com eles, muito mais pelo conforto do que pela beleza. O segundo, porque costumo usá-los até o limite. Recentemente, relatei o episódio do estouro do solado de um dos pares em pleno Centro. Se houvesse uma terceira razão, teria a ver com o meu passado de garoto pobre que durante muito tempo teve um par de conguinhas, um par de sapatos para sair e um par de chinelos. Ter sapatos em demasia me deixa um tanto acabrunhado, como se não devesse… Porém, casado, com filhas que gostam me ver mais estiloso, tenho aberto mão dessa sensação para não ser eu as acabrunhar.
A minha mãe adorava o Natal. Mesmo na época das vacas magras, fazia questão de montar o presépio e a árvore, com os devidos enfeites. O velho presépio até hoje pontua em minha lembrança. Colocávamos sobre um espelho sem moldura, a grama (papel verde), terra para fazer o caminho, demarcado com pedrinhas que pegávamos no quintal. Armávamos o estábulo, colocávamos a manjedoura com o menino Jesus, uma vaquinha junto a ela, para aquecê-lo com a sua respiração. José, de um lado, Maria, de outro. Os carneiros espelhados pelo campo e os Três Reis Magos à entrada do lugar sagrado. Perto do estábulo, corria um rio que serpenteava a região. A água era referenciada pelo efeito causado pela parte do espelho descoberto. O presépio, seguindo a tradição hispânica. era desmontado apenas no Dia de Reis, quando as crianças recebiam os presentes trazidos pelos magos reais. Com o tempo e a massiva propaganda comercial, o Natal passou a ser esse dia.
Outra coisa que a Dona Madalena adorava era a ceia de Natal. Mulher que sabia aglutinar pessoas ao seu redor, a casa até nos dias mais precários, estava sempre de gente. Só fico a imaginar como ela conseguia, sem dinheiro, fazer essas reuniões. Suponho que os irmãos, em melhor situação financeira, deviam ajudá-la. Essa fase difícil se devia a ausência de meu pai, perseguido pela repressão da Ditadura, passando longas temporadas sem paradeiro definido. Até ser finalmente preso. Quando saiu, passou a trabalhar em empregos fixos, normalmente como almoxarife ou porteiro. Mas após algum tempo, foi embora de casa. Passando a administrador da herança deixada pela esposa de seu pai, escolheu ajudar nas despesas, como se pagasse uma pensão, ainda que não oficialmente separado da minha mãe. Foi uma época de estabilidade, como deixa transparecer a imagem ao lado dos seus três filhos diante da mesa farta. Nela, demonstra a alegria da menina que superou as agruras da Segunda Guerra Mundial, a perseguição política, as dúvidas quanto ao futuro dos filhos, a felicidade de ter netos. Esse sorriso era o meu melhor presente.
Sei que meus tios nos davam presentes de Natal. Não me lembro quem deu o que, mas tive miniaturas de soldados de plásticos, com jipes e caminhões que viviam em guerra, sem que ninguém realmente morresse. Tive também um carrinho de bombeiro em que a escada magirus se erguia. Com ela, salvei muita gente de morrer queimada. Eu me lembro de ter recebido de presente uma via férrea (de plástico) com trenzinhos com locomotivas e vagões, e uma estação. Viajei muito neles. Mas o que lembro de ter marcado minha infância (e foi a minha mãe que comprou) foram os blocos de madeira de montar castelinhos antigos. Variava as posições, criava caminhos e construía obstáculos. Principalmente, criei muitas histórias que envolviam as cercanias, os muros, as torres, as janelas fechadas, as passagens secretas. A imaginação sempre foi o meu maior brinquedo.
Eu vi passar uma família típica destas paragens periféricas — avó, filha com um neto pequeno no colo, uma mocinha e um adolescente junto a elas, em escala de cores de pele da mais claras a mais escura, a do mocinho. Em dado momento, o menino pegou um folheto de supermercado no chão. A senhora mais velha pediu para que deixasse onde estava e ele respondeu que queria ler. Eu, na idade dele e mesmo antes, lia tudo que caísse em minhas mãos, incluindo bulas de remédio, latas de manteiga, propagandas de lojas e cartões de apresentação. Papéis iguais ao dele estavam para dentro do meu portão. Nele, eram mostradas imagens de vários tipos de carne de um lado, falando sobre a promoção do açougue e do outro, ofertas de produtos diversos — de produtos de limpeza a utensílios. Isso me mortificou. Os preços estavam totalmente fora de alcance da humilde família. Fiquei a imaginar que nesta época em que se comemora o nascimento de um menino que veio para modificar a perspectiva de um mundo sem saída para um outro com esperança de uma nova vida para os desalentados, sua palavra desvirtuada redundou em indiferença, desilusão e injustiça social. Tudo fica pior quando aquele que proclama ser terrivelmente evangélico é o que mais subverte o Evangelho. Será um triste Natal nesta segunda edição de 2020, conhecido como 2021. Um erro que cometemos como povo, levará anos para ser revertido. Nosso Presente para as futuras gerações.
Humberto, primeiro, à esquerda, em raro momento de toda a família unida na mesma imagem.
Outro dia, no supermercado, esperava na fila do caixa enquanto, à minha frente, se encontrava uma mulher razoavelmente jovem com uma criança pequena no colo e mais duas grudadas à sua saia. Deviam ter cerca de um ano de idade de diferença entre uma e outra. O meu primeiro pensamento foi o de lamentar pelo futuro incerto dessa família tão típica de nossa Periferia. Era bem possível que o pai das crianças estivesse trabalhando. É muito provável que não participasse das vidas deles. Algo tão comum de nossa Periferia, que é o mundo todo. De agora e de todos os tempos. Quase imediatamente deixei o primeiro pensamento de lado e viajei para antes na minha própria história.
Meus irmãos, eu e a nossa prima, Rita, do meu lado esquerdo, no início dos Anos 70
Olhei para as crianças novamente. Eu seria aquela curiosa, que olha tudo ao redor com os olhos de novidade. Observa a mãe conversando com a caixa, acarinha os pés do irmãozinho no colo dela, sorri um sorriso tímido quando vê passar o único pacote de bolacha além das outras poucas compras. Apesar de pequeno, será ele a carregar com dificuldade, orgulho e coragem de homem da casa as sacolas até a sua casa, com a mãe, a irmãzinha do lado querendo ajudar e o terceiro-filho-segundo-irmão no colo, três anos mais novo.
Festejando com Dona Madalena o momento que ela mais gostava – o Natal.
Com as ausências constantes de meu pai, minha mãe decidiu não ter mais filhos, normalmente fertilizados nos retornos eventuais do marido à casa. O que era a sua família diante da importância da admirável luta pela redenção do povo pela revolução (que nunca houve)? Diriam que seria um motivo muito melhor do que simplesmente sair pela porta e nunca mais voltar como era uma quase regra do abandono parental, além de outros menos incisivos. Volta e meia, choro por meus irmãos que nunca vieram à luz, enquanto me solidarizo com a mulher sem saída melhor do que recorrer ao desparto sequencial.
Nos primeiros anos da Ortega Luz & Som, com o Sr. Edison, nosso transportador e amigo.
O terceiro filho de nossa família, meu irmão Humberto, hoje completa mais um ano de vida. O último dos três filhos vivos de Dona Maria Madalena e Sr. Odulio Ortega. Somos sócios na Ortega Luz & Som há uns 30 anos e entres brigas e concordâncias percorremos unidos a caminhos paralelos. Temos personalidades e gostos diferentes e mútua admiração pelo que nos tornamos — pais imperfeitos, mas presentes; irmãos discordantes, mas solidários; homens comuns, mas que tentam avançar na compreensão do mundo; filhos reverentes à mãe Natureza e que dão valor à vida. Eu sou mais intelectualizado (uma forma de desvio do racionalismo), enquanto ele é mais prático. Enquanto eu dou voltas em torno da Terra, ele vai direto de um ponto ao outro. Enquanto me encanto com versos de Pessoa, ele lê e destrincha um diagrama eletrônico como se fosse uma simples sequência de números naturais. Enquanto eu faço as relações públicas e contatos da Ortega, ele é o que faz as coisas acontecerem. Enquanto ele cultua um drama, eu os roteirizo e transformo em contos dramáticos. Foi o meu primeiro leitor e passei a escrever mais assiduamente para vê-lo encantado pelo que eu criava.
No trabalho, na Festa da Associação de São Vito, há oito anos.
Enfim, estamos juntos quase há quase 60 anos e apesar das provectas idades, somos chamados de “meninos do som” por muitos. Talvez reconheçam a juventude em nossos corações ou porque só conseguem entender que apenas jovens possam carregar, montar e operar a quantidade de equipamentos de som e iluminação levados ao segundo andar de buffets, salões de clubes e outros espaços horas antes. Para depois ficarmos acordados até de manhã para voltarmos à lida algumas horas após. Além da necessidade de trabalhar, gostamos do que fazemos. Porque vivemos enquanto trabalhamos. E sobrevivemos. Passamos pela Pandemia até agora e esperamos retomar o nosso caminho nos cuidando, por nós e por quem amamos.
Em 2021…
Pelo tempo que nos for permitido pela boa sorte, pelos homens e por Deus, estaremos juntos, Humberto! Parabéns por seu dia!